quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Um retrato de Quaresma d’Oliveira

e mais umas quantas pinceladas


Manuel Quaresma d’Oliveira (1860-1902) morreu, fazem hoje, 13 de Dezembro, cento e dezasseis anos.
[Repito, por causa das dúvidas: Manuel, em vez de «José»; morreu em 1902, não em «1905».]

J.Malhoa. Retrato do Exm.º Sr. Manuel Quaresma de Oliveira, 1897.


O pequeno Manoel nasceu em Figueiró dos Vinhos, a 26 de Agosto de 1860, de Manoel Quaresma Valle do Rio e Vicencia Clara da Conceição, então moradores da Vila. Pelo baptismo, realizado logo a 9 de Setembro, na igreja paroquial de S. João Baptista, teve como padrinhos um importante negociante da cidade do Porto, Alexandre Casimiro de Vasconcellos, e sua mulher, Dona Filomena Maria d’Oliveira Vasconcellos. Ambos por procuração: passada a dele em Lamego, onde estaria ausente em negócios, e a dela no Porto.

Manuel Quaresma d’Oliveira irá, pela vida fora, adoptar os sobrenomes dos dois avôs: ao do paterno, José Quaresma casado com Maria Josefa, junta o do materno, Manoel Caetano d’Oliveira casado com Joaquina Bernarda. Deixa cair, assim, o toponímico de origem que fora acrescentado na geração anterior por seu pai Manoel e seu tio José [1] [2]. [Toponímico da origem destes e da avó Josefa, bem entendido, que o avô José era dos Quaresmas do Casal dos Ferreiros da Ribeira [3].]



O pai, Manuel Quaresma Val do Rio, negociante tal como o irmão, era já proprietário de apreciáveis meios de fortuna. Comprou a Cerca que fora das freiras, e tinha casas ao Cimo da Vila, à Cruz de Ferro, propriedades no Madrão, ao Chávelho, nos Mações… Morrerá a 26 Nov. 1889, na «edade de setenta annos», tinha o filho vinte e nove. 

Na década anterior, a pouco de completar os vinte anos, [curiosamente no mesmo dia mas hora e meia antes àquela em que o seu ainda desconhecido mas futuro amigo José Malhoa se casava em Lisboa] a 29 Jan. 1880, o jovem Manuel ver-se-á filho único [4]. Morre a irmã, Maria Justina Quaresma d’Oliveira, quatro anos mais velha pois havia nascido a 6 de Janeiro de 1856, ao dar à luz o seu segundo filho. Mª Justina era casada com José Quaresma Val do Rio Junior, seu primo direito, filho do tio José, e eram moradores na Vila [5].
Terá sido enorme o desgosto familiar. 
Mais tarde será mandado edificar um magnífico e comovente túmulo, fina obra de cantaria e escultura das oficinas lisboetas de Moreira Rato, obra merecedora da mais atenta observação no cemitério de Figueiró dos Vinhos.

Desconhece-se qual foi a formação do jovem Manuel. Mas, pelo que nos deixou escrito, sempre em cuidada caligrafia, exemplar ortografia e linguagem escorreita, percebe-se que terá estudado bem mais que o useiro para um jovem burguês de província. Deverá ter andado lá por Coimbra…
Mais certo é ter sido da Lusa Atenas que trouxe o grande amor da sua vida: a Srª Dona Albertina da Conceição. Com quem teve cinco filhos e nos braços da qual se finou. 
Nunca casaram. Vá-se lá saber das razões…
E talvez tenha sido este o seu pecado maior. Aquele que, na sociedade beata e fechada dos finais de XIX, e ainda mais genuflectória e hipócrita de umas décadas passadas, o levou ao esquecimento, quase o apagou da memória. Mesmo agora, em escritos mais ou menos recentes, aparece-nos como se fora actor secundário, referido en passant, quase por favor, pouco mais que nota de rodapé. Trocam-lhe o nome, baralham-lhe as datas, ignoram-lhe a importância e as acções, não lhe ligam pevide. Injusta e deploravelmente.

Contudo, um seu contemporâneo descrevia assim Quaresma d’Oliveira: «rico proprietario e não menos abastado capitalista; não obstante essa avultada fortuna, possuia, o que é raro, a maior coisa do mundo talvez: - Animo sufficiente para desprezar as grandezas!» «De genio independente, abstrahia de si tudo quanto fossem vaidades (…) honrado e generoso cidadão, prestavel a si, aos seus, à sociedade, e incansavel amigo da sua terra – Figueiró dos Vinhos».
E é assim que o vamos encontrar, discreto e sem grandezas, mas diligente, generoso e meticuloso, sempre presente em todas as grandes iniciativas da sua terra e do seu tempo.


