terça-feira, 28 de abril de 2020

«Varões Assinalados»

pelos vint’oito d’Abril

Entre duas datas assinaláveis, o 25 de Abril, para nos lembrar a conquista da Liberdade [entre muitas outras, a de eu poder estar aqui a escrever o que me dá na gana e a do meu caro leitor, desse lado, o poder querer, ou não, ler, e ambos descansados, conforme nossa vontade, sem ninguém [1] ter nada a ver com isso]; e o 1º de Maio que nos recorda a luta dos operários de Chicago, em 1886, pela justa jornada das oito horas de trabalho [este, como todos os direitos das classes trabalhadoras – dia de descanso semanal obrigatório, férias pagas, apoio no desemprego, na doença, na reforma, e por aí fora… e que hoje podem parecer coisa de somenos - custaram muitos anos, muito sangue, muito suor, bastantes lágrimas a conquistar, e vai outro tanto para os ir mantendo…]. Assuntos sérios, e que dispensam palermices mais recentes.

Precisamente entre aquelas duas datas, dizia, assinala o calendário o dia do nascimento de Malhoa. Baptizado «Jose, que nasceo a vinte oito de Abril proximo pafsado [1855]». Faz 165 anos, portanto.

[Há ainda o 30 d’Abril, mas agora não interessa nada]

Ora, para assinalarmos a passagem do aniversário de Malhoa, nada melhor que um presentinho. Um inédito, ou quase… [que, vivos, não haverá uma dúzia que o hajam visto]: a caricatura de Malhoa feita por Francisco Valença (1882-1963) para «Varões Assinalados». Mas o original – traçado e colorido à mão pelo artista, assinado pelo autor e, bem mais tarde, em Jan.1925, por este ofertado e dedicado ao caricaturado.


Sobre Francisco Valença, um dos grandes caricaturistas do dealbar de novecentos, nascido em Lisboa a 2 Dez.1882, mais do que eu possa dizer, antes esta Nota Breve [que pode e deve ler aqui] escrita, e bem, por outra mão.
Só, a acrescentar, a participação regular de Valença nos Salões da SNBA, na secção de «Caricatura», entre 1902 e 1910 (menção honrosa em 1903, 3ª medalha em 1904, em 1906, e 1ª medalha em 1909). No último ano desta sua regular presença, na 8ª.SNBA (1910), Valença apresenta, entre algumas mais, as primeiras seis caricaturas de «Varões Assinalados».
Depois disso só o voltaremos a encontrar na 21ª.SNBA (1924), quando se anuncia, ufano, já galardoado com o «Grand-prix» obtido na Exposição Internacional do Rio de Janeiro, a de 1922, onde expusera com grande êxito o conjunto completo das caricaturas de «Varões Assinalados».

Paralelamente às suas participações nas exposições da SNBA, F.Valença edita, ainda em 1902, um primeiro e único exemplar de «Salão Cómico», álbum de caricaturas das obras expostas no Salão das Belas Artes. 
[Na linha, aliás, do que vinham fazendo Raphael Bordallo Pinheiro e o seu filho Manuel Gustavo nos sucessivos jornais por estes editados - O António Maria, Pontos nos ii, A Paródia - desde as exposições do Grupo do Leão, passando pelas do Grémio Artístico e, mesmo no ano anterior, em secções com título precisamente idêntico, «Salão Comico», publicadas em vários números d’A Paródia, e já sobre a exposição inaugural da nova SNBA.]
 
charge de Manuel Gustavo Bordallo Pinheiro ao quadro de Malhoa, «Cebolas», 
apresentado na 1ª.SNBA, in A Paródia, 12 Jun.1901, p.187. [2]
Este projecto de Valença será retomado. Primeiro avulso, uma ou duas páginas em publicações onde colabora. Em «A Sátira», por exemplo, em Jun.1911 a propósito da 9ª.SNBA, e já em parceria com o escritor Carlos Simões, ensaia em sete páginas da revista o que virão a ser os Catálogos Cómicos - chama-lhe então «O monoculo d’A Satira na Exposição Nacional de Bellas-Artes».
 
