quarta-feira, 27 de maio de 2020

DA PINTVRA ANTIGVA [em paredes]

e

Da Fabrica que faleçe ha [Villa de Figueiró] [1]


Auto-retrato de Francisco d’Olanda, dando o seu livro à malícia do tempo, in De Aetatibus Mundi Imagines











.
Eu, se calhar, fazia melhor em estar calado.
Mas acabo de pagar o IMI. E fi-lo de uma só vez!
[Que me lembro sempre de uma conversa com a Senhora Vereadora, e minha querida amiga Marta, em que ela se lamentava desta coisa das prestações atrasar os recebimentos do Município. Faço-o em Figueiró, com outras Câmaras aproveito a benesse.]
Assim, porque contribuindo, ainda que com umas centenas de euros, para a coisa, sinto-me no direito de também aqui mandar uns bitaites.

Diz que a «Câmara Municipal [de Figueiró dos Vinhos] recupera as cores originais do edifício e das janelas». Depois, tanto se fala em «recuperar o tom original das paredes», como na «retoma da cor específica original» [coisas, tom e cor, bem distintas]. Diz também que tal «mereceu demorada pesquisa». E pespega-nos com uma foto dos velhos Paços do Concelho (creio que c.1905).
Nessa foto, apesar de ser a p&b (ou sépia, no original), percebem-se os paramentos exteriores pintados num tom fortíssimo, e pode-se entender a cor como uma caiação à base de uma terra escura – provavelmente não um ocre (que na foto seria por certo mais claro), mas possivelmente um almagre (oxidum rubrum ferri) [2] ou outra terra vermelha.



Para que todos percebam, sem ser preciso «demorada pesquisa» ou deitarmo-nos a adivinhar, e porque foi uso generalizado por todo o séc.XIX em palácios, conventos e outros edifícios públicos, em linguagem corrente, falo de “amarelo quase torrado” (o que, parece, não seria) ou “vermelho sangue de boi”… [Também se usou, embora menos, o azul e, mesmo, o verde, variando muito, então sim, a intensidade do tom].
É, pelo menos, o que a foto nos mostra.

E isto, a ser assim, assusta! Assusta, e muito!

Mas pode ser que não seja… pode a foto ser apenas uma ilustração de circunstância…
[Isto pensava eu! até voz amiga me chamar a atenção de ali, na outra foto, por debaixo dos panos (os dos andaimes), já se ver a fachada posterior enrubescida de vergonha. A coisa vai mesmo de vento em pôpa!?… Mas prossigamos, como se ignorantes fossemos]

Afinal, qual seria «a cor específica original»? E de qual «edifício dos Paços do Concelho» estaremos a falar?




A mais antiga imagem que conheço [mas isto sou eu, um não conhecedor] do edifício da Câmara é uma gravura a p&b, publicada na Illustração Portugueza em 12 Jul.1886.
Não sabendo se por fantasia do artista ou por ter sido mesmo assim, vemos um edifício simples mas digno, bem de finais de XIX. Aparentemente com belas cantarias trabalhadas: nos cunhais, nas pilastras que enquadram o módulo central de entrada, no soco do embasamento. Aparentemente também em cantaria seria o listel que marcava a separação do andar nobre e do piso térreo. [Ora, nada disto veremos nas fotos posteriores?!]. Também as cantarias que emolduram os vãos aparentam, na gravura, uma bem maior imponência face ao que veremos depois em fotografias…. Igualmente a caixilharia apresenta-se aqui bem mais rica do que a veremos fotografada. [Sobre tudo isto, não é crível que tenha havido mudanças tão radicais ente 1886 e 1897 ou 1905…].
Olhando a gravura, e face à profusão de cantaria, pensaremos imediatamente que o revestimento do paramento não fosse outro que caiado a branco…
[Mas, lá está, tudo isto pode não passar da fantasia do artista… e a realidade ter sido outra bem diversa...]



De 1897, publicada n’O Século a 18 Jul., há uma outra. Mais próxima das fotos que virão a seguir, pelo que as considerações serão as mesmas.
Quanto à cor, esta gravura deixa-nos completamente em branco!





