(mais uma
crónica de “M. Henrique Pinto”)
Como já foi dito e redito, de 1890 a
1896, “eu” e o “meu” amigo Malhoa passámos em revista a vida dos cachopos que, entre
a Fonte do Cordeiro e o Chão da Amoreira, em Figueiró dos Vinhos, por ali cresciam,
por aquelas terras, entre matos e bosques, brincavam e labutavam.
Sobre essas pinturas Malhoa deixaria mesmo escrito: «pintados em Figueiró dos Vinhos, na Fonte do
Cordeiro, servindo de modelo para os […] quadros o[s] filho[s]
do Eduardo, então rendeiro da Fonte do Cordeiro, propriedade da família
Serra».
A primeira
vez que os trouxemos a Lisboa, à Exposição inaugural do Grémio (1891), eram
apenas o Noé e a Preciosa os protagonistas. Os dois manos retratados pelo
Malhoa em Noé e Preciosa, 1891, precisamente. O rapaz por “mim” apanhado
n’A caça dos taralhões, 1891. Ambos colheita do fim de verão anterior,
como é evidente.
Agradaram. Ao
público e à generalidade da crítica. Particularmente o “meu” amigo Noé n’A
caça dos taralhões.
E tanto
agradou, que até aconteceram umas coisas meio estranhas. Contrariando os famigerados
estatutos acabadinhos de aprovar, nessa primeira exposição não seriam
atribuídos quaisquer prémios.
A talhe de foice, já que vem a
propósito, respiguemos alguma da crítica, a então “mais consensual”, digamos
assim. [1]
Depois de muitos
elogios ao “meu” quadro, à figura, à paisagem, lá se desencanta «um leve
senão, um defeito de desenho; aquela perna esquerda é por demais comprida. No
que diz respeito à paisagem só lastimamos que sendo tão bem feita, se recinta immenso
da falta de côr local.» [sempre «a côr local»!? como se a esperta criatura alguma vez houvesse posto pé em Figueiró… e da «côr local» conhecesse mais
que a do Jardim da Estrela…]. Conclui dizendo: «E é sobre este ponto que
desejamos chamar a attenção do sr. Pinto que na verdade nos authorisa a
esperarmos muito da sua bôa vontade e manifesto talento, e a quem por esse
motivo colocamos em primeiro logar» [o sublinhado é meu, para se
perceber bem].
Logo depois,
seguem-se os habituais [e merecidos] elogios ao Silva Porto. Mas, hélas!, às
tantas diz-se isto: «De todas as 15 telas d’este artista, a que mais chama as attenções
do publico pelas suas dimensões e mesmo pela scena que reproduz, é, com
franqueza, a que menos nos encanta (…) “À porta da venda” é uma
tela de dimensões avantajadas, figurando um desses carros de recoveiro de
Torres, que todos os que tem percorrido as estradas dos arredores de Lisboa
conhecem bem». E prossegue: «O quadro é bem pintado, nem outra cousa era
de esperar; a scena é verdadeira, mas tudo aquillo é tão arranjado, a carroça
tão limpinha de mais, tão nova que concorre para tornar a tela pouco interessante».
E lá ficou o caldo entornado: o que era para ser, já o (não) era!
O “meu” quadro A caça dos taralhões
acabou comprado pelo rei, o Senhor D. Carlos. [Ainda foi à Exposição
de Berlin (1896), depois disso não há meio de se saber dele…]. O quadro do
Porto, À porta da venda, foi-o pela rainha Senhora Dona Amélia. E, assim, ficaríamos ambos contentes. Mas os prémios, nicles!
Só no ano seguinte, só na 2ª
exposição, é que prémios do Grémio Artístico seriam finalmente atribuídos. A Primeira
medalha a Silva Porto «como iniciador da pintura moderna em Portugal» [e
não exactamente pela Barca de passagem em Serreleis (Minho), 1892, como
usualmente se diz]; Segundas medalhas a J. Malhoa e V. Salgado; Terceiras
medalhas a Marques de Oliveira, L. Freire, A. Mello, Henrique Pinto, João Vaz e
D. Emília Santos Braga; e mais umas Menções honrosas e umas Terceiras medalhas
noutras categorias.