Charge ao quadro de Girão, «Viva a República!»,
um dos caricaturados por Valença in A Sátira, 1 Jun.1911, p.22.
Depois, a partir de 1914 (11ª.SNBA) já com o novo título, «Catalogo Comico», Valença edita pequenos cadernos que são aquilo que o próprio nome indica. Abrem com um texto crítico-satírico sobre a exposição assinado por Simões, e apresentam uma série de caricaturas legendadas sobre algumas das obras expostas e desenhadas por Valença. Estes catálogos alternativos aos catálogos oficiais da SNBA serão publicados em, pelo menos, seis edições sucessivas até 1919 (16ª.SNBA); haverá uma sétima da qual ignoro data, e uma oitava aquando da 21ª.SNBA, a tal de 1924.

«Acendendo o cigarro», óleo de Malhoa caricaturado por Valença,
in 
Catálogo Cómico, 1915.
Como Valença “viu” o quadro «Maré baixa (Praia das Maçãs)» de Malhoa,
in Catálogo Cómico, 1919. 
[3]









«Varões Assinalados» foi, como já se percebeu, a obra marcante no reconhecimento público de Valença.
Editado em fascículos «bi-mensais», anunciava-se como «o mais luxuoso e artístico jornal de caricaturas que se tem publicado no país», vendido ao preço avulso de 60 réis cada fascículo (preço que manterá até final) mas podendo ser assinado por 12 números (com o mesmo valor proporcional) e, em termos de mercado, antecipava desde logo a sua futura cotação: «A collecção (…) valerá dentro de cinco anos dez vezes mais do que o seu preço de custo».

Até o Camões, cotovelo remendado, charuto e bengala, anunciava as virtualidades da obra…





Cada fascículo era vendido com uma sobrecapa em papel de baixa gramagem e cor variável onde, para além do cabeçalho, o frontispício e restantes páginas eram aproveitadas para publicidade comercial ou promoção da edição. Lá dentro um par de folhas soltas, bom papel e cuidada impressão: uma com a caricatura feita por Valença em policromia, a outra com a biografia, mais ou menos ironizada ou satirizada, do caricaturado. Para isto Valença rodear-se-á do melhor que então havia na escrita e na crónica nacional.

Valença rodeado dos seus escribas, folha suplementar ao último fascículo de «Varões Assinalados».



A bem da verdade, a receita não era nova. Tal como na estória dos «Salão Cómico» e «Catálogo Cómico», Valença foi ao menu do Mestre Raphael Bordallo e, qual Chef da moda, um ou outro ingrediente mais, tratou de aggiornare o caldo. E bem, acrescente-se.
Se o «Álbum das Glórias» dera três dúzias de fascículos entre Mar.1880 e Jan.1883, e fora apenas acrescentado, com o Hintze, o Zé Luciano e o Bulhão Pato, já em 1902; havia agora que tender umas boas quatro dúzias! Se antes escreveram o Ortigão, o Azevedo (morreu cedo, coitado!) e mais uns outros; era a vez de juntar o Gomes Leal, o Chagas, o Brun, o Eugénio Vieira, o Acácio de Paiva e tantos mais, uns feitos, outros a fazerem-se, mas todos de boa colheita! Se a impressão e a cor haviam sido conforme podia então ser; era altura de aproveitar toda uma nova tecnologia, aprimorar no tempêro e apresentação!

A publicação de «Varões Assinalados» começa em Set.1909, ainda em período monárquico, já depois do regicídio.
E começa logo com a caricatura de Miguel Bombarda: «Doutor para Rilhafolles [o hospital psiquiátrico que depois levaria o seu nome], Bombarda para a reacção» - reza a legenda. O médico e activista republicano é desenhado a “tratar da saúde” a uma jesuítica figura e aos macróbios que a “infectam”. O texto é de André Brun. A coisa começava logo assim, portanto!
Seguir-se-iam António José d’Almeida e um variado conjunto de personalidades da vida política, cultural e social de então, na sua esmagadora maioria de cariz empenhadamente republicano [a lista pode ser consultada a seguir].

O índice final com os 48 caricaturados e os autores de cada biografia (e um sapo bordalliano)







Com o 5 de Outubro e a implantação da República, em Nov.1910, surge a única caricatura que reúne três personagens: Machado dos Santos, António Maria da Silva e Luz d’Almeida: «Tres varões assinaládos» - proclamava a legenda sobre os três «primos» «rachadores», os chefes da Carbonária recém vitoriosa. Para que também não restassem dúvidas!
Pela mesma data, Hermes da Fonseca, então eleito presidente da República do Brasil e que, de passagem por Portugal, assistira ao fim da Monarquia, era também assinalada figura.