Posteriores àquelas gravuras, existem imagens da antiga Casa da Câmara já em fotografia [suporte onde a fantasia tende a ser mais comedida]. Eis duas [e aqui já as paredes são escuras]. Um postal editado pela «Casa Godinho» c.1905, e um outro já bem posterior, finais da década de 20, salvo erro.
As diferenças principais estão na iluminação pública – a primeira mostra lampiões baixos para serem acesos a lume e manualmente, a segunda mostra candeeiros inacessíveis, possivelmente já eléctricos [e ainda um poste eléctrico ou telefónico à esquina do sr. Joãozinho da Praça]. Na primeira foto ainda lá está a coroa sobre o escudo nacional, na outra o símbolo monárquico desapareceu.
Depois de vermos a primeira gravura, surpreendemo-nos com estas duas fotografias. Até parece que são de uma outra coisa!? A riqueza aparente das cantarias desapareceu quase por completo. Parecem resumir-se às molduras dos vãos [e mais pobrezitas, por sinal] e ao soco [pouco maior que um rodapé]. Cunhais, pilastras, cornijas, empenas do frontão, tudo parece agora feito em massa ou, quando muito e nalgumas partes, num mísero forro de pedra serrada… [ou nem isso].
[Percebe-se agora que a gravura de 1886 não passou mesmo da fantasia do artista e não deverá ter alguma vez correspondido à verdade. Ou, quem sabe, corresponda a um esboço do projecto idealizado…?! Portanto, nunca saberemos se alguma vez os velhos Paços do Concelho foram caiados a branco…]
Por outro lado, nestas duas fotografias, vê-se perfeitamente que os panos de reboco eram pintados numa cor forte, que as escorrências da água sob os peitoris lá iam marcando a pintura ou, vinte anos depois, que esta se encontrava toda manchada a descolorir… [o que é perfeitamente normal e expectável].
Fosse como fosse, fácil é perceber a razão da Casa da Câmara ter sido caiada a almagre [ou outra coisa parecida]. Confrontada então pela massa imponente dos três pisos de elevado pé direito da que fora a antiga Torre dos Souza, tendo quase às ilhargas o Solar, de um lado, e a Matriz do outro, à pobre Casa da Câmara só a força de um forte colorido podia emprestar presença e dignidade inerentes ao seu lugar central no Largo mais importante da Vila.

A velha Casa da Câmara, entre o Solar e a Matriz, tendo pela frente o que restava da Torre 
dos Vasconcellos e Souza. Só mesmo aquela corzinha a safava…



O truque da cor nos edifícios sempre fez milagres [ou antes pelo contrário] e é coisa sabida há muito, muito tempo. [Os nossos bisavós sabiam-no, e não eram assim burros de todo…]

Ficamos é sem saber se sempre assim foi, ou se e quando terá mudado de cor… E, finalmente, qual seria exactamente essa cor e qual o tom? [mas, isto, deixamos para quem sabe…].

Passando trinta e poucos anos em Monarquia e toda a primeira República, aquela fachada simples mas de escorreito desenho, aquele rectângulo ao baixo coroado por um pequeno frontão aberto no centro, aquele volume modesto mas de forte colorido lá foi cumprindo funções - quer enquanto edifício público quer como fecho urbano do nascente da Praça. Meio século passado em tais serviços, vieram tempos novos. E logo tomou a Câmara o dr. Barreiros.
«Simbolisa o desleixo, o abandono dos povos, o atrazo do país» - assim se referirá ele ao velho edifício.

Certo é, dez anos passados do 28 de Maio [está agora a fazer 84 anos], o dr. Barreiros e a sua Comissão Administrativa apresentavam aos figueiroenses os novos Paços do Concelho. «Símbolo de dura luta (…) que a comissão administrativa da Câmara Municipal tinha reconstruido e ampliado, e que um incêndio devorou na noite de 28 para 29 de Maio de 1936» - dirá a propósito.
Não durou muito, portanto. Nas vésperas da sua inauguração, já com grande parte do recheio e dos arquivos públicos instalados, boa parte do novo edifício ardeu. Assim foi.

Na verdade e simplificando, tratava-se do velho edifício com mais um andar em cima. Ocupava exactamente a mesma superfície de terreno, a frente apresentava os mesmos sete vãos, as ilhargas os mesmos quatro. Em vez de dois, tinha três pisos. Talvez mais uns aproveitamentos sob o telhado. E possivelmente bastantes alterações interiores.
A única fotografia que se conhece [quero dizer, que eu conheço] é esta, publicada no livro Doze Anos de Administração Municipal (1930-1942), escrito por [ou para] o dr. Manuel Simões Barreiros. E mostra o edifício logo após o incêndio.



