quinta-feira, 30 de julho de 2020

Por caminhos do Cabril (II)

A ponte seiscentista

Onde se fala da Ponte do Cabril, do rio Zêzere, suas barragens e outras pontes. De antigas estradas e vários caminhos. Dos dois Pedrógãos e outras vilas e lugares. De Silva Magalhães, Alfredo Keil e Nª Srª dos Milagres. Da água e de rios, de peixes e fontes. E também da Estrada da Beira, da beira da estrada e da Srª da Asneira.


Eis a velha ponte sobre o Zêzere, entre os dois Pedrógãos, a jusante da garganta do Cabril. Dizem que erguida ao tempo dos Filipes, entre as altas escarpas graníticas que ali comprimem o curso do rio.
Com os seus imponentes «talha-mares». Que, deste lado, “talharam” coisa nenhuma, mas servem de contrafortes aos dispostos a montante. Esses, sim, feitos para resistir às fortes enchentes do rebelde Zêzere, então longe de ser domado pelas barragens.
Em contraponto, no estio, e como se vê, o rio corria bem lá no fundo, uns trinta metros abaixo do tabuleiro da ponte, diz-se, qualquer coisa como a altura de um prédio de dez andares… Muito abaixo do nível que nos habituámos a ver. Pois hoje, com a albufeira e por norma, a ponte jaz grande parte submersa, e a água anda, coisa menos coisa, acima do arranque dos três arcos de volta perfeita. O maior destes, o central, apresenta um vão com cerca de vinte e dois metros de abertura. E o tabuleiro lançado sobre os arcos terá, entre margens, uns bons setenta e dois metros de comprido. É obra! E é magnífica!


Foi, durante mais de três séculos e muitas milhas em redor, a única passagem “a pé enxuto” entre a Beira-Baixa e o Litoral. Tal como antes havia sido a velha ponte romana que terá existido uns metros ao lado desta…
Apesar da sua grande altura, para se chegar até lá, muitos metros de íngreme e sinuoso caminho são precisos percorrer, boa parte ainda sobre a velha calçada romana, descendo muito, outro tanto subindo, de um ao outro dos Pedrógãos.
Mesmo já ao tempo do trânsito automóvel e até ao início da década de 30 do século XX, era descendo e subindo o velho caminho até à ponte que grande parte das mercadorias e passageiros circulavam entre a Beira-Baixa e o centro litoral. Era isso, ou atravessar as altas serras mais ao norte – a Estrela, a Gardunha, o Açor – por caminhos ainda mais íngremes e perigosos. Impraticáveis no inverno.


Só então [1], já por 1930 ou 31, uns doze quilómetros a jusante, seria finalmente acabada a ligação entre Figueiró dos Vinhos e Cernache do Bonjardim através da nova ponte das Bairradas, à Bouçã. Caminho novo, mais moderno, por onde passou a ser feito quase todo o tráfego que antes atravessava a velha ponte filipina. Mudança fundamental para o desenvolvimento de Cernache e de Figueiró. A vila sertanense, que já tinha ligação pelo Vale da Ursa [2] com Ferreira e Tomar, passou também a ser ponto de passagem para Coimbra e todo o litoral centro. E Figueiró viu reforçada em definitivo a sua importância como entreposto distribuidor dos lanifícios vindos da Covilhã, do Teixoso, do Tortosendo, e prosperidade pelas quatro décadas sequentes.
Nem a construção da barragem do Cabril, finalizada em 1954, e que possibilitou a passagem automóvel pelo seu coroamento, a uma cota já elevada, perto do nível das vilas do Pedrógão Grande e do Pedrógão Pequeno, reverteu a importância da rota por Cernache…
Em 1983, a construção da ponte d’Álvaro, benefício fundamental para as gentes da Beira-Baixa na sua ligação a Coimbra, retirou boa parte do tráfego à Bouçã. Mas só em 1995, com a entrada em funções da nova ponte do Pedrógão, integrada no novo troço do IC8, é que definitivamente a ponte das Bairradas perdeu a importância que mantivera por mais de seis décadas de bons serviços.
Esta nova ponte, lançada a cota elevada, ligeiramente a jusante e muito acima da velha obra filipina, eleva-se uns bons 150 metros acima das águas do Zêzere. Com cerca de 480 metros de comprimento, assenta em quatro pilares, o maior dos quais apresenta uma altura da ordem da centena de metros. O tramo central do tabuleiro vence um vão de 180 metros, os laterais 110 metros cada um, existindo ainda mais dois pequenos tramos do lado de cada arranque.

Voltando às barragens e à velha Ponte.
Quase simultânea à do Cabril, a barragem da Bouçã, construída uns seiscentos metros a montante da ponte das Bairradas, entrou ao serviço um ano depois da anterior, em 1955. A sua albufeira estende-se, pois, ao longo da dúzia de quilómetros que medeiam até ao Cabril. É o enchimento da albufeira da Bouçã a causa da submersão de grande parte da velha ponte do Cabril, que se apresenta agora, quase sempre, com água pelos colarinhos.


