quinta-feira, 26 de abril de 2012

Das Memórias de Figueiró I

A propósito do livro do Dr. Manuel Simões Barreiros




Um recente comentário avulso acerca deste livro, Doze Anos de Administração Municipal (1930-1942) [1], editado logo em Janeiro de 1943 (ou talvez um pouco depois…), fez recordar contas pendentes. Aproveitemos, pois.
É, dizia, um livro fundamental. Que vale a pena ler para se perceber uma boa parte da história de Figueiró dos Vinhos, não só no período referido mas de uns bons anos para trás.
Aviso já que o livrinho abre com a foto do Carmona, frase feita de Salazar e retrato do mesmo “botas”. Muita União Nacional, muito Diário da Manhã, muito “venerando e obrigado”. Mas, se dermos o desconto devido, se nos abstrairmos da senha antidemocrática que, por aqueles anos, atingiu muito boa gente, encontraremos bastantes coisas interessantes.

O Dr. Barreiros, médico municipal desde a sua formatura em 1920, inicia o seu combate político ainda em plena República. À antiga, truculento, “com eles no sítio”, com caciques e caceteiros, ódios pessoais e jornais panfletários. Em 1924, com o seu grande amigo Dr. Martinho Simões, funda A Regeneração, jornal de longuíssima vida e que só vem a terminar já em 1979.
O golpe de Maio de 1926 abre-lhes as portas da Administração Municipal, da Câmara Corporativa e do partido único. A sua acção em prol de Figueiró afigura-se notável, reconheça-se. As suas influências no seio do regime, mais que em proveito pessoal, aplicam-na no desenvolvimento da sua terra.
A leitura do livro revela um homem frontal e dinâmico, bruto e teimoso, mas um «Homem bom».
Considerá-lo um «herói» já será manifesto exagero, e seria tomar partido - para isso é preciso ter várias coisas no sítio.

Vamos então ao livro [2].
Entre entrevistas, relatórios e manifestos, relatos pujantes e alguns exageros - como já não é connosco, agora divertidos - ficamos com uma ideia geral da história figueiroense da segunda e terceira década do séc. XX. Está lá tudo!
E, a não ser que o Dr. Barreiros fosse um grande mentiroso, o que não parece, algumas contradizem histórias mal contadas a que nos foram habituando.


Ficamos a perceber a génese da primeira Comissão Administrativa do Município, logo em 1926. Solução negociada no Governo Civil de Leiria e que dá a presidência ao Dr. Martinho Simões, pelos nacionalistas, tendo como vogais José Manuel Godinho, pelos democráticos, e o Tenente Manata, pelo «terceiro grupo» (o dos independentes?). É este o triunvirato que fica à frente do Município, ainda com Barreiros de fora [p.42…p.51…].
Por volta de 1928, Martinho Simões troca a Câmara por um lugar no Ministério do Interior, e a coisa treme [p.53]. Mas a acção do amigo na elevação de Figueiró a «estância de Turismo» e a consequente nomeação de Barreiros para presidente da Comissão Municipal de Turismo, compensa a ausência [p.56]. Estradas, pontes e jardins surgem sob a égide da nova Comissão, como que em substituição da própria Câmara [p.56, p.59].
Câmara a que, finalmente, Barreiros chega - «em 1930 fomos chamados a intervir na administração municipal, como vice-presidente», diz-nos [p.60].
Curiosamente, em 1942, já depois da morte de Martinho Simões, já com Barreiros na presidência, depois de muitas peripécias, e já com os verdadeiros «inimigos» acoitados dentro da sua União Nacional, serão ainda aqueles antigos republicanos os que o acompanham na gerência do Município – o Tenente Manata na vice-presidência e Godinho como vogal, aos quais se junta o Dr. Denis Ferreira.

