quinta-feira, 27 de junho de 2013

Na infância de um museu, a arte da juventude



Manuel Henrique Pinto (1853-1912) e José Vital Branco Malhoa (1855-1933), ainda quase meninos, encontram-se pela primeira vez na Academia Real das Bellas Artes de Lisboa. Um vinha de Cacilhas, do outro lado do Tejo, num tempo sem cacilheiros, e nos primeiros anos faltava muito às aulas, por isso se mudou para a cidade. O outro, parece que com uma perna partida, veio das Caldas da Raínha para casa do «mano Joaquim» a fim de curar a mazela e abraçar vida nova. 
Acabaram por se juntar nas aulas e corredores de S. Francisco e fizeram-se amigos para toda a vida. Dos professores que ali tiveram, sem esquecer Thomaz José da Anunciação (1818-1879) e Miguel Ângelo Lupi (1826-1883), dois houve que mais os marcaram – Joaquim Gregório Nunes Prieto (1833-1907) e José Simões d’Almeida júnior (1844-1926) [1].


J.Simões d'Almeida júnior, M.Henrique Pinto
e  J.Malhoa, em Figueiró, c.1898.
Anos depois, no começo da aventura do Grupo do Leão, já homens feitos e pintores a fazerem-se, é este antigo Mestre, agora também um amigo, que os traz até Figueiró (1883) - «…venham para a minha Terra, que têm muito que pintar!». E eles vieram… - a história é já sabida.


J.Simões d'Almeida (sobº) e o primo Luiz A.Pinto,
no atelier do escultor,
pelos finais da primeira década de 1900.
O Pinto logo aqui casa com uma prima do Simões, a Maria da Conceição (1859-1941). O casamento (1885) é apadrinhado pelo Malhoa e pela sua mulher Júlia (1853-1919), casados já para cinco anos. Para cinco anos também, Mª da Conceição e o primo Simões haviam apadrinhado [2] um sobrinho comum, o «Zézito». Levou o nome do tio escultor e também o seu destino. Mais tarde, ao assinar na pedra ou no barro e para se distinguir do outro, teria de acrescentar ao seu nome de baptismo a palavra «sobrinho». José Simões d’Almeida, sob.º (1880-1950) foi mais um dos Artistas maiores que, do Cimo da Vila à Fontinha, por opção ou por berço, desta fizeram a sua Terra.


Muito justamente, é com os quatro de novo juntos que se inaugura o Museu e Centro de Artes Municipal de Figueiró dos Vinhos.


Mas aqui uma outra história. Um bocadinho daquela que não foi contada ainda. A história de Henrique Pinto e José Malhoa ainda jovens, enquanto estudantes das Bellas Artes ou, logo depois disso, cheios ainda de sonhos e candidatos aos concursos para pensionistas do Estado no estrangeiro. 


J.Malhoa e M.Henrique Pinto, c.1874. Ambas as fotos de «J.Loureiro Fº, C.do Duque 18».
A primeira, com dedicatória assinada por Malhoa, está datada de «2/10/74»

          A história que nos contam algumas fotos e uma dezena de obras da juventude, velhinhas e marcadas pelo tempo, mas que conseguiram chegar aos dias de hoje.



Comecemos por um interessante Desenho de Ornato, a carvão, não datado mas assinado «J. Malhôa» e com uma curiosa nota manuscrita «prova d’exame 1º(?) ano escola de Bellas Artes», tendo ainda, na sua parte superior e agora escondido pelo passe-partout, a indicação «Nº 5». A assinatura e a nota serão posteriores mas da mão do próprio. Estaremos, a ser assim, perante um dos primeiros desenhos de Malhoa enquanto aluno da Academia, talvez ainda anterior à data agora atribuída, c.1870. 


Com mais certezas, porque assinados e datados na altura da feitura, outros três desenhos a carvão de Malhoa. Por certo cópias de estampas, ainda ao jeito do Romantismo, que a «tomada do Natural» era prática que estava por vir. Duas Paisagens, ambas datadas de 1870 – aos quinze aninhos, portanto – soturnas e dramáticas, soando a Wagner e a florestas bávaras, muito longe do sol aberto da Lavandeira.
