Quaresma está na génese da Sociedade Recreativa Figueiroense (vulgo Clube Figueiroense). Ainda não completara os 27 anos de idade e, embora não seja um dos cinco denominados «iniciadores» da ideia, faz parte da restante meia dúzia que, com aqueles, promoveram e realizaram a «sessão preparatória para discussão e approvação dos estatutos» daquela Sociedade, e que teve lugar a 16 de Abril de 1887. É Quaresma quem redige a acta da reunião com os respectivos estatutos. E, numa das reuniões seguintes, será eleito para os primeiros corpos sociais do Clube. Um dos Sócios Fundadores, portanto.


Quaresma participa na fundação da Filarmónica Figueiroense. Também aqui, Manuel terá sido um dos Sócios Fundadores. A coroa de flores enviada ao seu funeral, «de rosas-chá, violetas, miosottis, e fitas brancas, com a dedicatoria: - “A Philarmonica Figueiroense ao seu socio fundador – M. Q. d’Oliveira”», parece confirmá-lo plenamente.


[Agora, o que já não parece lá muito bem confirmado é a fundação da Filarmónica ter “ocorrido” «em 1858» ou mesmo «em 1870»?! Pois em 1858 ainda este sócio fundador não era nascido, e em 1870 não parece que a tenha ido “fundar” vestido de bibe e calção… Mais um daqueles síndromes da pescada que volta e meia atacam por aí, como na fábrica do pão-de-ló ou nalguns clubes da bola: «que antes de o ser já o eram»...]


Quaresma é um dos mais activos membros da Comissão das obras de restauro da Igreja Matriz. Nomeada a 30 de Março de 1898, afim de por elles ser levada a effeito a referida obra, face às dificuldades e falta de recursos sentidos pela Junta da Paróquia.

As obras, que se prolongam de 1898 a 1903 [a Igreja é reinaugurada e retoma o culto neste último ano pelo S. João, recorde-se], são inicialmente dirigidas pelo arquitecto lisboeta Luiz Ernesto Reynaud. Depois do retorno deste à capital, bem antes do final de 1898, terá sido Quaresma d’Oliveira e a sua iniciativa a coordenar os trabalhos.
Quase nunca recordado, mas bem patente nos jornais da época, é o facto de, a determinada altura, conseguido algum contributo financeiro do Estado central, as obras terem andado num vai e não vem, entre o faz e o não faz, e nas vindas e idas de uns inspectores de Lisboa
Contudo, como facilmente se percebe por este escrito do próprio Quaresma, publicado em Julho de 1902, a seis meses do seu passamento e praticamente um ano antes do final das obras, os trabalhos estariam bem adiantados. O exterior praticamente acabado. E no interior do templo, pelo que se pode ler, estaria já pronto o altar do Senhor Jesus dos Aflitos, com o fresco de Malhoa já pintado e o Cruxificado de Simões encarnado, e ambos já secos, assim como o tecto da Capela-Mor. E até os «quadros sacros que existiam no mozeu em Lisboa» [os tais que um Doutor acha que vieram todos ali do convento do lado…] e que Simões d’Almeida obtivera do governo, também já estariam em Figueiró. Faltaria mesmo pouca coisa: os douramentos de uns altares e pouco mais.
Este artigo de Quaresma, resposta a umas parvoeiras publicadas no número anterior d’O Figueiroense, é exemplar. É dos que eu gosto. Só por isto, Manuel Quaresma d’Oliveira merece toda a minha consideração.
[As parvoeiras, já na altura e como está bom de perceber, são o encher de boca e… a(r)rota Malhoa. Como o tal brandy, é coisa que «já vem de longe»…]
E ainda hoje, se o escrito de Quaresma fosse mais bem lido e relido, muito ajudaria a que se não dissessem banalidades menos acertadas quanto à história das obras da Igreja. Está lá tudo escarrapachado.

[É este texto, além do mais, fonte primeira. Não se percebe, portanto, porque se insiste em ir buscar transcrições de uma década depois e que baralham até a sequência da polémica, quando se tem bem à mão o original?! Vontade de complicar…]


Quaresma tudo deu na tentativa de erguer a Empresa da Fábrica de Cerâmica de Figueiró dos Vinhos. De vida efémera, entre meados de Agosto e o início de Novembro de 1898 aconteceu quase tudo, e ter-se-á arrastado apenas por mais um ano…

Luiz Reynaud, António Lopes Serra, Manuel de Vasconcellos, Quaresma d’Oliveira, pe. Diogo de Vasconcellos, 
Simões d’Almeida, Henrique Pinto, e José Malhoa. Em Figueiró, Agosto/Setembro de 1898.