O Malhoa
haveria de recusar o seu prémio, atribuído a O último interrogatório do Marquês
de Pombal, 1891. Também a crítica de então consideraria o quadro uma boa duma
pintura, «magnífica» mesmo. Mas logo centrou defeitos quanto a um certo “achincalhamento”
“jesuítico” da figura do Marquês [como se a “culpa” fora do Malhoa, ou do
Pinheiro Chagas que descrevera a cena que Malhoa pintou (ou talvez por isso mesmo), em
vez de ser fruto da Viradeira e dos esbirros da D. Maria I… Pontos de vista!?].
“Eu” lá me
contentei com uma Terceira medalha, atribuída ao “meu” Adormecido, 1891. Mais
uma vez com o Noé, ainda pelo Chão da Amoreira, desta vez com o pastorinho tirando uma sesta depois do almoço, enquanto as cabras
pastavam. [Malhoa também o pintou, mas acordado e Gritando ao rebanho].
[E, já nem “me lembro” se por toda esta cega-rega, certo é que não pus
os pés na exposição seguinte - a única, entre Leão, Grémio e Sociedade, a que faltei.]
Deixemos isto. Voltemos à criançada. Afinal,
hoje é o dia deles.
Depois do
Noé e da Preciosa [ao Noé, também "eu" já fizera antes rápido retrato], veio o resto da ranchada
de filhos do Eduardo Dias Coelho e da Tereza da Silva, os rendeiros da quinta
da Fonte do Cordeiro. Vieram o amigo António [também teve "por mim" retrato alinhavado], o Venâncio, o Maximino, todos em
múltiplos e variados preparos, por "mim" ou pelo Malhoa registados para a
posteridade. Talvez ainda o Adelino ou o Zé. Quem sabe se a Aida ou o Saúl
numas outras sestas, numas outras ceifas…
Estas são
histórias já aqui contadas e recontadas ou apenas referidas, mas que podeis sempre ler de novo (carregando nas ligações coloridas) .
De novo, mesmo de novo, apenas uma coisinha, da qual
só me “relembrei” faz algum tempo e está ainda por contar.
É que o “malandrote”
do Noé, nascido a 26 Abr.1883, foi baptizado na Igreja de S. João Baptista a 14
de Maio desse mesmo ano. Teve por Madrinha uma tal de Maria da Conceição,
solteira, a única que, para além do padre «coadjuctor» Diogo Baetta e
Vasconcellos, sabia assinar o registo. Assinou «Maria da Conceição Almeida».
Passados uns
meses, quando “eu” e o Malhoa arribámos pela primeira vez a Figueiró, haveríamos
de a conhecer. Era a filha da Tia do Simões d’Almeida. a Senhora que nos deu abrigo. E foi fogo
que arde sem se ver! Dois anos depois, na mesma igreja, a 3 Ago.1885, lá
nos casámos.
Entretanto o
petiz, o pequeno Noé foi crescendo… e juntando mais irmãos.
Percebem
agora quem é que tinha de abrir os cordões à bolsa, lá pela Páscoa, à
conta do folar para o afilhado?!
E percebem
também quem foi, afinal, o mecenas daquela treta da «Escola Naturalista
de Figueiró do Vinhos» [a «escola» cujos Mestres foram o sr. Pinto e o
sr. Malhoa, e onde os discípulos não eram mais que o Manel e o Zé]. Perceberam?!
Ainda bem.
Que foi com
gosto.
E com muita amizade por todos aqueles putos reguilas.
1 Jun.2020. MHP (por interposta pessoa)
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[1]. Refiro, obviamente a crítica publicada
n’O Occidente, nº441, de 21 Mar.1891, a p.67. E dessa vez assinada «A.A.»,
muito provavelmente o sr. Abel Acácio.
Todavia,
quanto ao particular da «côr local» [recorrentemente tão cara ao sr. Abel
Acácio e a mais uns tantos, cujos gostos pessoais iam mais para a hortaliça com
rama…], é justo recordar o que outros críticos, porque devotos de Stº Humberto
e habituados a calcorrear matos e montes atrás de uma lebre ou de uma perdiz,
disseram a tal propósito. Refiro-me particularmente ao sr. Fialho d’Almeida e ao sr.
Zacharias d’Aça que, embora nunca hajam estado pelo Chão da Amoreira, sentiram imediatamente
tal paisagem como vera e realista pintura. Fica o texto
do sr. d’Aça: