quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Malhoa e os “Salons” de Paris (IV)


1899 – O Prior e O Catedrático foram os dois passear… o cura montado no jumento.

Antes do mais, isto. O bocadinho do Catalogue illustré du Salon de 1899 referente a Malhoa [1]. Para se perceber que até na nobre arte do copianço, digo transcrição, há mãozinhas que dificilmente lá vão…[2]


Nesta sua terceira participação no Salon, Malhoa manda, como até aqui, dois quadros a Paris. E anota: «Março de 1899 | Despeza | 30 – Despeza com a ida dos dois retratos ao “Salon” despezas de viagem – 10$540».

Recordando, as obras que Malhoa enviou ao Salon de 1899 e respectivos números de catálogo, foram:

1306Le cathédratique.
1307Portrait de M. le curé de Coustanaix, Joô Alvès de Meira.

Ou seja, traduzindo e rectificando os erros originais, os quadros:
O Catedrático, c.1898.
Retrato do Prior de Constância (João Alves de Meira), 1899.

Destas duas obras pouco se sabe. Nunca expostas em Portugal, fazem parte do lote das que voltam a Paris no ano seguinte, para a Exposição Universal de 1900, e naufragam no regresso. As referências descritivas são escassas e imagens, que se conheçam, inexistentes.
Assim, só aqui podemos deixar um cheirinho.

Dando primazia ao clero, vejamos o que Malhoa nos deixa sobre o Retrato do Prior de Constância: «1899 | Despeza | Fevereiro | Estada nos Cazaes dos Pintainhos durante 14 dias em que fui pintar a Constância o retrato (gratuito) do padre João Alves de Meira destinado a sêr exposto no “Salon” de 1899 – 39.500».

Por esta altura, Malhoa tinha entre mãos a decoração do tecto da Igreja Matriz de Constância. Em 18 de Novembro de 1898 havia recebido a «1ª prestação de 600$000 p/c da decoração a fazer para a igreja de Constancia» e em 14 de Abril de 1899, receberia mais 200$000 pela 2ª prestação. No dia seguinte, anota: «Paguei ao Manuel João 100$000 por conta de 400$000 quantia por que tratou comigo de fazer a decoração (pintura e douradura) do tecto da igreja parochial de Constancia». Recordemos que, em Dezembro de 1898, Malhoa havia vendido As papas, 1898, por 500$000, ao Dr. Francisco Falcão, ao que parece, um dos mecenas das obras de restauro da Igreja de N.ª S.ª dos Mártires. E, por fim, assinalemos que dos Casais dos Pintaínhos era a sua fiel criada – a «Maria dos Pintaínhos» - que o acompanharia até ao fim da vida.

Não sabemos como todos estes factos se interligam; que papéis têm a criada, o doutor e o prior; mas dá para perceber que o Retrato do Prior de Constância, 1899, surge neste contexto e nestas circunstâncias, por terras de encontro do Zêzere com o Tejo.[3]
E deve ter sido um belo retrato… para ter ido até Paris.

Mais, só em Abril de 1901, quando Malhoa recebe o dinheiro do seguro pela perda dos quadros naufragados. Aí ficamos a saber o seu valor «… “O Cathedrático” 1.500 francos [4], retrato do prior de Constancia 300$000». E, pela ausência da indicação de proprietário, referida noutros dois que tinham dono, supõe-se que estes aguardassem ainda a sua apresentação em Lisboa para serem vendidos.

Quanto a O Catedrático, c.1898, quase todos os autores [5] nos dizem que se tratava de um «simples burro».
            Ora, aqui há uns anos surgiu no mercado, num leilão da Leiria & Nascimento, um pequeno óleo sobre cartão, 33,5x40, assinado e datado de 1898, com a cabeça de um simpático jerico lãzudo. É bem capaz de se tratar de um estudo para O Catedrático [6]. Ficamos, pois, a conhecer as fuças de tão ilustre personagem. 

J.Malhoa. Estudo para O Catedrático (?), 1898. osc, 33,5x40

            Não é que o não conhecêssemos… dezassete anos antes, na 1ª Exposição de Quadros Modernos (Grupo do Leão), o António Ramalho, outro pândego, já nos tinha mostrado o dito, então recém bacharelado. Num tempo muito longe de Bolonha, natural é que a vida académica demorasse… cumprindo-se no entanto o ditado: «um burro carregado de livros é um doutor».