Malhoa será o penúltimo da lista. A sua caricatura é editada num último e quádruplo fascículo que reúne as últimas quatro caricaturas e respectivas notas biográficas, e cuja sobrecapa indica a data de Ago.1911.
Contudo, o texto referente ao nº45, Augusto de Vasconcellos, está datado de «7-11-912»; o sequente, sobre Duarte Leite, tem a data «11-912»; o de Malhoa regista «20-11-1912»; já o último, referente a Antº Ribeiro Seabra, não tem data alguma. Ora isto deverá querer dizer que a data da capa, e as das caricaturas, não corresponderão exactamente à verdade; e, muito provavelmente, este último múltiplo fascículo deve ter saído atrasado mais de um ano… [Nem que fosse para, até nisto, imitar o atraso final do «Album das Glórias» - diríamos com ironia].
Assim, a crer nas datas apostas àqueles três textos, dever-se-á dizer que a publicação de «Varões Assinalados» se desenrola entre 1909 e 1912, e não «1909-1911» como usualmente se afirma.

[Na «Casa Comum», Fundação Mário Soares, encontram-se quase todos os fascículos tal como foram vendidos. Se os quiser espreitar, pode aceder aqui.]


Chegamos então ao Malhoa varão assinalado.
Quer na caricatura, quer no texto biográfico, sátira não há. Alguma ironia, um ou outro trocadilho nas palavras, tímidos sorrisos provocam, não arrancam gargalhada. Que o respeitinho é muito bonito!
E, percebe-se bem, foi o respeito e admiração que Valença nutria por Malhoa a razão principal de o incluir nesta restrita galeria de notáveis da época. Por muito que, ainda hoje, tal possa contradizer outras narrativas.



Malhoa foi caricaturado sem qualquer exagero de traço ou toque mais mordaz. Aquilo é quase um retrato - dir-se-á. Normalmente sentado como se a nós retratasse, na cabeça o quico que então usava no atelier, a característica e farfalhuda lavallière de seda negra, os pincéis e a paleta. E só aqui, nos pincéis e na paleta, encontramos alguma coisa do seu universo iconográfico, alguns dos personagens e objectos das suas obras. Mas sem a mínima ou caricatural deformação, antes reproduzidos fiel e reverencialmente, como receio houvesse em beliscar obra de Mestre.
Ali revemos o bêbado cambaleante mais o chapéu de sol perdido n’«A volta da romaria», 1901 [ou, quem sabe?, pela cor e estampado, aquele que o António Carlos segura na «Cabeça de velho», 1903 (a da Casa dos Patudos)]; o rapazito que apanha as canas de foguete n’«A procissão», 1903; a bilha de barro da prova d’«O azeite novo», 1904 [e não, definitivamente não é qualquer dos canjirões d’«Os bêbados»!]. E cores, muitas cores! E só nas escorrências das cores, uma pontinha de desordem, a que seria habitual em qualquer caricatura, se vislumbra.




O texto é assinado por Carlos Simões, como vimos o colaborador mais assíduo de Valença por estes anos, e o que mais textos produziu nesta assinalável empreitada.
Para lá dos trocadilhos e graçolas do tipo «queria? já não quer?», nada traz de novo à habitual conversa mais ou menos biográfica sobre Malhoa. A que durante longos anos foi sendo repetida à exaustão. O próprio o reconhece no último parágrafo.
E apenas aí nos diz coisa nova e inabitual, sobre um alegado hábito de Malhoa: «o de ir todas as noites ao Gato Preto, fumar o seu cubano e cavaquear com amigos de velha data». Surpreende, no mínimo! [4]


Então, e o famigerado original, qu’é dele?! – impacienta-se o leitor, fartinho de tanta conversa.
Pois, quase não tem mais conversa, foi já tudo explicado. Resta apenas ver.