[Como qualquer um já percebeu, Barreiros reconstruiu e ampliou o velho edifício; este, praticamente pronto, ardeu; depois, como veremos adiante, o dr. Barreiros voltará a reconstruí-lo de novo, ali por 1940/42. Uma história dramática, de perseverança, como era apanágio de Barreiros, mas simples e clara – ou não?!
Pois esta não é a história que se pode ler na placa que lá está à porta?! Mistérios de profundidade conhecedora - é o que é.]

Olhemos a fotografia.
Aparentemente o edifício estaria pintado de branco.
As janelas do piso térreo parecem ter ainda as mesmas cantarias. A entrada faz-se agora sob um pórtico abobadado e ligeiramente projectado para o exterior, sobre o qual assenta o varandim do Salão Nobre. O pórtico, tal como o arranque dos cunhais, parecem ser feitos em aparelho de pedras almofadadas – na verdade, serão em massa fingindo tal aparelho.
No andar nobre, os vãos parecem ser ainda os mesmos, mas com algumas alterações. Em cada corpo lateral, a janela do meio foi rasgada em sacada. Todos os vãos deste andar aparecem agora rematados superiormente por arremedos de frontões, meio neo-joaninos, e que parecem ligar-se ou prolongar a cantaria das molduras [as partes ardidas, mostram que também aqui era a fingir].
No segundo andar, afinal o novo piso, os vãos aparentam ter menos altura [um pouco à maneira dos palácios de setecentos].
As pilastras do corpo central e as dos cunhais parecem ser, ao longo dos andares, em massa e pintadas de escuro.

Logo, logo após o incêndio dos novos Paços do Concelho, ainda o borralho fumegava, já se discutia nos jornais sobre a bondade da reconstrução do edifício sinistrado ou, pelo contrário, as vantagens de construir noutro local.
[Houve mesmo «Projecto de Urbanização do Local Escolhido para o Novo Edifício dos Paços do Concelho de Figueiró dos Vinhos», tal como uns estudos para o próprio e dito cujo. Tudo muito Deus, muita Pátria e ainda mais Autoridade, como era de função. Para além dos novíssimos Paços do Concelho, o plano previa uma nova Igreja, tão grande como a Matriz, Escolas e outros equipamentos. Fora a Escola e a Casa do Povo, tudo não passou do papel, e ainda bem.]
No entanto, paralela e avisadamente, lá se iam fazendo as reparações no edifício ardido. No relatório «A gerência municipal de 1940», datado de 2 Nov. desse ano, Barreiros diz às tantas «reconstruíram-se, em parte, os antigos Paços do Concelho, onde já funcionam tôdas as repartições públicas» (BARREIROS, op.cit. p.106). Três anos depois, ao publicar no livro esta fotografia, dirá «é um símbolo de perseverança, da vontade de vencer e um sinal de vitória – representa os Paços do Concelho, reconstruídos de novo e tal qual se encontram em 1943».



Salvo eventuais alterações interiores [que, agora e para o caso, nada interessam], o que vemos é o mesmíssimo edifício de 1936. Talvez sejam outras a urnas que, sobre a cornija, rematam as pilastras e os cunhais. E parece terem desparecido, ao nível do andar nobre, seja lá o que fosse que unia visualmente as vergas de cantaria aos frisos arremedando frontões joaninos. Os frisos, em massa percebe-se agora, por lá ficaram, desasados e meio ridículos…

E é este edifício [ou melhor, o ampliado em 1936] que chegou aos nossos dias.



Chegados nós aqui, é tempo de repetir a pergunta: de qual «edifício dos Paços do Concelho» estaremos a falar?
Porque, como toda a gente perceberá, o edifício não é o mesmo. Houve um, com dois pisos, que durou perto de 60 anos. E há outro [se bem que acrescentado sobre o primeiro] que assim existe há longos 84 anos.
Houve um com determinada volumetria. Há um outro cuja volumetria é, grosso modo, 50% maior.
[Eu sei que a matemática não é bem o forte, mas vejam lá se os números, os do tempo e os do espaço, lhes entram nas cabeças…]