António Ramalho Júnior. O Bacharel, c.1881, óleo, 54x46.  [7]

          Em 1898, este antigo Bacharel, mais lanudo, chegou finalmente a Doutor e assumiu a cátedra.



9 Jan. 2013. LBG


[1] A quase totalidade dos primeiros catálogos, até 1907, encontram-nos disponíveis aqui.


[2] «e bem prega frei Tomás…» que também me enganei! (mas já emendei).

[3] Podem ver aqui um estudo do Zêzere e a foto do tecto da Igreja de Constância.

[4] Os francos foram pagos a 250 reis. Malhoa, então, queixou-se que o câmbio estava em $259.

[5] Todos, não! Há pelo menos duas crónicas, a propósito da Exposição Universal de Paris 1900 onde O Catedrático voltou, em que a apreciação foi esta: «Dois retratos de Malhoa eram bastante caracteristicos…» e, mais adiante, «Os seus retratos do “Cathedratico” e do “Prior de Constancia” (…) sobre terem caracter, eram, como tudo o mais que este artista expunha, largamente pintados», e o outro vai pelo mesmo. Nem uma palavrinha sobre um dos quadros retratar o asno?! Falavam a sério ou com subtil ironia? Ou, a fazer escola, falavam do que para nem sequer olharam?

[6] em adenda, 13 Jul 2014 - Dizemos «É bem capaz...» porque nisto não há certezas. Não fora o catálogo da L&N nos dizer que o óleo está datado de «1898» (e, sem ver o quadro ao vivo, nada temos que nos faça duvidar de tal leitura...), atendendo apenas ao tamanho da pintura e ao que a imagem nos mostra, a primeira ideia seria considerar este jerico como o protagonista do quadro apresentado na 2ª Exposição do Grémio Artístico, 1892, intitulado Pensando no caso. Pois, de acordo com o respectivo catálogo, tal quadro está assim referenciado: «101 - Pensando no caso - 40x32 - 36$000». De imediato nos chama a atenção o facto de as dimensões serem praticamente as mesmas!? E, procurando um pouco mais sobre isto, lendo o que nos diz quem o terá visto, encontramos na crónica de «João Sincero», n'O Occidente de 11 Maio 1892, esta descrição: «uma cabeça de burrico lanzudo, Pensando no caso philosophicamente» - frase que bem podia ser aplicada o quadro que agora vemos. Ora, apenas a data, posterior a isto tudo, e mais de acordo com a apresentação no Salon de 1899, nos leva a supor que se trate de um estudo para O Catedrático. «Estudo» evidentemente, porque é suposto, como vimos, que o quadro que foi a Paris se tenha afundado.
Pode, no entanto, ser Pensando no caso e o estudo para O Catedrático ao mesmo tempo. Em tal hipótese, não seria a vez única que Malhoa faria marosca para levar a Paris quadros em reprise - o Salon exigia obras nunca antes vistas em lado algum, recordemos. E como veremos mais tarde, para levar a Paris (1902) o retrato da D. Teresa Pereira da Costa, já depois de apresentado com enorme êxito em Madrid (1901), o bom do Malhoa dirá «...que refiz quase por completo...» - vá lá a gente saber?! Pode por isso, neste caso, ter usado o quadro mostrado em 1892 como base para a nova pintura e só então o ter datado, e ao novo dado o doutoramento...
Eis pois as razões de ser apenas «bem capaz». 
Mas esteja o bicho Pensando no caso, c.1892, ou seja o estudo para O Catedrático, c.1898, ou ambos ao mesmo tempo, dúvidas não há que estamos perante um verdadeiro intelectual!

[7]  Reprodução da gravura constante de Exposição de Quadros Modernos | Catalogo Illustrado | Publicado por: | Alberto d’Oliveira | Lisboa | 1881. Exemplar nº17, em papel velino, [1ª edição]. Por isto esta gravura poderá parecer diferente do habitual. É - não tem a legenda nem o defeito no focinho da alimária.

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