Ver o modo como acabou por ser feito. Como se vê: aos bocadinhos!
Uns quatro pedaços de papel, pacientemente colados uns aos outros, e um sobre outro, completam esta espécie de puzzle. Pois emendas e retoques, não se podendo apagar e fazer de novo, implicavam um novo pedaço de desenho aposto ao anterior. Assim era.
Veja-se o recorte com a cabeça de Malhoa [tentados a ver o que lá estaria por debaixo, não?!] cuja costura passa abaixo da linha dos ombros, dá a volta cortando o ombro esquerdo do Pintor, sobe junto ao limite do fundo colorido, entrevê-se na horizontal logo acima do quico da cabeça, para descer de novo à beira da linha preta que enquadra o fundo. Ou as tiras de papel acrescentadas à direita, a alargar o suporte, para completar a ponta da paleta [duas? porque não apenas uma?!] talvez em duas tentativas…

Claro, hoje em dia, mais de um século depois, os efeitos do tempo, da luz, as variações de humidade, algum pó, a bicheza [a microscópica, a que mais ataca!] lá amareleceram os papéis de forma diversa, actuaram sobre as colagens, e tudo ficou mais marcado. E muito bom está ele! 
E as cores?! Parecem pintadas ontem!
Na ocasião da impressão deveria estar em melhor estado, obviamente. De qualquer modo, no processo de transferência fotográfica para a feitura das chapas qualquer imperfeição terá sido resolvida. [Menos na paleta: que, na gravura, um olhar mais atento logo topa dois saltos no traçado do canto emendado no original...]
Com 32,8x27,0 [a suposta folha inicial teria 32,8x24,5] apresenta-se colado, apenas na parte superior, sobre uma cartolina maior [37,8x32,8] de cor escura e pardacenta. As falhas no bordo superior da folha do desenho podem ter sido obra de bicho ou, em eventual mudança de suporte, do descola e cola.
Aparentemente, estará tal como Valença o deu a Malhoa. O cartão que encerra o conjunto pela parte traseira, travado por preguinhos na moldura de madeira, deve ter sido, tal como esta, reaproveitado por Valença de uma outra obra sua. Virado do avesso, o cartão apresenta uma etiqueta colada, manuscrita a tinta e que diz em duas linhas: «Francisco Valença | 6 – Aviso… importante» [a linha com o título foi riscada a lápis].
A assinatura inicial, a reproduzida na gravura editada, ainda lá está no mesmo sítio. Depois, aquando da oferta, foi acrescentada a dedicatória: «Ao grande e glorioso Mestre José Malhôa, | com a mais sincera admiração e viva simpatia, | Ofe. F. Valença | Janº.1925» e ainda «(Original dos “Varões Assinalados” – Agosto 1911)».



E, para acabar, duas coisas mais.
Dois desenhos de Valença, duas primeiras páginas do semanário humorístico «Sempre Fixe». Estes já de 1928, dois anos após o golpe do 28 Maio, em plena ditadura militar.

O primeiro, publicado a 31 Mai., aproveita o decreto que alterou a regra do sentido do trânsito rodoviário, mudança que iria entrar em vigor no dia seguinte. Informação cívica e política.
[O boneco do ardina não era novo, fazia, aliás, parte do habitual cabeçalho do jornal desde o seu terceiro número, publicado a 27 Mai.1926, curiosamente na véspera do golpe. E havia sido usado já de forma muito semelhante, no nº10, 15 Jul.1926. Então acompanhado por letras garrafais com os dizeres que passariam a ser a regra durante as décadas sequentes: «Este numero foi visado pela comissão de CENSURA».]




O segundo, ocupando igualmente toda a primeira página do jornal, é de duas semanas depois. Agora a propósito da «Homenagem ao Grande Pintor José Malhoa», realizada em Jun.1928 na SNBA. E lá dentro, ao alto da pág.2, mais uma pequena nota.



E eu, se o usasse, também tiraria.
Ao Valença e aos Bordallos. Ao «Sempre Fixe» e à imprensa livre. [Também à menina Maria.]
E ao Malhoa, claro, que faria anos hoje!


28 Abr.2010. LBG.

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 [1]. Curiosamente e no entanto, quando estou muito tempo sem publicar coisa alguma aqui no blog e o resolvo fazer de novo, verifica-se, nas horas imediatamente a seguir, um número esmagador de ávidos leitores provenientes dos EUA (algumas vezes também da Federação Russa). Como todos sabemos, estas coisas ligadas a Arte em Portugal no séc.XIX são assunto que desperta o maior interesse por essas partes do globo… Bem hajam.

[2]. Depois, venham-me cá dizer que eu não tenho razão…!? Há mais de um século que o Manel Gustavo “diz” a mesma coisa.

[3]. Há quem teimosamente o chame de “A Pedra de Sal”, pode ser que assim lhe passem a chamar, sei lá, “Os Canhões de Navarone”… «O que também está certo!» - como diria o Pedroto.

