terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Carnaval

um Fadinho em si, e sem dó nem ré


         Vai para cento e um anos. Não é número redondo, mas é uma capicua catita: 101 anos!
            Pelo Carnaval de 1914, foi ofertada a JMalhoa esta fotografia. Na dedicatória manuscrita podemos ler: «Ao nosso bom Amiguinho e distinto artista José Malhôa | Offerece Oracio e Gabriella como recordação do Carnaval de 1914».
            A foto é, dúvidas não há, do estúdio de Júlio Novaes (1867-1925), então na Rua Ivens, 28 a 32, em Lisboa. E, muito provavelmente, é obra e oferta do próprio Júlio Novaes ao seu amigo Malhoa.


       Numa mise-en-scène cuidada, duas crianças mascaradas de Adelaide e Amâncio arremedam O Fado, 1910, de Malhoa. Não faltam os trejeitos e adereços mais significativos – o chapéu do fadista, o cigarrinho na orelha, a jaqueta pelo ombro e os botins de atacadores; a saia de baeta, a chinela no pé e o cigarro na mão direita da cantadeira; o espelho (rectangular, pois claro!), o candeeiro a petróleo, o vaso (sem manjerico, que não é o tempo dele), o retrato da santinha (supõe-se), a garrafa mais o copo meios de vinho, o crucifixo na parede, o reposteiro…
Estávamos em 1914, Lisboa ainda não vira O Fado, que aqui só viria a ser exposto na 14ª SNBA de 1917. Mas era já célebre, coisa muito falada e reproduzida pela imprensa. O quadro, entretanto, andava num virote, havia ido a Buenos Aires em 1910, ao Porto, a Paris e a Liverpool em 1912, e iria ainda a S. Francisco… E mesmo que não mostrado em Lisboa, muitas das lendas e narrativas sobre a sua feitura eram já estórias escritas e reescritas. De todos os quadros de JMalhoa, O Fado será, talvez, o que mais mitos e romance gerou à sua volta. Numa dessas muitas estórias, Júlio Novaes, o fotógrafo, é mesmo apontado como o personagem que terá apresentado «o Pintor» ao «pintor fino», ou seja, o Amâncio fadista ao Malhoa artista.

A família dos fotógrafos Novaes é uma ilustre família de fotógrafos que nunca mais acaba [1]. E ainda bem.
António Novaes (1855-1940), o mais velho dos irmãos, foi outro próximo de JMalhoa, são inúmeros os quadros de Malhoa fotografados por ele. E é António Novais, recordemos, o modelo do celebrado L’homme au capuchon / O homem do gorro / Retrato do fotógrafo António Novais, 1901.
Eduardo Novaes (1857-1951), o segundo dos irmãos, foi também fotógrafo. Partilhou com os irmãos o estúdio da Calçada do Duque, nº25. Estúdio que, variando as associações e as designações, às tantas se chamou «Júlio & Novaes».
Um terceiro irmão, nascido em 1865, Alfredo José de seu nome, parece que foi pintor…
Foi contudo o mais novo, o nosso Júlio Novaes, o que dará continuidade à dinastia fotográfica.
Lucília Amélia Novaes (1896-1961), a filha mais velha de Júlio, também fotógrafa, casou com Kurt Pinto (1887-1959), um outro fotógrafo. Por sua vez, um dos filhos do casal, Jorge (1927-1944) também abraça a mesma arte. E um bisneto de Lucília, João de Castro (n.1964) ainda a pratica.
Todavia, serão os outros dois filhos de Júlio Novaes, Mário Novais (1899-1967) e Horácio Novais (1910-1988) os fotógrafos da segunda geração mais conhecidos. Destes, há por aí bastante escrito e bem mais completo do que aqui possa dizer (façam o favor de ir ao google, serão bem servidos...)


Voltando à fotografia que hoje nos ocupa.
Se repararmos na dedicatória, veremos que a Adelaidinha e o Amâncinho são protagonizados por uns tais de «Gabriella» e «Oracio». E fácilmente se chega à conclusão que, muito provavelmente, o «Oracio» será o filho mais novito do fotógrafo, esse mesmo, o Horácio Novais, então nos seus quatro aninhos.
Já a «Gabriella» é mais difícil de determinar. Não sabemos se Júlio Novais teve alguma filha com tal nome. Ou, mesmo, se o par era protagonizado por irmão e irmã… Sabemos, isso sim, que Horácio Novais acabou por se casar com uma Gabriela Nunes (1907-?), moça um pouco mais velha que ele. Não será, portanto, esta que aqui vemos e aparenta ser bem mais miúda. Podia ser namoro de infância? - não parece. Ou seria premonição? [2]


Fica também, e para comparação com a composição de Júlio Novaes, O Fado, o de Malhoa. O Fado, 1910, e o outro, o dito de 1909. E um ao lado do outro. Como se fora a mesma emissão de tv emitida em 4:3 vista num aparelho normal e ao mesmo tempo num plasminha jeitoso de 16:9. Com um Amâncio atarracado, bem mais nutrido e sem pescoço, uma Adelaide com súbita hipertrofia do úmero, um banco comprido que nunca mais acaba, e o espelho, o tal espelho quebrado, reduzido a um quadrado.
            «Como é Carnaval, ninguém leva a mal», dizem.


 17 Fev. 2015. LBG



[1] Para a Genealogia da Família Novaes foi seguido: António Novaes | 1903-1911. Arquivo Fotográfico Municipal, CML; Assírio & Alvim: Lisboa, 1996. p.14. (que pode ver aqui)
            [2] Quase dois anos depois disto ter sido escrito, o amável comentário que podemos ler abaixo vem dar uma outra perspectiva sobre este assunto. Contrariando de algum modo o que se pode ler na já referida «Genealogia da Família Novaes». Segundo nos diz Aida Freitas Ferreira, «Oracio» e «Gabriella», os dois petizes da fotografia, seriam mesmo irmãos e os filhos de Júlio Novaes. E afirma também que Horácio Novais não casou com uma tal de Gabriela Nunes, mas sim com Ilda Maggiolly.