sábado, 7 de julho de 2012

O Conto do Vigário

ou
Um brasuca mudo e o portuga que se não cala…



«Sabem què vem a ser um conto do vigario?
Com certeza sabem de cór e salteado.
Mas aposto em como não sabem o que seja um conto de padre mestre.
Pois lá vai.
No theatro Apollo, não sei em que data, senti um abraço pelo pescoço e um beijo estalado atrás da orelha.
Era o Malhôa.
Sentámo-nos a uma mesa e eu, por delicadeza, apesar de pouca vontade de pagar, pedi uma garrafa de cerveja. Atrás dessa, o illustre artista pediu outra e mais outra, e ainda estaria a pedir, se eu não tivesse tomado o expediente de chamar o caixeiro e pagar a conta.
O diabo bebe aquillo como se fosse agua da Carioca, e emquanto bebia engrossava-me.
- Pois, meu negro do coração; és o rapaz mais bonito desta geração; nem sei como ainda estás solteiro.
Pausa e tres goles de cerveja; e eu calado.
- Preciso de um rufo de tambores para a minha exposição; uns annunciosinhos desfarçados, e a tua secção de theatros está a calhar.
Outra pausa e mais tres goles; e eu calado.
-Preciso liquidar aquillo tudo e tratar da vida; se acharem que os quadros prestam, muito bem; se não acharem, faço a trouxa e raspo-me.
Mais pausa, mais cerveja e mais silencio meu.
- Uma mão lava a outra, já se vê; e isso de pedir só sem dar não é dos meus habitos.
Pausa, nova garrafa e eu na moita.
-Trago uma pasta cheia de desenhos que reputo obras d’arte, e que destino aos amigos do peito, e você fica sendo do peito se me tocar os tambores e todos os chocalhos do reclame.
Idem idem idem.
- E depois o amiguinho manda pôr o desenho num passe partout e lá vai-elle para a parede da bibliotheca lembrar sempre o amigo velho, o maior admirador do Carino.
Pausa, etc., etc.
- Está dito? Vai ou não vai? Entra no accordo? É pegar ou largar.
Etc. pausa, etc. e cerveja.
- Bem, respondi; aceito.
Aceitei e cumpri, tocando gaitas por aqui e pelos bonds da Gavea.
Enchi-lhe a exposição e elle encheu de notas do Thesouro uma burra de respeitavel tamanho.
Os quadros produziram 318 contos de réis.
Pois bem.
O padre mestre sem coroa esqueceu se da cerveja e do desenho.
Sim, senhor; mas ha de voltar, e quem lhe ha de dar desenhos, rufes e gaitas e cervejas e o diabo que o carregue, é o – CARINO.»



Esta delícia de texto foi publicada em O Paiz, do Rio de Janeiro, salvo erro em 6 de Agosto de 1906. Não resisto a transcrevê-lo na íntegra.
Da coluna «Visita aos theatros» daquele periódico, está assinado por um tal «Carino» - personagem que desconheço mas tudo indica seria o colunista teatral e social do dito – e vai, tanto quanto me permite o malvado corrector ortográfico, com a grafia original.

Com humor fino e prosa escorreita, relata um alegado encontro, mais ou menos casual, mas muito conveniente, entre o autor e José Malhoa, nas vésperas da inauguração da sua Exposição individual no Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. O empenho deste em convencer o jornalista a “dar-lhe uma forcinha”, a promessa de um desenhito assinado em troca e, coisa mais rara para quem o “conhece” de ginjeira, um Malhoa bebedolas - ou quase.

Mas que tem piada, tem! E falta faz no extenso «anedotário malhoesco» a que bem se referia Varela Aldemira.


Suscita contudo algumas notas.

Chegado à baía da Guanabara, a bordo do «Cordillière», no dia 10 de Junho de 1906, Malhoa permanecerá no Rio de Janeiro cerca de dois meses.
Recebido, segundo os jornais, com pompa e circunstância, a sua fama precedia-o. Já nos meses anteriores uma imprensa muito favorável publicava regularmente matéria sobre o Pintor e a sua Arte, preparando-lhe a vinda.