A 18 de Agosto de 1898, oito figuras constituíram a sociedade destinada a tal propósito. 
Manuel de Vasconcellos presidiu e ficou de tratar da escritura e legalização da sociedade [não se sabe se alguma vez tal foi feito]; o padre Diogo de Vasconcellos vice-presidiu [o que também foi bom]; Lopes Serra secretariou e venderia à sociedade uns terrenos para instalar a fábrica [desconhece-se o destino posterior de tais terrenos]; e Quaresma tesoureirou, fez contas, organizou, tratou de comprar os barreiros para extrair os barros [em seu nome, que a sociedade formal ainda o não era] e acabou mesmo por ter de atar todas as pontas. Era esta a «Direcção Administrativa da empreza», eleita por aclamação.
Quanto aos outros: Reynaud foi nomeado director technico, mas logo nos finais de Setembro oficiou a sua saída de sócio, embora continuasse como gerente technico [um mês e tal depois acabou mesmo por abalar, deixando tudo e as quotas realizadas por pagar]. Pinto, na volta às suas aulas nabantinas, levou amostras do barreiro do Forno do Telheiro para testar na fábrica de Tomar; vieram de lá «uma bacia, uma pucara, ou panella pequena e dois vazos para flores» e a informação sobre o barro «que não serve para louça de bocal estreito por ser fraco e não se auguentar»; então, pelos que em Figueiró ficaram, «resolveu-se que se mandem (…) amostras de todos os barros para elle obter (…) mais provas» [ignora-se se novo veredicto houve]. Simões deu sábios conselhos e tratou de substituir Reynaud quando este borregou, redigiu o regulamento da fábrica, planeou mudanças de telheiros, novos barracões e várias remodelações [e logo precisou da ajuda de mais um director de serviço - Quaresma, quem mais?!]. Malhoa não se sabe bem o que fez [mas tê-lo-á feito bem com certeza].

No entretanto, naqueles dois meses e meio, fizeram-se onze reuniões e redigiram-se outras tantas actas. Determinaram-se quotas e sucessivos suprimentos de capital; contrataram-se três oleiros e um guarda de serviço noturno e estabeleceram-se os seus salários [mês e meio depois já se falava em reduzir pessoal]; deliberou-se sobre os preços de venda do tijolo grosso, tipo burro - «dez mil reis o milheiro» - e também do delgado, talvez lambaz, [não se sabendo, portanto, se alguma vez ali se cozeu telha]; em meados de Outubro discutia-se «se convinha ou não que continuassem os serviços no inverno», deliberou-se que sim. Como Reynaud já não contava, Pinto para as aulas de Tomar já fora, Simões para as mesmas em Lisboa, e Malhoa também logo para lá voltaria, o Padre as missas tinha a dizer, o Serra a Câmara e a botica para aviar, e o dr. Vasconcellos já idade ou jeito para tal não tinha, foi Quaresma, o director de serviço, que com tudo teve de arcar [com a promessa, embora vã, de ser revezado por outros de mês a mês]. Estávamos a 1 Nov. 1898.

A acta seguinte, a última que se conhece, data quase de um ano depois [está assinada por seis dos sócios iniciais – Reynaud, como vimos, já o não era; «faltando o socio Manoel Henriques Pinto, por estar auzente», nas suas actividades lectivas evidentemente]. Em 30 de Setembro de 1899 «o sócio Manuel Quaresma d’Oliveira apresentou as contas de receita e despesa feita durante a sua gerencia como Director, e disse que não podia continuar a assumir aquelle encargo, declarando que nas contas não estava incluida a despesa da compra d’um barreiro que fez em seu nome e que punha ao dispor da sociedade para exploração do barro». «Todos os socios se deram por satisfeitos com a direcção d’aquelle socio e approvam as contas por unanimidade…». E, desta vez, «foi deliberado que durante a estação do inverno paralisassemos trabalhos para principiarem no principio da primavera…» e mais um relambório de futuras e boas intenções. 
[Pelo que se depreende, salvo se outra notícia houver, a hibernação ter-se-á prolongado até hoje…]

E foi assim, apesar de todo o esforço, do capital e suprimentos, dos cuidados e ilusões, que, para a História, tudo não terá passado muito além do papel : o daquela dúzia de actas e o destas duas fotografias.
 