Monumento Nacional classificado desde 16 Jun.1910 (ainda ao tempo da Monarquia) [3], a velha ponte seiscentista tornou-se assim, à conta da electricidade que nos alumia as noites, uma espécie de património anfíbio. Parte é apenas visitável pelos peixinhos. Mas quem não for boga ou achigã pode sempre admirar-lhe o coroamento e mesmo passá-la a pé de uma à outra margem.
E a caminhada entre os dois Pedrógãos, usando o velho caminho e atravessando a ponte, é tempo e esforço bem empregues. Pela diversidade da paisagem e penedias, pelo ar e cheiros que se respiram, pelos caminhos… E pela Ponte, claro!
[Talvez seja aconselhável começar do lado da Beira-Baixa e acabar à capelinha de Nª Srª dos Milagres do outro lado - a primeira rampa é a mais acentuada, e sempre será a descer… No tempo quente, convém não fazer o percurso com o sol a pino. E, seja a hora que for, não deve ser esquecida água para beber, sabendo que pode sempre reabastecer junto à ponte: há uma fonte, logo à direita, já em território do Pedrógão Grande]


As ilustrações antigas que acompanham o escrito são, por tudo isto, imagens raras aos dias de hoje. Dificilmente repetíveis - a não ser que aconteça alguma desgraça…

Por ordem cronológica aproximada (que, nestas coisas, nunca se sabe) e não pela ordem em que são mostradas, temos:
Uma gravura de 1875, sobre fotografia do tomarense António da Silva Magalhães (1834-1897), publicada no «Diario Illustrado» de 13 de Agosto desse ano [e já antes aqui mostrada].
A reprodução em postal de um quadro de Alfredo Keil (1850-1907) pintado, por certo, numa passagem pela região pelo final do século. Numa das voltas maiores que as habituais, bem longe do Beco, do Carril, de Dornes, da Frazoeira e Paio Mendes - o seu poiso de vilegiatura serrana. E quando não era em veraneio à Praia das Maçãs, na sua Villa Guida, bem entendido… [O quadro de Keil é este logo acima]
Ainda um velho postal ilustrado figueiroense [5] dos primeiros anos do séc.XX, e uma outra fotografia panorâmica muito provavelmente também da primeira década de novecentos ou final da anterior.

Finalmente, e só para ajudar a perceber, duas fotografias tomadas da margem direita, já no verão de 2011.
Uma sobre a velha ponte pouco menos que submersa - dos «talha-mares» emergem apenas os remates piramidais. Na margem oposta vê-se boa parte do sinuoso caminho que sobe até ao Pedrógão Pequeno. E a montante, além da curva do rio, divisa-se o imenso paraboloide em betão da barragem do Cabril.
A outra foto [esta logo aqui abaixo] mostra mais em pormenor parte da ladeira e uma curiosa obra de arte, um pequeno viaduto em cotovelo que dá continuidade ao caminho. 


Visto tudo isto, não haverá como confundir a belíssima Ponte do Cabril, a de seiscentos, Monumento Nacional, com uma outra qualquer…
Tal como a Estrada da Beira [4] não é a mesma coisa que a beira de qualquer estrada.
É bom que se pense nisso. Ou, simplesmente, que se pense.

30 Jul.2020. LBG.

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[1]. Ainda a 20 Abr.1929, A Regeneração noticiava o começo dos «trabalhos de terraplanagem do troço de estrada das Bairradas». A estrada que, do lado de Figueiró dos Vinhos, iria fazer a ligação à nova ponte.
E pouco depois, a 10 de Agosto, dava-nos conta da normalidade laboral no andamento dos trabalhos, à sua peculiar maneira, em pungente e ternurenta prosa que não resisto a transcrever:
«Tambem lá para as bandas do Zezere, a Bairrada deu que falar. Alguns operarios empregados na obra de construção da estrada que nos ha de ligar a Castelo Branco, viram a semana passada os seus salarios reduzidos. Á noite, em assembleia magna, reuniram, à luz mortiça do céu estrelado e deliberaram: não abandonarem o serviço, exigirem ao sabado o mesmo salario e se tanto fosse preciso apelar para a sua força muscular, para fazer valer, as suas pretensões.
«Mestre André, que é ali o representante do patrão empreiteiro, quando viu a integridade do seu físico em perigo, filosofou: - Não! Morrer, por morrer, morra o patrão que é mais velho!
«E mandou vir o Patrão. Este veio e se Deus Nosso Senhor lhe não acode… o caso podia complicar-se. Mas, a G.N.R., numa força de 20 praças, vindas directamente de Lisboa, entrou em função, expulsou os operarios em revolta e tudo voltou à normalidade.
«Àqueles montes e penedias voltou a paz. De quando em vez o dinamite, num trabalho quasi santo, estoira com a rocha, a picareta rebrilhando ao sol, abre novos caminhos, emquanto as águas do Zezere, gargantearam pelos pedregosos vales, como em pleno mez de Maio, a balada eterna e enganadora: ”Trabalhai, meus irmãos, trabalhai. Que o trabalho dá saude e dá vigor”.»
Tudo a bem da Nação, evidentemente!