E, do ano seguinte, Uma ninhada, 1871, com cadela meio escanzelada e hortaliça estrangeira…
















Para finalizar esta pequena mostra de desenhos, o Retrato de minha Mãe, 1872, onde o jovem Malhoa, então com 17 anos, retrata Ana Clemência. Um carvão ainda tímido de traço, que o Artista sempre guardou zelosamente e cujo destino, a par do «retrato da minha falecida mulher», deixará bem determinado, e que nos é dado ver agora…





Retrato, este do próprio Malhoa - e para lá das várias fotos da época [3] que também se reproduzem - é o medalhão em gesso da autoria de João Rodrigues Vieira (1856-1898). Condiscípulo na Academia, companheiro no futuro Grupo do Leão, escultor promissor, pintor e professor de desenho depois, Rodrigues Vieira regista neste Retrato de Malhoa, 1874, o perfil do colega aos dezanove anos. Que se conheça, é o primeiro retrato de Malhoa, ainda imberbe, ainda estudante das Belas-Artes, feito por um Artista amigo.


Só anos mais tarde, primeiro no óleo (1882) de António Ramalho (1859-1916), depois na galvanoplastia (1883) [4] de Simões d’Almeida e, finalmente, no célebre retrato colectivo de O Grupo do Leão, 1885 [5], de Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929), teremos outras representações de Malhoa, então já homem feito.


Talvez ainda por esta altura, cerca de 1874, talvez um pouco antes, foi tempo de deitar tintas às telas – melhor, a pequenos cartões ou a estes colados sobre fracas tramas, que as boas eram coisa cara. Suportes frágeis, pouca longevidade tiveram. Estes, em muito mau estado [6], serão dos poucos a chegar até nós.

 Nabos e cenoiras, c.1874, e mais outros tubérculos, muito provavelmente de Henrique Pinto, é um exercício de pintura ainda ao gosto antigo, daquele em voga nas exposições da velha Promotora – «essas pintadas exibições ortículas» [7]. Uma pequena mas bela amostra do que então se fazia.

Como em todas as boas histórias, há também a parte do mistério – «mas quem será…?». Um par de pinturas - Barros e plantas - gémeas na temática, no suporte, no tamanho, mesmo na forma de pintar. E dois Pintores, ainda verdes mas sonhadores, que se fazem retratar com elas, como se fossem as suas obras primas – as primeiras, bem entendido. A foto, que também tem par, foi revelada há um ano [8], as obras são-no agora.


M.Henrique Pinto e J.Malhoa, c.1875
A(s) foto(s), uma pintando a outra desenhando –  e interessa agora só a primeira – pode ser datada com razoável certeza pelo início do ano de 1875 – outras, uma com dedicatória do ano anterior, mostram os retratados ligeiramente mais jovens e mais magros. Nesta, Manuel Henrique Pinto está de pé, enquanto José Malhoa faz que pinta. Sobre o cavalete, um quadro – precisamente um destes – no chão, meio encoberto pelas pernas de Pinto, uma outra pintura – nem mais nem menos que o outro quadro aqui presente.

Que importância teriam estas pinturas para os Pintores as levarem ao estúdio e se fazerem retratar com elas? Seriam as provas finais do curso, ou as provas de concurso? Não o sabemos; sabemos que as guardaram e conservaram. E, partindo do princípio que cada uma é de cada qual, é a de Malhoa a que este finge pintar e a de Pinto a que está junto a si? Ou os “malandros” levaram a encenação tão a sério que nos trocaram as voltas? Talvez nunca o saibamos; sem marcas, sem assinaturas, permanecerão um mistério [9]. Mas são marcas de uma sã camaradagem e de um começo de vida artística que muitíssimas vezes continuaria a ser feita a par.



Por fim, já em tela razoável, assinada e datada «JMalhoa 1875», com a rubrica de Francisco de Assis Rodrigues, Director Geral da Academia, «FAssís, DG.», pelo tardoz, indicando claramente que foi um trabalho de exame ou concurso, temos uma Cabeça de cavalo, 1875. Feita aos vinte anos, era uma cabeça que prometia…
Sem muitas fontes onde confirmar, resta alguma especulação.



Pela certidão [10] passada a Henrique Pinto por ocasião do «concurso ao logar de pensionista em pintura de paisagem» desse ano, ficamos a saber que este apresentou, na 3ª prova, a «cópia d’uma cabeça de cão, do natural e na mesma dimensão, foi qualificado – bom». É provável que tal cabeça seja o Retrato do Néné, mais tarde mostrado, já «Pert (encente) ao sr. P. da Costa», na primeira Exposição do Grupo do Leão (1881) – dessa obra apenas se conhece a gravura então publicada no catálogo.