José Malhoa, Manuel Carlos Pereira Baetta e Vasconcellos, Luiz Ernesto Reynaud, José Simões d’Almeida Jr., pe. Diogo Pereira Baetta e Vasconcellos; e sentados: Manuel Quaresma d’Oliveira, António d’Azevedo Lopes Serra e Manuel Henrique Pinto.
Todos confiantes no bom êxito da empresa. Figueiró, Agosto/Setembro de 1898.


E sem Reynaud e Malhoa, que ficam de fora neste reenquadramento da fotografia lá de cima, para podermos ver melhor a figura de Quaresma, os mesmos: Serra, Manuel de Vasconcellos, Quaresma d’Oliveira (circunstancialmente aos pés do padre),
 o pe. Diogo, Simões d’Almeida e Henrique Pinto.


Quaresma foi Presidente da Câmara Municipal de Figueiró dos Vinhos. Sobre isto pouco se sabe: um Edital avulso com, talvez, algumas das primeiras preocupações sobre higiene, ordenamento e licenciamento urbano na Vila, e pouco mais. 
Nem se sabe ao certo quando iniciou o mandato. Finda-o com a sua morte. 

O Figueiroense, 26 Jul.1902, p.4


















Apenas outras raras notícias de jornal se referem ao facto. A que nos dá conta, em finais de Novembro, do seu estado de saúde: «O sr. Manoel Quaresma d’Oliveira, digno presidente da camara municipal d’este concelho, tem passado incomodado de saude | Desejamos as suas rápidas melhoras». E, quinze dias depois, a do seu funeral, que dá ainda nota da coroa que a Câmara Municipal depositou junto ao caixão «de saudades, goivos, violetas e fitas roxas, com a dedicatoria: - “Ao seu inolvidavel presidente e sempre chorado amigo – A Camara”».

E não deveremos andar muito longe da verdade se dissermos que terá sido da sua vereação a deliberação da Câmara, de «21 de Junho de 1901», sobre a cedência e protecção ad aeternum, pela «Camara ou quem lhe suceder», do «Carvalho do sr. Malhoa» - um belo exemplar arbóreo que coexistiu anos a fio com o «Casulo» do outro lado da quelha dos Pelomes, que foi abatido em 2007 sem dó nem piedade e, pelo visto, ao arrepio de disposições centenárias. Este outro Edital bem posterior, já de 1920, dá conta daquela deliberação e explicita o seu articulado.



Está visto: o «inolvidável presidente» foi sendo esquecido; o «sempre chorado amigo» viu cedo secarem-lhes as lágrimas em volta; e até as deliberações da sua «Câmara ou quem lhe suceder» foram parar ao caixote do lixo da história.



Em 1897, Malhoa, seu particular amigo, já lhe pintara o retrato.

J.Malhoa. Retrato do Exm.º Sr. Manuel Quaresma de Oliveira, 1897.
Aqui numa foto a cores que me foi enviada, faz largo tempo, pelo meu caro Amigo F.Pires
















Trata-se de um quadro assinado e datado [«1897», por via das dúvidas] que nos mostra Manuel Quaresma d’Oliveira, aos 37 anos, sério mas de olhar fino e vivo, num discreto casaco e colete escuros, onde apenas sobressaem a gravata de seda branca e o alfinete que a pontua. Um belo retrato.
É um óleo que Malhoa levará, na Primavera do ano seguinte, à 8ª Exposição do Grémio Artístico. Sob o nº 97, o catálogo intitula-o «Retrato do Exmº Sr. Manuel Quaresma de Oliveira» e indica-lhe as dimensões «43x52».
Não era qualquer pintura que Malhoa decidia expor no Grémio. Nesse ano, acompanharam o retrato de Quaresma, o «Retrato do Exmº Sr. Conde de Proença-a-Velha» e o «Retrato de madame L» (o de Dona Tereza Leal que Malhoa levara no ano anterior ao Salon de Paris). E ainda, entre alguns mais, «Os Oleiros» (a versão grande, também presente no Salon de 1897), «As padeiras (Mercado em Figueiró)», «As papas» (mas a versão pequena), «A picota» ou «Gosando os rendimentos». Boa pintura, já se vê.
Como se percebe, o Sr. Quaresma foi apresentado aos lisboetas em muito boa companhia.


Há uma lenda figueiroense, chamemos-lhe assim, acerca do «Casulo», que faz de Malhoa um dos irmãos do «porquinho Prático» e de Quaresma uma das «Fadas Madrinha» [a outra será, obviamente, o Serra da farmácia].