Sintomático é o relato que nos deixa das negociações, mediadas por Byssaia Barreto, em 1937, entre as suas hostes e os «antagonistas», ora convertidos e instalados no seio da União Nacional. A détente passa pela manutenção da gente de Barreiros à frente da Câmara, cedendo o controlo do Concelho Municipal e do Partido aos opositores. «Até aqui lutávamos contra um inimigo fora das trincheiras onde nos abrigávamos (…) agora tínhamos de lutar com ele dentro delas» [p.121 a p.123]. De tal modo e logo adiante, denuncia mais um dos planos para o seu assassinato a soldo…
Ficamos a saber das suas simpatias germanófilas, pelo menos a propósito das políticas da saúde [p.110]. Que as juras e loas à «Revolução de Maio», à «Ditadura», ao «Estado Novo» são incontáveis.



Podemos ler episódios deliciosos. Como o do opositor que continuava a usar candeeiros a petróleo depois de já instalada a luz eléctrica, só por esta ser obra da «Ditadura»… [p.171].

Ou dos bons ofícios de Malhoa na democratização (cruzes!), melhor socialização (credo!), dos bancos do «Jardim-Parque» [p.57…]. Tais bancos, aliás, parece que ficaram amaldiçoados – por causa deles, ao que nos dizem, perderam-se eleições….


Percebemos melhor a história dos melhoramentos urbanos. Da construção do Jardim e do Parque [p.56]; da existência, já nos anos vinte, dum tal de «Largo José Malhoa» que é então alindado [p.56]; do andamento das estradas e pontes [p.59, p.96, p.164]; das muitas fontes, do abastecimento de água e do lavadouro da Fonte das Freiras [p.97, p.164]; do posto da Guarda, repartições públicas e agência da CGD [p.164]; etc. etc.


Sobre a ponte da Bairrada (ou da Bouçã) podemos ler: «a estrada de acesso ao Rio Zêzere, ao local onde depois iria acabar de se construir [3] a ponte que liga os dois distritos» [p.59]; «À distância de 7.800 metros da Vila (…) está a ponte da Bairrada, sobre o Zêzere, junto à foz do Rio Bouçã que ali vai desaguar (…) moderna, de três arcos, serve de comunicação entre a Beira Litoral e a Beira Baixa, por uma estrada recém-acabada de construir» [p.35]; «A ponte sobre o Zêzere, nas Bairradas, foi finalmente construída» (Diário da Manhã, 1931) [p.164].

Sobre a luz eléctrica, mau grado notícias de intenção, que não passaram disso mesmo, bem mais antigas, podemos ler: «A Lapa da Moura (…) ali se construiu em 1928 a central hidro-eléctrica que alumia a Vila» [p.36]; «Era, de momento, a maior aspiração a satisfazer, a luz eléctrica para iluminação particular e pública. Era sonho de há anos, que Câmara alguma conseguira efectivar. Pertenceu a esta Comissão [a presidida por Martinho Simões] a honra e glória de iluminar este encantador rincão…» e logo se destaca o importante papel desempenhado pelo Tenente Manata [p.53]. E, mais á frente, ainda se volta ao assunto [p.97].

Entendemos, finalmente, que edifícios da Câmara não foram dois, foram quase três. (E ainda nos livrámos de um outro, mais do respectivo plano, com igreja e tudo, que, graças a Deus!, não fazem cá falta nenhuma…) [p.107, p.160a, p.176ª, p.207].
A história é macaca. O velho Paço Municipal, coitado [4], que na verborreia do Dr. Barreiros «simboliza o desleixo» ante-salazarista, foi reconstruído, aumentado em mais um piso e embelezado. Já com a Câmara e várias repartições públicas instaladas, prontos a serem inaugurados oficialmente, pelo 10ºaniversário do 28 de Maio, os novos Paços do Concelho arderam. A perda foi enorme, principalmente quanto a registos e outra documentação. O que agora lá vemos, é basicamente o mesmo, logo reparado e alvo de ligeiras modificações [p.99, p.106, p.180, p.196]. Em 1942, segundo O Comércio do Porto, já estariam de novo prontos e o hospital em estado adiantado [p.206…].