Não sabemos se, no tal concurso onde ambos participaram, o cão era modelo comum e único ou se, eventualmente, Malhoa terá ido de cavalo. Se assim foi, é muito possível que esta seja a sua obra concorrente - fica a hipótese. E a cavalo galopam depois mais umas tantas histórias...

Anulados os concursos, este como o anterior - coisa sabida - não se julgue que o desalento venceu, e foi «partir paletas e pincéis…» como sói dizer-se. No verão desse mesmo ano, Henrique Pinto, talvez animado com o «bom» que lhe valeu o canídeo, renova matrícula [11] - «… tendo acabado a aula de pintura da paysagem (…) deseja aperfeiçoar-se no estudo da pintura de animaes…». E José Malhoa, segundo outros registos [12], anos depois também ainda por lá andaria… Que o estudo e o trabalho nunca fizeram mal a ninguém - mal é os não ter.

Sem falar por contar, sem fadas ou quimeras, aqui ficam alguns pedaços desta parte da história. Resta sempre por dizer. «E era uma vez…» - vamos a tempo de recomeçar - olhando de novo cada desenho, cada quadro, de dois meninos que um dia quiseram ser Pintores…

             Estas, e mais outras - bem como Obras de José Simões d'Almeida júnior e de José Simões d'Almeida (sobrinho) - podem ser vistas, até finais de Outubro, no Museu e Centro de Artes de Figueiró dos Vinhos. 


Jun. 2013. LBG




[1] «…dois grandes mestres» - dirá Malhoa. E referindo-se mais particularmente a Simões - «uma influência enorme no desenho». Carta citada por Humberto Plágio, in José Malhôa (Pintor). Lisboa.1928. p26.

[2] Sem absoluta certeza, ou foi Mª da Conceição ou a Mãe desta, também Conceição, a madrinha de Simões (sobº) - as fontes não são claras. De qualquer modo a história será parecida e fica toda em família…

[3] De arquivo particular.

[4] Ambas as obras no acervo do Museu José Malhoa, Caldas da Raínha.

[5] No acervo do MNAC – Museu do Chiado, Lisboa.

[6] Registe-se o paciente e laborioso trabalho de Paulo J. Ricardo da Cunha na recuperação possível das obras agora apresentadas.

[7] João Ribeiro Christino da Silva, in Estética Citadina. Lisboa: Imprensa Libanio da Silva. 1923. p.28. Onde nos explica ainda, a propósito da Sociedade Promotora das Belas Artes: «Depois dos tempos áureos dessa Sociedade, aí entre 1855 e 1865 em que os mais notaveis artistas de então ali apresentavam as suas melhores telas e esculpturas, (…) depressa veio a decadência, (…) o que abundava mais nos últimos certamens eram barcos de guerra e mercantes sábiamente pintados de cór, ou amplas telas com várias ortaliças, parecendo o salão uma sucursal da Praça da Figueira».

[8] Ver: A Duas Mãos | Desenhos inéditos: Manuel Henrique Pinto (1853-1912) e José Malhoa (1855-1933): Pelo Centenário da morte de Manuel Henrique Pinto. Figueiró dos Vinhos: Clube Figueiroense; Município de Figueiró dos Vinhos. 2012.

[9] Durante mais de meio século a coisa esteve mais ou menos clara: o quadro do vaso caído, o que na foto aparece no chão junto a H. Pinto – do outro nem se sabia a existência - era “um trabalho escolar de Malhoa”. Uma leitura mais atenta da foto e a redescoberta do outro quadro, tudo põem em causa. Mais a mais, que a tradição oral vale o que vale, e a mais próxima, nestas coisas e muitas das vezes, é a mais traiçoeira...

[10] Em arquivo particular.

[11] FBAUL. [Disponível na Secretaria da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa] – Requerimento apresentado por M. H. Pinto, datado de 17.6.1875 – consulta feita pela Professora Sandra Leandro, a quem muito agradeço a disponibilização, colaboração e crítica.

[12] AHFBAL. [Disponível no Arquivo da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa] – Registo de matrícula: «Curso de Pintura Historica | José Victal Branco Malhoa, 27 anos | filho de Joaquim Malhoa | morador na Rua da Oliveira ao Carmo nº9 | profissão estudante | Aula de Modelo Vivo | 23 de Outubro de 1882 | Aluno Voluntário».