Muitas vezes repetida, com diversas variantes, tal lenda diz mais ou menos o seguinte: «…Malhoa encantou-se tanto por Figueiró, que os seus amigos o convenceram a construir aqui uma casa. Azevedo Serra deu-lhe um amplo terreno à entrada da vila, e Quaresma d’Oliveira ofereceu-lhe todas as madeiras necessárias à sua construção…». Nas versões mais “eruditas” e “científicas” acrescentam-se uns conceitos e palavras caras [tipo «fortuna memorial», «valor paisagístico», «vivência cultural», ou assim…] e uma data bem precisa: «1895». Já quem “sabe mesmo”, mas “mesmo” do assunto, não dispensa um precioso “rectificativo”: «pedreiro: Júlio Soares Pinto, marceneiro: Manuel Granada» [acrescem, assim, dois laboriosos «anõezinhos da Branca de Neve» para o quadro da fantasia ficar mesmo completo: - «Eu vou, eu vou… pará tchim pum! pará tchim pum! Eu vou…»]. 


Então vamos lá. E vamos por partes.
Quanto ao terreno, António Serra “deu” coisíssima nenhuma! Malhoa comprou-o! E «pelo preço e quantia de duzentos mil reis» [e mais 19$253 em impostos, selos e alcavalas], a «João Mendes e sua mulher Pulchueria Augusta Pimenta Serra», conforme se pode ler na escritura lavrada a «25 de setembro de 1893» [em quatro folhinhas, quatro e não duas, que se podem hoje ver reproduzidas numa das paredes do «Casulo»]. Azevedo Serra, tal como António Vasconcellos (o do pão-de-ló), limitaram-se a ser testemunhas do acto notarial.
Depois, se Quaresma deu, ou não deu, as madeiras, talvez nunca o saibamos… [que Malhoa pagou algumas, há registo; que o «Casulo» nunca foi um bungalow ou cabana de pau-a-pique, também é certo]. Quaresma terá, isso sim, um outro e bem mais importante papel na ampliação do «Casulo», como mais adiante se verá.
Sobre aquela data “precisa”: «1895». Sabe-se muito pouco acerca da construção do edifício inicial, o tal que «de tão pequenino que aquilo era, [Malhoa] o baptisou com o nome de “Casulo”». Mas sabe-se bem como era: quatro paredes de alvenaria de pedra e cal, uma porta e duas janelas, telhado de duas águas e uma só divisória interior – tudo em perto de 38m2 brutos. Não é, pois, crível que tenha demorado muito a pôr em pé [nem por licenciamento terá esperado…] e, se o não foi logo no Outono de 1893, tê-lo-á sido, muito provavelmente, na Primavera seguinte…
Sabe-se também [se é que com isto se relaciona…] que, em 8 Out. 1895, Malhoa e Quaresma [designado aquele «mestre de pintura», este como «Amannuense da Camara deste Concelho»] apadrinham o casamento de Júlio Soares Pinto com Mª Rosa. [Curiosamente, os registos paroquiais dão-nos Júlio, em 1895, aquando do casamento, aos 25 anos, como «official da Admenistração deste Concelho»; e só o irão referir como «canteiro» já em 2 Jan. 1898, pelo baptismo da filha Julieta realizado ainda na Igreja Matriz antes de ali se iniciarem as obras de restauro, obras em que Júlio seria, e aí efectivamente, um dos artífices]. Se, com isto, se pode afirmar que Júlio Soares Pinto “foi” o «pedreiro» do «Casulo» [mesmo que apenas da construção inicial, e na tal data] … parece pouco, muito pouco.
[Porque, depois, nas obras de ampliação iniciadas por Reynaud em 1898, sabe-se que o mestre encarregado foi um outro: um tal José Ignacio Pereira. Embora o Júlio também por lá tenha feito um ou outro trabalho, pintado um quarto, e tratado do jardim e da horta…]
Por fim, o dito «Manuel Granada». Fica-se sem saber se este Manel será pai, filho ou apenas o espírito de um outro a quem Malhoa chama repetidamente Joaquim... Ao «Joaquim Granada», ao «Joaq.im Carpinteiro», fez Malhoa pagamentos e até lhe comprou um «alfinete» [tal como, na mesma data, um outro para o José Inácio] em reconhecimento dos bons serviços prestados… Prestados pelo Joaquim Granada, evidentemente.

E pronto. Como em todas as lendas, a coisa até tem fundo de verdade. É assim a modos as cautelas da lotaria: nunca acertam na taluda, mas ficamos todos contentes quando têm a terminação.