De tudo, quanto à vida de Figueiró por aqueles anos, ali podemos encontrar. Da Banda ao «Foot-Ball», do Grémio da Lavoura ao Hospital, do mercado do peixe ao que se queira. É procurar…

Por fim, de Agosto de 1941, de um manifesto de «um grupo de amigos» publicado a propósito de mais uma afronta a Barreiros, encontramos isto sobre o Casulo de Malhoa [p.215].
Ora, este simples parágrafo, escrito há setenta anos, contradiz, e muito, uma história mal contada e que atira para as costas largas da SNBA o ónus da pouca-vergonha. [5]

Confesso que é assunto que me penitência. Leitura apressada do testamento de Malhoa e simples dedução lógica, sem outras premissas como a aqui escarrapachada, para tal apontava. Mas, de inocente conversa de café entre amigos, a coisa parece que passou ao livro de Jorge Gaspar [6]. Que agora é fonte, e das formais. Cresceu e multiplicou-se. E corre por aí, acrescentando-se-lhe sempre mais um ponto…
Fica, por enquanto, só isto. A ver se a fonte seca.

Quanto a fontes, em Figueiró e apesar dos avisos camarários, continuarei a beber na de S. Sebastião ou na do Casulo - onde a água é bem melhor.


 

Publicado originalmente em 31 Mar. 2012. LBG.




[1] Pode ser consultado na íntegra em:
http://www.bmfigueirodosvinhos.com.pt/docs/20106.pdf
na utilíssima colecção on-line da Biblioteca José Simões de Almeida Júnior.

 [2] Ficam aqui algumas páginas soltas. Clicando em cada uma deverão poder lê-las em condições. Há sempre a alternativa de aceder à ligação anterior.

 [3] Sobre este assunto, tenho ideia de ter lido algures (e agora não encontro, mas fica a nota) que já desde 1913 (?) lá estariam os «simples da ponte» - “simples” é a estrutura ou armação, geralmente de madeira, que serve de molde ou apoio para a construção dos arcos ou abóbadas de pedra. A expressão usada, «acabar de se construir», parece confirmar isso mesmo – a obra já estaria lançada e à espera, havia anos…

 [4] Os antigos Paços do Concelho - com a dignidade possível, pelo que se vê na foto - teriam sido obra do Dr. Manuel de Vasconcellos, em 1874. Isto segundo conta António A. Lopes Serra no seu artigo no álbum - Figueiró dos Vinhos Estância de Turismo - 2ª edição,1938, p.24.
http://www.bmfigueirodosvinhos.com.pt/docs/20943.pdf

 [5] Veja-se, ainda e a tal propósito, a entrevista do Dr. Henrique publicada em - Figueiró dos Vinhos e o seu concelho - Concelhos de Portugal, 1968, p.11, onde, qual donzela ofendida, mas refletindo alguma da opinião corrente, afirmava: «… Se bem que o Mestre aqui tivesse vivido e se tivesse inspirado na nossa luxuriante paisagem e nos nossos tipos humanos e costumes para criar as suas maravilhosas telas, ele esqueceu-se lamentavelmente da terra que o recebeu e lhe forneceu a matéria prima para os seu melhores quadros. O seu atelier, o seu “Casulo”, que seria o local próprio para o efeito, se ele assim o tivesse querido, pertence hoje a um particular, que o comprou em haste pública.»
http://www.bmfigueirodosvinhos.com.pt/docs/figueiro_dos_vinhos1968.pdf
Se, trinta e poucos anos depois, o Dr. Henrique se fazia esquecido, agora, setenta e tal anos depois, posso eu bem relembrar…

 [6] Refiro-me a: Gaspar, Jorge e outros - Monografia do Concelho de Figueiró dos Vinhos – CMFV, 2004. Consultável em:


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