Tentemos visualmente. 
[Já nem digo para irem experimentar aquele vestidinho larocas que levaram ao primeiro baile do liceu… agora, uns bons aninhos depois e aqueles quilinhos a mais, percebem como ficariam ridículas/os?]
Passa-se o mesmo com os edifícios. De melhor ou menos bom desenho [e, francamente, o outro era bem melhor que o actual], merecem também respeito e consideração. E ataviam-se de acordo com as suas características e circunstâncias.
Lembram-se de, lá atrás, explicar as razões para a velha Casa da Câmara ter sido pintada com o tal almagre forte? Por ser modesta em altura, confrontada pelo enorme volume da desaparecida Torre, pelas fortes presenças do Solar e da Matriz, e que só o peso de um forte colorido lhe pode dar a presença e dignidade inerentes ao seu importante lugar no Largo central da Vila. E de, em comentário, dizer que os nossos bisavós não eram assim burros de todo… Lembram?
Pois é. Agora será precisamente ao contrário. O novo grande volume do edifício da Câmara, pintado a “sangue de boi” (ou coisa que o valha), irá esmagar tudo o que em volta se implanta. [E nós, bisnetos e trinetos dos velhos sabidos, somos, pelo visto, meio burros. Percebemos pouco da poda, e gostamos de nos armar em parvos.]

Nem vou perder tempo com muitas considerações técnicas sobre o comportamento das actuais tintas, em especial as de forte colorido, quanto às escorrências e às manchas da água das chuvas, sequer sobre o comportamento dos pigmentos vermelhos sob os raios ultra-violetas do Sol… Não vale a pena. Logo se verá.

O que está feito, está feito! E seja o que Deus, nosso Senhor, quiser
Lhe peço que não haja muitos a virem ali da dos Passarões, rua da Torre acima, já bem aviados, imbuídos ainda de alguma afición, que marrem com a coisa e resolvam citar lá do meio da praça: - Ó voi! Ó ba… Eh, bicho lindo! Era dispensável. 
E não havia necessidade.


27 Mai.2020. LBG.
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[1]. Glosa a dois títulos de Francisco d’Olanda (1517/8-1584/5):
Da Pintura Antigua. Lisboa, 1548.
Da Fabrica que faleçe ha Çidade de Lysboa. Por frãçisco dolãda, Anno de 1571.
[2]. ASSIS RODRIGUES, Francisco de - Diccionario Technico e Historico de Pintura, Esculptura, Architectura e Gravura. Lisboa, Imprensa Nacional, 1876.

sábado, 16 de maio de 2020

Um almoço no «Leão d’Ouro»

de A procissãoBasta, meu pai!

Ao jeito de amuse-bouche, como agora se diz, só para abrir o palato ao que ainda há-de vir…

Recordando o «Grande almoço de confraternização e de homenagem ao pintor José Malhôa» realizado «no Restaurant Leão d’Ouro em 17 de Junho de 1928». Eis o menu, com capa de Julião Machado (1863-1930): duas páginas interiores, uma com a designação do acontecimento [o atrás transcrito], outra com a «Lista» [à portuguesa] dos comes e bebes, e a conta-capa onde se fica a conhecer a tipografia «Imp. Libanio da Silva – Lisboa».



Na capa, Julião Machado redesenhou o Camões [o de Malhoa para o Museu de Artilharia (1907)], mão esquerda ainda no pomo do espadim, a direita já erguida, não segura o gorro emplumado, saúda Malhoa empunhando uma taça de champagne [«vinho espumoso» de acordo com a portuguesíssima «Lista»].
A legenda confidencia-nos o brinde do vate. «Luiz de Camões: - A José Malhôa, o épico da luz e da côr de Portugal!»


A «Lista» do almoço é igualmente bem disposta. Títulos de conhecidos quadros de Malhoa ilustram cada parte do repasto [espero que consigam ler…].


Por fim, um instantâneo do acontecimento.
A sala do «Leão d’Ouro» [a inaugurada em 1885, evidentemente]. Ao fundo, à direita, lá estará o quadro do Columbano «O grupo do Leão» [os reflexos não deixam ver, mas é]. E, para cá do arco, a “Paisagem com ribeiro” do Ribeiro Cristino.
No relógio bate quase a uma e meia. Os convivas acabados de sentar, as garrafas de Colares velho perfiladas, já abertas, ainda intocadas, os criados de mesa igualmente perfilados. Tudo a postos para o início da  função.
De oculinhos redondos e a olhar para nós, reconhece-se imediatamente Agostinho Fernandes.
Malhoa deverá ser o quinto mais além [quase só lhe vemos a cabeça, já com ralos cabelos, adivinhamos o resto]. Para cá dele, de barbas, talvez António Lobo da Silveira…
E chapéus, muitos chapéus!
[Os palhinhas, então, são imensos! iguais àquele de «À beira-mar» que, segundo ouvi dizer, já deviam estar fora de moda há um ror de anos…]