Voltando a coisas sérias. Ao nosso amigo Quaresma, ao «augmento» do «Casulo» de Malhoa, ao papel daquele nas obras, e à profunda amizade entre ambos.
No ano de 1898, Malhoa chega a Figueiró nos princípios de Junho já com tais obras em mente. Num postal enviado a MHPinto, datado de 16, apresenta-nos pela primeira vez a «Maria dos pintainhos» - a fiel criada Maria Ferreira que o irá acompanhar por toda a vida - escrevendo [os sublinhados são de Malhoa]: «…não foi ficar a tua casa por ter tido trabalho nas obras até ao último dia» [tal «trabalho» seria, bem entendido, o desfazer e o arrumar de toda a tralha existente no «Casulo» para se poderem iniciar as ansiadas obras de ampliação]. Depois, segundo tradição na família Quaresma [e as tradições familiares valem o que valem – sei-o por experiência própria], será em casa de Manuel Quaresma que Malhoa, e os seus, se irão alojar enquanto duram as obras no «Casulo» - tal parece bem plausível [convém, no entanto, não abusar e não tentar alargar o alvará de hospedagem ao período anterior à inicial e pequenina casa de veraneio de Malhoa…].
Poucos dias depois, também Reynaud chega a Figueiró para dar início às obras da Igreja Matriz. E, muito provavelmente, já apalavrado para proceder ao «augmento» da casinha do seu antigo condiscípulo na Academia das Belas Artes. Um dos desenhos originais de Reynaud já o pudemos ver aqui (numa das notas destoutro artigo): o alçado lateral nordeste, assinado e datado de «1898» [infelizmente, sem indicar dia ou mês]. 

Os trabalhos de construção civil terão o seu início aí pelo mês de Julho. Na Igreja e logo no «Casulo». Reynaud risca, dirige ambos os estaleiros, encomenda materiais, contacta fornecedores - amiúde os mesmos para as duas obras [6]. Malhoa permanecerá em Figueiró até aos inícios de Novembro [já vimos que a 1 Nov. 1898 ainda assina a acta da Fábrica de Cerâmica]. Chegado a Lisboa, regista de uma assentada no seu livro «Receita/Despeza»: «Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro» | «Custo do augmento do “Cazulo” até 3 Nº 98 – 1:289$320» | «Estada em Figueiró despeza de casa – 250$000».

Encomenda de cantarias para o «Casulo» em 19 Set. 1898. 
Conforme o copiador de cartas do arq. Luiz E. Reynaud, 
in DIAS, Jorge A. Ferreira. O Casulo ou Chalé de Malhoa. DA/ESBAL, 1984 (policopiado).

Depois [como também vimos antes, e sem se perceber bem porquê] Reynaud dá por terminado o seu trabalho em Figueiró e sai de cena.

Se Quaresma teve de assumir a coordenação das obras da Igreja, também o fará com as do «Casulo» [para além daquela outra história da Fábrica de Cerâmica, recordemos… e tudo isso pelo mesmo tempo!].
Os registos de Malhoa confirmam: «Novembro» | «Ida a Figueiró, contas pagas ao Teixeira – 38$000» | «Paguei ao Quaresma em 28 Nº, contas das folhas d’este mez nas obras do “Cazulo”, fornecimento de canterias, saibro e pedras – 227$170». E durante o ano de 1899 repetem-se os assentos de pagamentos «ao Quaresma por despesas já feitas e a fazer no “Cazulo”» ou por «importancia que elle adeantou…»: em Janeiro 440$000, em Março 300$000, em Junho 538$275, e em Dezembro 251$000. Somas significativas, já se vê, e que demonstram grande confiança entre dois bons amigos.
Durante este ano, Malhoa irá a Figueiró em Janeiro e Março para ver do andamento da obra e fazer contas com Quaresma, e faz estada prolongada de 20 de Junho ao fim de Outubro [assenta então semanalmente os pagamentos das «folhas de ferias» feitos por si próprio aos operários].
Mesmo a finalizar o ano, deixa-nos este significativo apontamento.

Do livro «Receita/Despeza» de Malhoa, últimas linhas do ano de 1899.







E foi assim, por tudo isto, como o Amigo da máxima confiança, como o que realmente coordenou e dirigiu os trabalhos por mais de um ano, que Quaresma d’Oliveira deixa o seu nome definitivamente ligado ao edifício do «Casulo». Não fora ele e talvez a coisa tivesse empancado… Foi por isto. Não por uma qualquer palete de tábuas de solho.