«Não ha mais difficuldade em pintura, José malhou-a !»
in Jornal do Brazil, 4 de Julho de 1906

As primeiras semanas em solo carioca serão de vida social intensa e honrarias várias, como o ser aclamado «membro honorário da Escola Nacional de Bellas-Artes e, portanto, do Conselho Superior de Bellas-Artes», actos que os jornais não se cansam de registar, aguçando o apetite para o «vernissage». Que a Exposição só seria inaugurada a 4 de Julho, com mais pompa, circunstância, Presidente da República e tutti quanti! E mais banquetes e mais notícias...
E a 7 de Julho (faz hoje 106 anos) lia-se no Paiz e na Gazetta «Mais de duas mil pessoas visitaram hontem a exposição Malhôa franqueada ao publico na sala dos brazões do Gabinete…»

Ficamos a saber, portanto, que será um manifesto exagero carioca a presunção de terem sido as supostas linhas de Carino, negociadas entre algumas garrafas de cerveja, a «encherem-lhe» a exposição.

«Este bloc sinthetiza a Poesia e a Arte - nas suas mais bellas e extraordinarias creações». «29 Julho 1906 - Sumaré». «Luiz Canêdo»
Malhoa, ao centro, durante o passeio ao Sumaré, acompanhado pelo irmão Joaquim - o segundo, a quem JM dá a direita - e Artistas e Poetas brasileiros.
Olavo Bilac será o primeiro, logo na ponta esquerda, e o Jornal do Commercio (30.7.1906) diz-nos que naquela ocasião lá estavam, entre muitos outros convivas, Rodolfo Bernardelli e Gonzaga Duque... muito provavelmente estes da direita.


Quanto aos «318 contos de reis» com que Malhoa «encheu a burra», apesar da aparente precisão nada redonda de tal número, sabemos que é outro manifesto exagero.

Malhoa assentará o «Preço porque vendi os quadros em moeda brazileira». E na soma final, incluindo 2.776$000 pela venda de catálogos, bem como os 7.000$000 por cada um dos retratos Reais à Sociedade D. Pedro II, mas não contando com As Cócegas, que em Janeiro do ano seguinte ainda não lhe haviam sido pagas pelo Estado brasileiro, regista 72.950$400 – menos de um quarto do badalado pelo escriba fluminense!
E Malhoa acrescenta «Recebi em Lisboa vendendo as libras - 22.500$000». Uma bela quantia, é certo, mas muito longe da propalada.

Por fim, anote-se a data da publicação. Se o 6 de Agosto está certo (torna-se difícil ler hoje a data) é mais que conveniente.
Carino sugere que o «padre mestre sem coroa» já se fora com a promessa por pagar. Todavia, Malhoa ainda por lá anda, só a 13 de Agosto zarpará de volta, no «Nile», para desembarcar em Lisboa quinze dias depois.

A exposição tinha encerrado a 23 de Julho; antes Malhoa já havia ido visitar a Escola de Belas Artes, a sua galeria e a aula de Henrique Bernardelli: depois o Palácio do Cattete, a agradecer ao Presidente Rodrigues Alves «a honra que lhe dispensára» ao inaugurar a exposição; escrevia agora várias cartas de agradecimento que haveria de publicar nos jornais na altura da partida; natural era que ainda lesse a prosa macaca, lhe achasse alguma piada e escorregasse com o desenhinho combinado e agora sabiamente pedinchado…

Se o estratagema de Carino resultou ou não, não sabemos.

Mas que é difícil de engolir, porque nunca vista, a extraordinária estória de um “tuga” que não se cala e consegue dar a volta perante um “zuca” mudo e quedo… é! E muito!

Com carinho.


7 Jul. 2012. LBG. 



Em tempo: Fica também o Convite para a Exposição. É Pessoal e assinado pelo próprio. Não percam!


17 Ago. 2012. LBG

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