Esta é uma fotografia que circula por aí com frequência. Já a vi dita como de «1935»!? 
[E, se calhar, é mesmo, se nem vemos o Malhoa!? Lá está o gajo a aldrabar-nos... - dirão vozes que não chegam aos céus.]
Pois, olhem bem para as garrafas de Colares. As duas junto à cara do Fernandes. Vêem ali o nosso Camões, taça erguida, a saudar os convivas?!






Ou aqui, logo no primeiro plano, sobre os pratos destes comensais: lá está o vate desenhado pelo Julião Machado!





Assim é. Aqui tudo é certinho. E, se querem chatear, aproveitem... o Camões.

Saúde! e bom Almoço.

16 Mai.2020. LBG.

domingo, 3 de maio de 2020

Por caminhos do Cabril (I)

Fundeiros, Cimeiros ou do Meio, os Escalos

(do 365 ao desenfastio)

Um 365, à mesa nove! – não há empregado de mesa que se preze que o não tivesse gritado ao balcão do restaurante ou outra casa de pasto.
Quer dizer, havia. Hoje em dia os mais novos já não saberão… Mas sabem-no o sr. António, o Zé, o Tino, o sr. Américo. E isso, a mim, chega.
Muito antes da proliferação dos doces da casa com mais ou menos natas, das babas-de-camelo e suas variantes, dos quindim e brigadeiro agora à conta da imigração brasileira, antes mesmo da praga do molotof que virou quase monopólio, antes de tudo isto, a sobremesa era invariavelmente e salvo situações excepcionais: ou fruta ou pudim.
A fruta era a da época, bem entendido, que não havia cá coisas importadas ou esquisitas. O pudim era o simples mas fiel pudim flan. Tirado na própria altura da forminha de alumínio [havia quem preferisse comê-lo na forma], a escorrer caramelo e a tremelicar sobre o pires na sua breve e derradeira viagem até à mesa. Feito na casa, com mais ou menos ovos, leite e outros cuidados. Veio mais tarde a facilidade do pacote para dar cabo de tudo – embora, se o pacote fosse o do chinês, o «mandarin», a coisa continuasse a ser uma alternativa decente.
E assim, por ser a única coisa que se mantinha inalterada na carta de menu o ano inteiro [a fruta variava conforme a estação], sete dias por semana [não havia dia de fecho], trinta por mês, trezentos sessenta e cinco ao ano, assim ganhou o epíteto.
Evidentemente acabava por ser um enjoo.

No entanto, ainda agora, volta e meia [mas só volta e meia] depois dumas favas à portuguesa ou de um pernil assado pelo Tino [já apertam as saudades!] se a gorduraça toda se não desfez com o tinto, e quero coisa pouca para a tirar do palato, nada melhor que fazer sinal ao António, proscrito atrás do balcão – Ó sôr António, um 365 e duas colheres! - E lá vem ele, todo satisfeito, bigode tremendo ao ritmo do pudim – Hã, hã, e vai lá logo? quarenta mil… hoje são quarenta mil.


Passaram há dias os 165 anos do nascimento de Malhoa. Pois eu só os vi servirem 365 !?
Pela tricentésima sexagésima quinta vez, vi os mesmos quadros do costume [e, quando não são quadros do celebrado, insistem num que nem lembra ao diabo e devia ser proibido – mas ele há gostos para tudo…], as mesmas fotos do costume, os mesmos vídeos do costume, as mesmas conversas do costume.
E enjoa um pedacinho. Mete fastio.
Conforme a capela, a claque [diz-se «grupo organizado de adeptos», eu sei], conforme a tasca, invariavelmente, a pagela é a do santinho costumeiro, o cromo é o do Eusébio [com as cores do União de Tomar], o pudim, o servido nos anos anteriores. Repetindo a receita e, até, os mesmos enganos [se emendam uma linha, no parágrafo seguinte lá continua a mesma criatura com o nome trocado – sinal que nem se lê o que se escreve, sequer que o escrito é lido por alguém, atento pelo menos – é assim como deixar ir também aquela gema duvidosa prá tijela… o resultado já se sabe].
Meu rico sr. António! [mesmo que, à noite, só estejam vinte ou quinze mil gatos pingados, o seu prognóstico é bem mais acertado...]