[No ano seguinte, 1900, ainda haverá registo de mais dois pagamentos a Quaresma. Um, a 4 Fev., de 79$000, e um outro no início de Maio: «Dinheiro que mandei para o Quaresma, importância de folhas de salarios do Joaq.im Carpinteiro na execução da mesa de Casa de jantar e armario assim como de miudezas apresentadas pelo Julio e conta do Teixeira – 33$845».
E a fechar o “deve e haver” com Quaresma, ainda em Maio mas a 20, mais dois assentos: «Broche pª a Conceição do Quaresma d’Oliveira – 19$000», e logo um outro que diz às tantas «(…) e brindes pª as pequenas do Quaresma (…)».]

[Depois, tal como Malhoa antecipa na nota do final de ano, os trabalhos da mina e da canalização de água irão ocupar os anos de 1900 e 1901. Mas essa é já uma outra história que, então sim, mete o Serra, dono do terreno onde se situava a nascente, e não é, por ora, p’ráqui chamada.]


No entretanto, a 6 de Dezembro de 1898, nasce o primeiro filho varão do casal Albertina e Manuel Quaresma d’Oliveira. Irá tomar o nome do padrinho, o amigo Malhoa, e os competentes apelidos de família. Terá, para isso, de esperar pela vinda com estadia prolongada de Malhoa e sua família a Figueiró. Isso, só a 20 de Junho do ano seguinte, como já vimos. E logo no dia 26, na «Egreja da Mesericordia» [a do Convento, bem entendido, que a Matriz estava em obras], se realiza o baptismo do pequeno «José Quaresma d’Oliveira» [assim mesmo registado, de nome completo e por extenso, por causa de quaisquer dúvidas…]. Foram padrinhos José Malhoa e a sua mulher Júlia [assinando o registo e nele nomeada como «Julia Augusta de Carvalho Malhôa», em modo imperial portanto, à causa de outras dúvidas].


O assento de baptismo deste primeiro filho varão é, curiosa e sintomaticamente, o primeiro em que, para além da mãe Albertina da Conceição, também Manuel Quaresma d’Oliveira [ambos «solteiros», como vimos ao início] aparece nomeado, quer como pai, quer perfilhando «para todos os effeitos legais» a criança [que, apesar disto, não se livra do estigma «filho natural»…]

Nos baptismos anteriores, no da filha mais velha Aldara (31 Jan.1890 - Nov.1917), no da Hedmea (30 Ago.1892 - c.1929), e no da Maria (16 Dez.1894 - 17 Mai.1976), apenas é nomeada a mãe, Albertina da Conceição, que todas declara «para todos os effeitos legais sua[s] legitima[s] filha[s]». O pai está sempre omisso. Curioso é também o facto da pequena «Aldara da Conceição» [assim e apenas], mesmo de tenra idade, ser das duas irmãs sequentes madrinha.
Contudo, em 7 Jun.1898, a pequena Aldara, já com oito aninhos e a saber ler e escrever, apadrinhará, juntamente com o pai Manuel, um tal Annibal. É então que tem direito ao seu nome completo e, como tal, orgulhosamente o assina.




Ainda sobre o direito ao nome, uma outra nota. Em 1 Nov. 1897, a mulher de Quaresma foi madrinha de um qualquer Alberto. O padre faz o assento, nomeando-a como soía «Albertina da Conceição (…) solteira»; então, nas barbas do padre Diogo, a Srª Dona Albertina, senhora do seu nariz, assina como achou que já era altura: «Albertina Quaresma»! [E o padre lá teve de assinar por baixo…]



Depois do José (6 Dez.1898 - 1 Nov.1975), o casal Quaresma d’Oliveira terá ainda um outro rapaz, a quem foi posto o nome do pai e do avô. Manuel, o mais novo dos cinco irmãos, nasceu a 20 Mai.1902. [Fará a sua vida adulta em Alcobaça, e ignora-se quando morreu.]
 
O Figueiroense, nº258, 16 Ago.1902.


Quando tudo parecia, finalmente, estar a correr bem, com toda uma vida pela frente, Quaresma morre aos 42 anos de idade, repentinamente. Entre a pequenina notícia, de 29 Nov., que refere quase despreocupadamente «tem passado incomodado de saúde», e a sua morte passam menos de quinze dias. A 13 de Dezembro de 1902, Figueiró dos Vinhos e os seus amigos vêem desaparecer um dos seus mais ilustres.
Manuel Quaresma d’Oliveira morre, de morte sofrida, em Coimbra. Deixando a sua companheira de sempre, Albertina da Conceição, e cinco filhos, todos menores, «por quem era immensamente extremoso».

Mais que contar ou relevar este ou aquele pormenor, o melhor é ler o que na altura se escreveu. Um belo artigo, e parece sincero, que dá conta de toda a tragédia.