[4]. O Gato Preto, que se saiba, era loja de comércio onde se vendiam, entre de muitas outras proveniências, as loiças, as cavacas e a água das Caldas, também bengalas, brindes e utilidades. Ficava na esquina do Arco do Bandeira com a rua da Vitória. E o dono, o Júlio Menezes era (sim senhor!) das relações de Malhoa - até lhe levara «apenas o custo da fábrica» pelos «448 azulejos» para as obras do «Casulo» [aqueles que, alguns acham, o Bordallo foi lá pôr a Figueiró].
Mas, convenhamos, mesmo se aquilo estivesse aberto à noite, sair de casa, ir das Picoas ao meio da Baixa, e voltar, «todas as noites», era preciso vontade! Apenas se o cavaquear fosse mesmo muito bom e o charuto ainda melhor…! E, das três, uma: ou Simões está a falar de qualquer outra coisa que hoje em dia desconhecemos, ou é figura de retórica, piada, remoque que não percebemos, ou delirou.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

À sombra do Plátano (I)

Uma crónica de "M. Henrique Pinto"

O Plátano, esperando a Primavera chegar... Portalegre, 23 Fev. 2020.






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«Em Portalegre, cidade | do Alto Alentejo, cercada |
de serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros…»

Muito antes do Régio ter escrito a sua bela «Toada de Portalegre», também “eu” aqui «morei numa casa velha, | à qual quis como se fora | feita para eu morar nela…». Primeiro à Corredoura, depois pela rua de Elvas.
Cheguei pelo Outono de 1884, a abrir, organizar e dirigir a nova «Escola de Desenho Industrial Fradesso da Silveira». A princípio era “eu”, o contínuo e pouco mais… D’entre o rapazio que acorreu às “minhas” aulas, um houve que se fez mais: um tal de Benvindo Ceia - ainda hoje Artista relembrado na terra «do tal suão». [Mereceria sê-lo mais, mas enfim…]
No Verão seguinte fui, como começava a ser costume, a Figueiró, desta vez para casar. Logo voltei, já acompanhado da “minha” Mª da Conceição… E por Portalegre continuei mais uns bons pares de anos «em que vivia e vivera, | como se fizera um poema, | ou se um filho me nascera». Poemas, fi-los pintando e ensinando. Um filho nasceu-me mesmo: o primeiro, o Luiz, na noite do final d’Ano de 1886.
Depois, acabado o ano lectivo de 1888, mudei-me para Tomar. Não porque «em Portalegre sofria (…) no tédio e no desespero | no espanto e na solidão» - nada disso! que ali terei feito bons amigos... Apenas porque Tomar ficava bem mais pertinho de Figueiró.


Castelo de Portalegre. Apontamento a lápis em folha de álbum, um dos primeiros, datado logo de 26 Nov.1884.


Daquilo que em Portalegre pintei – talvez como o Poeta depois pintaria: «serras deitadas nas nuvens, | vagas e azuis da distância, | azuis, cinzentas, lilases, | já roxas quando mais perto, | campos verdes e amarelos, | salpicados de oliveiras…» - sabe-se hoje muito pouco.
Os catálogos do «Leão» dão, contudo, preciosa ajuda.
Logo na 4ª do Leão os dois quadros apresentados são ainda de feitura figueiroense. Mas no ano seguinte (1885): «Um pegulhal»*, «Senhora da Esperança, Portalegre»*, «Um carril no matto, Portalegre», «Pedra alçada, Portalegre», «Cabeça do Mouro, Portalegre», «Fonte dos Fornos, Portalegre», «Bemposta, Portalegre», «Bomfim, Portalegre», «Pedra alçada, Portalegre», ainda «Pedra alçada, Portalegre», «Bomfim, quinta do conde de Mello» e mais um que vinha de Figueiró – em doze, onze títulos trastaganos na 5ª do Leão! Já na apenas um: «Ponte velha, Portalegre»* (os outros são figueiroenses). E na encontramos «Pastagem no Alentejo»** e «Valle dos Zebros» («Areal» será figueiroense). Finalmente na , apenas «Ribeira de Niza» (que os outos são já Tomar e Figueiró). Pelo meio, na 14ª da Promotora (1887), «Ponte Velha» deverá ser repetição do anterior, dois serão figueiroenses, e há um misterioso «Arrabaldes» não se sabe bem d’aonde?!

