quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Uns dormindo... e o Zé Inácio a matutar

(ou d’«A sesta» à ópera,
passando pel’«O almoço do trolha»)


Sobre José Inácio Pereira, o mestre pedreiro encarregado da obra do «Casulo», sabe-se pouco.
Apenas as ofertas e os elogios de reconhecimento que Malhoa fez questão de registar nas suas notas pessoais, dele nos dão conta: a 12 Mai.1899, «Alfinetes que comprei, um para o Pereira encarregado das obras no “Casulo”» e, em Mar.1900, pelo final da obra, «Compra da espingarda e pertences, para offerecer ao José Ignacio Pereira – d’Ancora [ou será d’Ancos / Anços(?) - ficamos sequer a saber se seria minhoto de longe ou vizinho do outro lado do Sicó…], pedreiro, que derigiu a minha obra do “Casulo” em Figueiró dos Vinhos, pelo interesse, e bom desempenho que tomou nos trabalhos da mesma obra». [os realces são meus]



Além disto que, parecendo pouco, é todavia certo [e desdiz conversa antiga…], é bem possível, embora menos certo, que Malhoa nos tenha deixado o retrato do José Inácio Pereira…   


José Malhoa. A sesta, 1898. óleo s/ madeira, 33x41. MNBA, Rio de Janeiro.

Sobre «A sesta», 1898, pequena e magnífica tábua a óleo no acervo do MNBA do Rio de Janeiro, já muito foi dito [1].
Em duas cartas a José Relvas, datadas de Figueiró, de 8 Ago. e 13 Set.1901, Malhoa descreve o que anda a pintar e o muito trabalho e tempo despendido, porque «a pintura tem que ser muito feita, sem o parecer» - refere; e especifica - «Desde que aqui me encontro, tenho feito (…) a sesta: quadrinho de 30 por 40, com 28 sessões, ainda não concluído…». Concluída «A sesta», esta só seria mostrada na Primavera seguinte, na 2ª SNBA (1902). E vendida na «Exposição de Arte Portuguesa» organizada no Rio no Verão daquele mesmo ano – foi então adquirida, tal como uma dezena de outras obras portuguesas, para a colecção da Escola Nacional de Belas Artes brasileira. 

Ora, apesar de tudo isto, de ainda andar de volta do quadrinho em 1901, de apenas o mostrar e só o vender em 1902, Malhoa fez questão de, junto à sua assinatura, firmar como data «1898» [o que, ainda hoje, causa engulhos e asnáticas datações].
Malhoa firma «1898» porque, muito provavelmente, fora essa a data da tomada do natural, a do registo da cena que depois, com tempo, diligentemente burilou, foi a data que Malhoa quis deixar recordada - a do começo das obras «do augmento do “Casulo”».

Vejamos então «A sesta», 1898, com um outro olhar. 


Ao longe, o convento do Carmo compõe a paisagem e diz-nos que estamos em Figueiró.
Mais perto, na orla e à sombra do pinhal do Serra, acabado o jantar [o almoço, diríamos hoje] partilhado em comum do alguidar de loiça coimbrã, dessedentados pela fresca água da mina na cântara de barro vidrado, dois trolhas gozam a merecida sesta – um de borco, outro de papo pró ar. Enquanto estes dormem, o Zé Inácio, mãos calejadas e corpo cansado, ainda cisma e matuta.  
Não como «o bronco e esmagado trabalhador dos campos, a passiva e resignada criatura que parece ter pedido ao boi, seu companheiro de trabalho, a sua passividade e resignação» - no dizer diletante do crítico de O Século em 20 Abr.1902 – mas, bem ao contrário, como o mestre pedreiro interessado no bom desempenho e condução da obra, que discorre na melhor maneira de resolver a pedra e cal o que mostra aquele bonecoem seu entender mal amanhado [já se sabe], que o arquitecto por ali deixou sem mais indicações [o costume, é evidente].
Ao lado do Zé Inácio, repousa ainda um grosseiro chapéu de junco – forte e feio, dos que aguentam a padiola de transportar pedras e massas que qualquer pedreiro tem de carregar  [não se trata, portanto e como parece claro, de um usual e leve chapéu de palha camponês…].

Foi isto que Malhoa pintou. Entre 1898 e 1901, durante uma trintena de sessões. Um belo Retrato do José Ignacio Pereira e seus camaradas.
Ou, se preferirem, uma versão avant la lettre de «O almoço [ou jantar] do[s] trolha[s]». [Saudações, Mestre Júlio!]



[E, a ser isto verdade, para os que acham que “naturalismo” e “realismo” se diferenciam consoante se representam camponeses ou operários, aqui têm um belo dilema para ir resolvendo…
Entretanto, sigam a doutrina do Evaristo, o do Pátio do mesmo nome, cujo postulado não anda longe daquela.]



9 Out.2019. LBG.

__________________
[1.] Sobre o assunto, entre outros, ver:
SALDANHA, Nuno. José Malhoa. Tradição e Modernidade. Lisboa: Scribe, 2010, p.50 e p.152. 
Idem. José Malhoa. 1855-1933. Catálogo Raisonné. Lisboa: Scribe, 2012, p.130.
E, principalmente: 
VALLE, Arthur. Os “Malhoas” da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Comunicação ao «III Colóquio Internacional de Arte em Portugal e Brasil nos séculos XIX e XX”, Lisboa, Nov.2016, F.C.Gulbenkian. (disponível aqui)





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