Urge desenjoar.
E, para desenfastiar [à falta daquelas lulas] o melhor é coisa nova.
Não julguem que trago bavaroise ou receita francesa, sequer umas fatias de Tomar meio deslassadas [as bem feitas, são bem boas!], tampouco uma bela e rosada lagosta da beira-mar com muita mayonnaise mas talhada. Chega o que chegou.
- Ó sôr António, c'os cafés, traga daquela amarela… a ver se isto vai lá…
É já, é p’ra já. E p’rá doutora, o costume, hã?

Experimentemos, então, receita simples, das antigas, quase caída ao esquecimento.
Subamos à região do Cabril, um pouco ao lado de Figueiró. Ali, à beira do Zêzere, por Vale de Góis, come-se bom peixe do rio. Agora, com a barragem, é rei o achigã, espécie importada das américas, se de bom tamanho, grelhado e com aquele molho verde é do melhor! E o velho empregado simpático.
Ao tempo de Malhoa, a coisa era mais simplória, sem a barragem, apenas peixinho frito: uns barbos, umas bogas, uns bordalos ou uns escalos quando maiorzitos. Pois é isto mesmo!
Tomemos a velhinha, agora na moda, EN2 e rumemos para norte. Passada a vila do Pedrógão Grande, uns quatro quilómetros depois, ainda antes da Venda da Gaita, vire-se à esquerda. Já vamos encontrar os Escalos, primeiro os Escalos Fundeiros, logo depois os Escalos do Meio, mais acima os Escalos Cimeiros…


E eis a «Aldeia dos Escallos», pintada por Malhoa, algures por aqui, no ano da graça de 1885.


Coisa rara, pouco vista! Para muitos, tal como eu, por certo pela primeira vez.
E, isto sim, é serviço público! Novidade para todos. Remédio para a vista. E sempre desenfastia…

Trata-se de um quadro apresentado na 5ª exposição de Arte Moderna (a do Grupo do Leão, de 1885) e do qual apenas era conhecida a gravura publicada n’O Occidente, nº256, de 11 Fev.1886, p.32. Pelo menos a crer na prolífera e variada literatura malhoesca [e que eu saiba].



No mesmo jornal, à p.27, fez Monteiro Ramalho a devida apreciação a esta e às restantes obras que Malhoa então mostrou. «É uma obra de primeira ordem» escreveu sobre esta, desenvolvendo: «realisa admiravelmente o lugarejo beirão, mal caiado, desmantelado, tendo perto a corrente fraca d'um pobre ribeiro limoso, e por traz as enormes ramarias copadas d'um borque de carvalhos».


E, como se percebe pela legenda da gravura, o quadro foi comprado pela rainha. Pela Senhora Dona Maria Pia de Saboia, evidentemente [1].


Agora, se o lugar registado por Malhoa era nos Escalos Fundeiros, nos do Meio ou nos Cimeiros, sinceramente, não sei. Passado quase século e meio muito mudou. E, embora o número de habitantes possa não ser hoje muito maior que então, as construções são de certeza mais e bem diferentes daquilo que eram. Mas foi por aqui, é certo.



Esta fotografia pode sugerir qualquer coisa. Mas é muito subjectiva, tirada ao sentimento. Tem já uns quatro anos. Foi, a crer no registo digital, captada a 30.3.2016. Já à saída dos Escalos Fundeiros, após várias voltas ao lugar, onde nada despertara atenção quanto à imagem que levava na cabeça [que se resumia então à gravura d’O Occidente]. Sem mais ilusões e no caminho de regresso, foi parar o carro e disparar - convicto que a tomada de vista não seria aquela, apenas para registar a paisagem, a atmosfera e o enquadramento geral do povoado. Sugere, no entanto.