Catálogo da «5ª exposição d'arte moderna» (Grupo do Leão) desenho do Autor - repare-se na assinatura.

[Apenas dos títulos assinalados* se conhecem estas gravuras da época ou estudos realizados para a sua feitura. «Pastagem no Alentejo»** poderá, ou não, ser «Um pegulhal» já com nome que os ignaros lisboetas entendessem… E de todos os restantes ignora-se hoje o que possam alguma vez ter sido…!?]

«5ª exposição d'arte moderna», gravura publicada n'O Occidente.

Acrescem, talvez ou por certo, mais um ou outro que não foram a exposição alguma ou que por Portalegre deixei em mãos de amigos ou conhecidos.
Todavia, salvo alguns dos estudos parcelares atrás referidos e um ou outro esboço, de praticamente todos aqueles títulos de fábrica portalegrense desconhece-se paradeiro. O que muito venho lamentando!

«6ª exposição d'arte moderna», gravura publicada n'O Occidente.

Ora acontece, como «qualquer sementinha | que o vento que anda, desanda | e sarabanda e ciranda, | achara no ar perdida, | errando entre terra e céus... | e louvado seja Deus! | eis que uma folha miudinha (…) me trouxe a mim essa esmola | esse pedido de paz». “Eu” já vira, mas um rapaz, bom amigo ali da página, chamou de novo a atenção que em almoeda estaria um quadro de minha mão… [ena! parece que tomei a toada… juro: foi sem intenção].
Trata-se desta pintura [por estes dias em leilão on-line na «Cabral Moncada Leilões» - leilão 1233, lote 37] um óleo sobre tela, com cerca de 35x50.


[Já tenho clamado e desdito sobre alegadas “minhas” «autorias» em pinturas que são, afinal, do José António ou do Pedro Jorge Pinto (pai e filho, meus dilectos sobrinhos)...]
Desta vez é ao contrário. É para dizer, alto e bom som, que este quadro é “meu”. Seguramente de “minha” lavra!
A assinatura, ao que dá para perceber, é a “minha” - uma menos conhecida, é certo, mas a que “usei” precisamente por aqueles anos de 1885 e 86.
[Há um quadrinho “meu” no Palácio da Ajuda, durante décadas, logo desde o arrolamento, erradamente atribuído ao Souza Pinto (se calhar, por isso, o mantiveram à vista…), com esta mesma assinatura. Não faz muitos anos, finalmente, deram o seu a seu dono. Devo-o ao João Vaz - não o meu velho camarada do Leão, mas um seu bisneto; o dele e o meu lá se entenderam… – fico agradecido pela eternidade!]
E, certamente por tudo isto, pela sua feitura, arquitecturas, «oliveiras e sobreiros», este agora revelado é um quadro dos meus tempos de Portalegre…!

Não faço, como já se percebeu, é a mínima ideia que quadro seja?!
[Só um portalegrense sabedor, conhecedor dos velhos lugares, hoje quase todos integrados já na malha urbana e outros bem fora de portas, poderia eventualmente identificar o local, perceber do que se trata, dar o nome aos bois...]

É uma pena, pelas actuais circunstâncias, não o poder ir ver ao vivo. Como gostaria!
Pelas fotos fica-se com a ideia de ter sido limpo com alguma, digamos, intensidade... e disso, a assinatura, muitas vezes aposta depois da primeira camada de verniz, parece ter-se ressentido... Reparo ainda, embora o tenham dado como de «assinatura não identificada», que o valor base é relativamente elevado para um leilão on-line. Talvez sinal que a pintura não seja assim "má de todo"… que aquilo é gente que sabe o que faz, com olho habituado ao bom e ao mau, e que teve ocasião de ver a coisa ao vivo. Confio. E fico muito satisfeito.

«Vento suão, obrigado...| pela doce companhia | que em teu hálito empestado | sem eu sonhar, me chegara!». «Aos pés lá da casa velha | cheia dos maus e bons cheiros | das casas que têm história | cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória».
«Em Portalegre, cidade | do Alto Alentejo, cercada…»


16 Abr.2020. MHP. (por interposta pessoa).

 O quadro existente no P.N. da Ajuda (inv. 1658), um óleo s/ tela, 35x59. Provavelmente «Na Santarem, Figueiró», c.1886.  

 Pormenor da respectiva assinatura.