[2]. Ao Vale da Ursa existia, desde 1885, uma das então raras pontes sobre o curso do Zêzere. Obra do final do fontismo, veio resolver a passagem "a vau" (ou através da «barca de passagem» referida nesta crónica de 1875) da estrada real que ligava a Sertã a Tomar, passando por Cernache e Ferreira. Era uma ponte com tabuleiro metálico treliçado, em três tramos assentes sobre grossos pilares de alvenaria de pedra. Manteve-se ao serviço até inícios de 1951.
Tal como a Ponte do Cabril, encontra-se submersa. Mas totalmente e a boa profundidade, fruto do elevado nível da água na albufeira do Castelo do Bode (1951). Apenas em situações de seca extrema e drástico abaixamento da quantidade de água retida, é possível ver, emergindo no meio do vasto lago, parte da velha estrutura metálica (tal visão já a presenciei uma vez…).
Aquando da edificação da barragem, procedeu-se à construção, ligeiramente a montante, de uma nova ponte que veio substituir a anterior. A imagem abaixo (c.1950) regista a situação: no plano longínquo, a nova ponte ainda está em construção; mais a jusante, a velha ponte cumpre as últimas funções; enquanto parte das margens são já alagadas pelo início do enchimento da albufeira.


[3]. O decreto de 16 Jun.1910, por evidente gralha tipográfica, designa-a como «Fonte do Cabril», embora, claramente, fizesse parte da lista das «Pontes».
Em 26 Fev.1982, o decreto 28/82 veio esclarecer definitivamente que a designação é «Ponte do Cabril».

[4]. A Estrada da Beira, correspondendo em grande parte à actual EN17, foi um dos eixos principais de ligação entre o litoral-centro e o interior, de Coimbra a toda a Beira-Alta, e porta para Castela por Ciudad Rodrigo. Referida desde os tempos medievais [ver o interessante trabalho de: MONTEIRO, Helena Patrícia Romão. A estrada de Beira: reconstituição de um traçado medieval. UNL/FCSH/DH, dissertação de Mestrado. Jun.2012], a Estrada da Beira viu variar alguns troços ao longo dos tempos. No essencial, o seu traçado acompanha o curso do rio Mondego desde a Serra da Estrela, pela sua margem esquerda, entre este e o Alva, evitando as faldas mais altas, pelo lado norte do sistema montanhoso que divide transversalmente a meio o território português.
No texto acima, o sistema montanhoso referido é o mesmo, mas pelo seu lado sul. Também o Zêzere é rio nascido na Estrela, mas rodeando-a por leste, apresenta boa parte do seu curso junto às encostas sul do dito sistema.

Ainda sobre Estrada da Beira, vale a pena transcrever Sant'Anna Dionísio, no Guia de Portugal, 3º vol., referente às Beira, Beira Litoral I, e editado já pela F.C.Gulbenkian em 1945, p.426:
«Estrada da Beira
«Assim é ainda hoje por muitos conhecida a Estrada Nacional n.º 9-1.ª desde Coimbra a Celorico da Beira (135 km.). Antes da existência dos caminhos de ferro, as duas vias de acesso mais frequentadas da Beira Alta, partindo de Coimbra, eram, consoante se demandavam terras da margem direita ou esquerda do Mondego, a estrada do Buçaco-Mortágua-Viseu ou a estrada da Foz de Arouce-Poiares-Ponte da Mucela. A esta última reservou-se tradicionalmente a designação de Estrada da Beira. Por ela faziam, outrora, suas jornadas os estudantes que vinham das bandas da Estrela, em azémolas ajoujadas com roupas e carnes de fumeiro para a Lusa-Atenas e por ela regressavam, nas férias grandes, aos pátrios lares, da beira-serra. Històricamente, essa estrada velha, em muitos pontos decalcada pela ampla e macia estrada actual, está ligada para cima da Foz de Arouce, à memoràvel retirada da terceira invasão napoleónica, na primavera de 1811. Alguns dos seus pontos de vistas não esquecem. Nêsse caso está o panorama que se desvenda do alto da Mucela, ao deparar-se com o vale do Alva. (...)»

Como já se percebeu, a Estrada da Beira não era propriamente para aqui chamada. Apenas e a propósito da volta à Srª da Asneira

[5]. Em tempo: Originalmente havia escrito «pedroguense», referindo-me à origem da imagem que abre este artigo. Errei, que já não lembro de tudo... 
Trata-se na realidade de um postal editado em Figueiró dos Vinhos, pela Casa Godinho, por volta do ano de 1905. E o exemplar que possuo circulou entre 29 e 30 de Jul.1909, enviado pelo filho Luiz a Manuel Henrique Pinto. A foto foi posteriormente reenquadrada e tratada, mas a origem é esta. Fica, pois, a emenda e a chamada de atenção. 
31 Ago.2020. LBG.