[A referir ainda que a paisagem registada na fotografia deverá ser hoje bem diferente. Ano e pouco depois, terá sido por ali a origem do grande incêndio que devastou toda a região… Segundo peritos oficiais, foi ali encontrado o tronco de árvore calcinado, alegadamente atingido por um raio, a origem à tragédia. Um velho carvalho seco, disseram. Vai-se a ver, ainda foi um daqueles além, pintados pelo Malhoa…]


Então, mas e o quadro? donde desencantaste a imagem? – estará a perguntar a curiosidade do leitor.
Pois eu digo. Desta vez posso dizer, que o quadro é meu, e é seu, a bem dizer é de nós todos. Mas está nas mãos do Centeno [esse mesmo, o conhecido «Ronaldo do Eurogrupo», o que nos trata dos impostos]. Faz parte de uma coisa que se chama «Fundo de Pintura do Ministério das Finanças».
E para o descobrir, não julgue, caro leitor, que lhe basta reler - sempre com prazer - as obras do professor França, ou folhear de trás para a frente todos os livrinhos e álbuns editados pelo Montez, consultar cuidadosa e meticulosamente um qualquer Catálogo raisonné, e por aí fora… Acredite, não vai encontrar! Tem mesmo de se debruçar a sério na interessante bibliografia dos relatórios e contas, dos anuários e assim, do Ministério da Finanças.
Aí, sim, a ilustrar uma dessas apaixonantes publicações, pode encontrá-lo. E com as indicações todas: «Aldeia dos Escallos», José Malhoa, 1885, óleo sobre tela, 149x105 cm [aqui é que começo a ter as minhas dúvidas: para lá das medidas postas ao inverso do usual, fico com a sensação de estarem exageradas, pois o quadro não deverá ser tão grande (eu depois explico…), posso estar enganado, mas talvez o hajam medido pela moldura…].
Quanto à imagem.
Elas são duas. Uma amputada, a outra exageradamente alargada. Já se sabe: designer que se preze [e não tenha levado nas orelhas a tempo] pouco liga à integridade dos quadros – aquilo não passa de mais um boneco – precisa é que a página fique equilibrada (seja lá o que isso for). Daí, zás, fit to page e está a andar… nem que um quadrado passe a ser um rectângulo tão comprido como o combóio da Azambuja. Ou, então, corta aí esse pedaço que não faz falta nenhuma e só está a chatear
À imagem que mostrei acima, tive de lhe fazer umas manigâncias, juntar fermento, deixar levedar a ver se crescia, para a conseguir pôr mais decentezinha. Tudo a olho, sem certezas, como se percebe.


Mas é triste. Bastante triste, não se saber destas obras [por certo de muitas mais] que enxameiam gabinetes e salões [e muito bem, diga-se, que por lá estarão muito bem] sem que haja um inventário, sem que se saiba onde param, ou o que na verdade são. Não se percebe. Não se percebe o que fazem a DGPC, o Instituto dos Museus [ou lá como se chama agora], nem para que serve afinal a Matriznet [também de quarentena por estes dias, ao que parece]. Idiossincrasias do sistema, dir-me-ão.

É por isto, quando precisam algo de novo para além dos 365 do costume, é mais simples virem solícitos aos colecionadores, aos particulares – Precisava da sua ajuda: aquele quadro de fulano, assim e assado, sabe de quem é? acha que mo consegue? arranja-me o contacto?
Pois, é bem mais fácil. E, por norma, há sempre toda a boa vontade. Mas já nos aproximamos do modo Brísida Vaz, o da casa de meninas. 
Talvez seja altura de pôr as coisas como deveriam ser. E sabermos, afinal, qual é o nosso património comum.


3 Mai.2020. LBG.

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[1]. Sem querer dar lições de História [em tempos de confinamento, deixo isso à nova “telescola”] é bom que se entenda o seguinte:
1. Entre meados de Dez.1885 e meados de Jan.1886, a altura em que a 5ª exposição do Grupo do Leão esteve patente e, consequentemente, a rainha teve ocasião de comprar o quadro, como efectivamente, e a crer no dito pelo jornal de 11 Fev.1886, o terá comprado, em todo esse período e por mais três anos, em Portugal só houve uma rainha: a Senhora Dona Maria Pia, a mulher do rei D. Luiz I.
2. Por essa altura, a Menina Dona Amélia d’Orleães (1865-1951) ainda não havia posto pé em Portugal, estava solteira, sequer era duquesa de Bragança, tampouco rainha de Portugal. Terá chegado à Pampilhosa a 18 Maio de 1886; casou com D. Carlos, o duque de Bragança, a 22 Maio 1886, tornando-se assim duquesa; e só seria rainha quando o marido foi aclamado rei, em 28 Dez.1889, após da morte de D. Luiz.
3. Deste modo, é de todo impossível que o quadro, alguma vez em seu «historial», possa ser considerado como propriedade da «Rainha D. Amélia (1885)».