E, pelo trigésimo dia, duas missa(s) por sua alma.

O Figueiroense, nº279, 10 Jan.1903, p.3




13 Dez. 2018.
revisto e aumentado em 4 Fev. 2019.
anotado a 2 Mar. 2019. LBG

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As NOTAS sequentes (à excepção da última) são já posteriores à feitura do artigo. Servirão, fundamentalmente e de futuro, a quem queira aprofundar o estudo da Família Quaresma e das relações entre os diversos personagens desta incontornável família da história figueiroense. 
Agradeço aos meus caros amigos Débora Passos e Luís Quaresma Ferreira o auxílio, os alvitres para pôr a descoberto e no lugar certo muita desta gente. 

[1]. De José Quaresma e Maria Josefa, casados a 23 Out.1811, nasceram, para além de José e de Manuel (o pai de Manuel Quaresma d’Oliveira), pelo menos mais uma irmã: Maria (5 Abr.1814 - ?).

[2]. Toponímico que será continuado por quase toda a descendência do tio.
José Quaresma Val do Rio (25 Set.1812 – 4 Mai.1896) casou com Maria Godinha, do Bairrão, e ali nascerão os seguintes filhos:
. Luiz Quaresma Val do Rio (1 Set.1841 – 22 Jun.1912), importante comerciante de Lisboa e grande benemérito de Figº dos Vinhos. Sobre as suas virtudes pode-se ler aqui ou ali (conforme se goste ou não do Afonso Costa…).
. Maria de São José Quaresma Paiva (22 Jul.1846 – 16 Abr.1915) que virá a casar, a 19 Ago.1876, com João Lopes de Paiva (e Silva) (c.1850 - 2 Abr.1919).
. Manoel Quaresma Val do Rio (23 Mai.1949 – 7 Nov.1906), tal como seu irmão Luiz, ligado à casa comercial lisboeta «Val do Rio», fundada pelo pai, foi também um generoso benemérito figueiroense. A apreciação contemporânea do personagem (mais monárquica ou já republicana) pode ser feita aqui (2 artigos na p.2) ou além.
. José Quaresma Val do Rio Júnior (3 Jan.1852 - ?) que viria a casar com sua prima Maria Justina Quaresma d’Oliveira.
. e, por fim, António (27 Set.1855 - ?), de quem pouco ou nada se sabe.

[3]. O avô José Quaresma era, tal como a avó Maria Josefa, originário do Casal dos Ferreiros da Ribeira. Era filho de um Manuel Quaresma e de uma outra Maria Josefa, também dali naturais. Tudo indica, portanto, que a família Quaresma tem a sua origem naquele lugar junto ao Bairrão.
O avô José Quaresma terá tido, pelo menos, um irmão: Francisco Quaresma.
Este Francisco Quaresma casará com Maria Dias (ou Maria Godinha), da Aldeia da Cruz, e ali se irá estabelecer e gerar descendência. Dando origem aos Quaresmas da Aldeia da Cruz. Há notícia de três filhos de Francisco Quaresma: Maria (n. 21 Set.1814), Joaquina Quaresma e José Quaresma.
Joaquina Quaresma, com Inácio Dias, da Vila, em 18 Abr.1852 será mãe de uma Justina.
E José Quaresma ir-se-á estabelecer na Ervideira, onde, com Francisca Godinha, do Bairrão, dá origem aos Quaresmas da Ervideira. Em 30 Nov.1859, por exemplo, ali nasce outra Maria de São José
(E assim se vão repetindo os nomes dos e das Quaresmas, para dificilmente percebermos quem é quem…)

[4]. Entre o nascimento de Maria Justina e o de Manuel Quaresma d’Oliveira, há notícia de um outro irmão, José (31 Jan.1859 – 16 Jul.1859), que morreu de tenra idade.

[5]. Do casamento da irmã Maria Justina Quaresma d’Oliveira com o primo José Quaresma Vale do Rio Júnior nasceram dois filhos:
. Aurélia Quaresma Val do Rio (26 Nov.1878 – 15 Fev.1950) que morrerá em Lisboa, em S. Sebastião da Pedreira.
. e José Quaresma Val do Rio (29 Jan.1880 – ?), o filho nascido aquando da morte da mãe e que sobreviverá até à idade adulta, embora se não saiba quando falece.

[6]. Tal como, neste particular, bem refere Miguel Portela in: «A Igreja Matriz de Figueiró dos Vinhos: Um verdadeiro tesouro de Arte. As obras de restauro [1898–1904]». Cadernos de Estudos Leirienses-1. Textiverso, Leiria, 2014. (Pág. 26).