domingo, 1 de julho de 2012

Ao Soalheiro


«Acha, o menino, que eu tenho tempo de estar ao Sol?! A minha vida é trabalhar! Isso é bom, é para a minha vizinha, a Maria Esgadelhada, que passa a vida sentada ao Sol, a falar da vida dos outros, a dizer mal desta e daquela…!» - costumava dizer a Guidinha, sábia empregada lá de casa.


«Estar ao Sol…», numa pausa do duro trabalho braçal, para retemperar forças, para aquecer o corpo gelado da humidade das hortas ou das casas lúgubres e frias, aproveitando para mais algumas tarefas não menos importantes, como descascar umas favas ou escolher um feijão, dar uns pontinhos nos fundilhos de umas calças ou fiar umas mechas de lã ou de linho, como aqui. E, também aproveitando, para uma ou duas modas, pôr a conversa em dia e meter o nariz na vida da vizinhança…

O secular hábito do «soalheiro» passou do campo á cidade como sinónimo de má-língua. Uma instituição nacional.



Como muitos outros aspectos da cultura popular, Malhoa também este registou. «O Soalheiro» é um quadro muito pouco conhecido, pouco referenciado e, creio mesmo, nunca publicado ligando o título original à sua imagem.


JMalhoa, 1904. O Soalheiro

Não sei mesmo se alguma vez exposto em Portugal, encontra-se uma primeira notícia de «O Soalheiro» na grande Exposição individual de José Malhoa no Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, em 1906. Com o número 11 do catálogo, Malhoa registará a sua venda, na «Receita de Julho», a Cunha Vasco por 1.600$000 «em moeda brasileira». Tal, se dúvidas houver, mas sem indicar o preço, é-nos confirmado por uma nota da Gazetta de Noticias, do Rio, de 6 de Julho desse ano.


As abundantes notícias que nos chegaram da triunfal estadia de Malhoa no Rio pouco nos dizem sobre este quadro. Entre banquetes, visitas ao Alto do Sumaré na Tijuca e mais repastos, as atenções dos cronistas, brasileiros e portugueses, viram-se mais para as obras de “encher o olho”, e as referencias e descrições de «As Cócegas», «Cavaleiro de S.Tiago», aos retratos Reais e ao «O sonho do Infante» ou a «O vinho verde», sobrepõem-se a todas as outras.

JMalhoa, c.1905. Tempo de chuva, lar sem pão

 (Mesmo algumas outras, mais esparsas, a «Tempo de chuva, lar sem pão» e «Pensando no caso» não obstam a que, logo duas décadas depois, já confundam um com o outro – confusão que chegou aos dias de hoje - mas não é isso que agora nos traz aqui…).

JMalhoa, 1904. Pensando no caso

Contudo, um excelente e completo artigo do Jornal do Commercio, do Rio, de 4 de Julho, sob o título «Notas de Arte», não o esquece - «O Soalheiro é outro extraordinário espécimen das qualidades de colorista ardente do pintor. A luz irradia e resplende aos olhos de quem olha para o quadro nas rutilações brancas do meio-dia e nos reflexos rubros dos vestuarios. Vê-se a satisfação intensa daquellas mulheres que se aquecem ao calor reconfortante daquelle sol. As posturas que cada uma toma são de uma naturalidade verosímil, devem representar uma scena comum nas aldeias portuguezas e frequentemente testemunhada pelo artista. São de um profundo interesse e traduzidas com grande força de technica.»
Mas «O Soalheiro» irá aparecer mais uma vez, dois meses depois, no Salão da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. Em mais uma participação que passa despercebida nas várias biografias malhoescas, mais ou menos “oficiais”.

Uma nota de um jornal brasileiro não identificável, intitulada «O “Salão” de 1906 - o “vernnissage” e a inauguração», dando conta da abertura próxima do certame, dá uma notícia curiosíssima: «Dos pintores conhecidos, deixaram de expor Henrique Bernardelli e Amoedo, para dar lugar a Malhoa, a alguns franceses, a Broros, (?), Vasquez e Petit…». E, completando esta notícia da deferência dos dois Mestres brasileiros para com o Amigo luso, Bueno Amador, dias depois, no Jornal do Brasil de 11 de Setembro, dirá: «Da exposição que, com êxito completo, realizou José Malhoa ultimamente no Gabinete Portuguez de Leitura, passaram para o Salão actual seis telas suas. Cebolas é um magistral quadro de natureza morta, eximiamente executado, que põe a grande distancia os muitos quadros do genero, que por ahi aparecem crivados de abacates, melancias e hortaliças. Compra do voto, 7º, não jantar… [sic – quer-se referir a «7º, não furtar… as uvas do seu cura»], Sardinhas e Soalheiro são quatro estudos de observação de aspectos e costumes portuguezes…», mais à frente, discorrerá longamente sobre «As Cócegas», o sexto quadro do conjunto.


Todavia, é num artigo de O Dia, de 13 de Março de 1906, que podemos “ver” pela primeira vez «O Soalheiro». Citando um artigo de João Chagas que só verá a luz do dia quatro dias depois em O Paiz, do Rio – num tempo sem internet ou sequer telexes, tal podia acontecer – o jornalista lisboeta vai mais longe e, ao reportar a visita que ambos fizeram ao atelier da Avª António Mª de Avelar, nas ante-vésperas do embarque no «Cordillière», descreve-nos alguns quadros. Às tantas, diz: «Depois, vem aquella nota clara, retintamente minhota, Ao soalheiro, dos mais lindos quadros, se a selecção é possível, que o pincel de Malhoa tem traçado. – Á hora do sol, as mulheres sobre esteiras, costurando, vão maliciosamente narrando casos picaros, e ha como que sorrisos nas boccas que a indolência e a maldade ferem. Recorta-se tambem a casaria humilde e tão caracteristica.»


Dando de barato a confusão geográfica recorrente entre a província minhota e Figueiró dos Vinhos, e que o próprio Malhoa cultivava…, temos dois reais testemunhos do quadro que nos indicam sem grandes dúvidas que é este.


Nunca mais, que se saiba, se ouviu falar dele. Só há pouco, e por duas vias, das mais amigas, dele me chegaram notícias que pode ver aqui . Agora já rebaptizado! Tal como um outro que o acompanha(va) – «A Descamisada», 1903. Este último, sem qualquer dúvida, o quadro apresentado na 3ª exposição da SNBA, e no qual podemos apreciar mais uma mão cheia de “minhotas” à sombra tutelar da Torre da Cadeia de Figueiró…

JMalhoa, 1903. A Descamisada

«E pronto! Acabou-se!» - como diria a Guidinha, sempre que começava a passar na tv o genérico final de uma qualquer novela brasileira, invariavelmente, e acrescentando sempre - «P’rá próxima é que vai ser bom!...»


1 Jul. 2012. LBG
nota: Sobre O soalheiro, 1904, pode ainda vê-lo em fotografia da época.

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