quinta-feira, 22 de novembro de 2018

As “gralhas” e o meu Amigo Raposo

Algumas notas sobre a data
do nascimento de Manuel Henrique Pinto (1853-1912)

A data do nascimento do pintor MHPinto, de vez em quando, é objecto de umas alegadas “controvérsias”. Década e meia depois, parece que o assunto vem de novo à baila.
Recapitulemos.

José Abrantes Raposo, na sua meritória obra de 2002, Manuel Henrique Pinto. Vida e Obra. Ensaio Bio-Iconográfico, refere-se a «algumas discrepâncias», então por si encontradas, «no que concerne à data do seu nascimento».
Resumidamente, diz-nos Raposo [1]:
«… a Grande Enciclopédia Portuguesa-Brasileira, obra base de consulta e de cultura, afirma, erradamente, que (…) foi a 15-II-1835 (com o mês em romano)…»
«… Romeu Correia, no seu livro Homens e Mulheres Vinculados às Terras de Almada, servindo-se [daquela] fonte (…), confundiu os algarismos do mês, trocando os romanos por árabes e, escreveu Novembro em vez de Fevereiro (…) Alexandre M. Flores, na obra Almada Antiga e Moderna – Roteiro Iconográfico, II Freguesia de Cacilhas, usou a referência de Romeu Correia e apontou, igualmente, a mesma data.»
Mas, logo de seguida, Raposo também refere:
«O catálogo da Sociedade Nacional de Belas Artes, comemorativo da exposição do Grupo do Leão, em 1941, dá-nos, contrariando as datas anteriores, a data de 15 de Março de 1853
E prossegue: «Na mesma linha de orientação, o Dicionário de Pintura Portuguesa, da responsabilidade de José-Augusto França, e o Dicionário de Pintores e Escultores Portugueses ou que Trabalharam em Portugal, de Fernando de Pamplona, dão-nos só os anos de 1853-1912. O mesmo acontece com o catálogo do Museu José Malhoa (1981), comemorativo do centenário do Grupo do Leão e, no capítulo O Naturalismo na Pintura, na História da Arte em Portugal (Publicações Alfa, 1986), de Maria Margarida L. C. Marques Matias.» (Os sublinhados são meus.)

Não diz Raposo, mas digo eu: Se olharmos com atenção para a manifestamente errada data da Grande Enciclopédia Portuguesa-Brasileira, «15-II-1835», logo percebemos que ali deve haver pelo menos uma “gralha”. Qualquer mediano estudioso da história da Arte portuguesa desconfiaria que Pinto, membro do Grupo do Leão e retratado por Columbano no quadro com o mesmo nome, nunca poderia ter nascido em «1835»!? Pois, se assim fosse, teria mais vinte anos que o seu dilecto amigo Malhoa?! mais quinze que Silva Porto?! uns nove que Bordalo?! seria ainda mais velho que os mais velhos do Grupo – Girão e Cipriano?! e teria mesmo boa idade para ser pai de todos os outros retratados no quadro?! A ter nascido em tal data, seria quase da idade dos velhos Mestres da Academia, Prieto e Lupi?! - Poderia lá ser!?
Torna-se, pois, evidente que ali caiu “gralha”. E que os dois últimos algarismos do ano («3» e «5») estarão com a ordem trocada. A estarem na sequência devida, teríamos o ano certo do nascimento de Pinto - 1853.
Depois, já agora, talvez falte um «I» no número romano do mês. Que, a lá estar, indicar-nos-ia com exactidão o mês de Março. E temos uma segunda “gralha”.
O dia está certo.  

Não houvera “gralhas” e não haveria controvérsia nenhuma!
Porque essa data seria coincidente, e muito bem, com a data indicada no catálogo da SNBA de 1941 – 15 de Março de 1853. E também com as datas referidas pelos citados autores, incontornáveis na História da Arte em Portugal, como J-A. França, F. Pamplona e Margarida M. Matias – (1853-1912). E com a data que todos os estudos posteriores e mais actuais sobre o Pintor vêm repetindo: 15 de Março de 1853.
E, repare-se, não havendo tais “gralhas”, os dois autores Almadenses, muito criteriosos, sabedores e experimentados (talvez não tanto nestas coisas das artes), não teriam sido levados ao engano. E Raposo não teria encontrado «discrepância» alguma.


Como encontrou, e na salutar procura em deslindar as «discrepâncias» que entendeu incompreensíveis, Abrantes Raposo, no entretanto e na mesma obra, criou uma nova. E bem mais difícil de resolver.
Apresenta-nos o que chamou «a Certidão de Nascimento do pintor». Na verdade, e como é evidente, trata-se de um assento de baptismo. Em tal documento, o Prior da freguesia de Sant’Iago (Cacilhas), em 24 Jun. 1852, regista o baptizado de um «Manoel», nascido a 2 de Abril do mesmo ano, filho de Francisco Jorge Pinto e Sebastiana Rosa. E, munido de tal documento, Raposo estabelece um novo paradigma: Manuel Henrique Pinto «nasceu a 2 de Abril de 1852».
(Pinto seria, a ser assim, quase um ano mais velho, e todos os autores teriam andado anos a laborar no erro!?)

É, há muito, sabido que M. Henrique Pinto era natural de Cacilhas e que seus pais foram os já referidos Francisco Jorge Pinto e Sebastiana Rosa. Outros documentos o comprovam. Mas será este, revelado por Raposo em 2002, o definitivo quanto à data de nascimento do Pintor? Por que razão, até então e depois disso, todos [2] os outros autores afirmam aqueloutra data, a de 15 de Março de 1853?
(Já vimos que a da Grande Enciclopédia pode ser apenas “gralha”, e que os autores Almadenses foram por esta levados ao engano.)

Ora, outras fontes documentais (de uma outra natureza, é certo, mas igualmente a ter em conta em qualquer investigação histórica) dizem-nos o contrário da conclusão de Raposo:
Desde logo, vários artigos de jornal (O Distrito de Portalegre ou A Verdade, de Tomar) que, por algumas das vésperas dos 15 de Março que Pinto passou por aquelas terras (entre 1884 e 1888, ou de 1888 a 1911, respectivamente), publicaram os «Parabéns» da praxe, ao «amigo e sr. Pinto», pelo seu aniversário.
Ou um ou outro postal (dos poucos que até hoje nos chegaram), com igual propósito aniversariante, subscrito pelo seu íntimo amigo J. Malhoa e pelos seus. (Alguns destes já há muito aqui mostrados).
Ou, ainda, o pequeno carnet da viúva, Maria da Conceição d’Almeida Pinto, onde se pode ler, na parte dos aniversários: «Papá - 15 de Março».
Finalmente, a inscrição, gravada na pedra e para a eternidade, no fuste que suporta o busto de M.H.Pinto (moldado por Josef Fuller em 1892 e fundido em bronze em 1914) que encima a sepultura do Pintor no cemitério de Figº dos Vinhos - «Manoel Henrique(s) Pinto | Nasceu 15 Março 1853 | Faleceu 26 Setembro 1912».


E estas são, queira-se ou não, fontes tão importantes quanto o velho registo do prior de Cacilhas.

Quer isto dizer que o padre faltou à verdade? que o registo de baptismo não é fiável? Longe disso: parece evidente que na igreja de Cacilhas, pelo S. João de 1852, foi baptizado um «Manoel», filho de Sebastiana e Francisco Pinto.
Agora, e resta saber, é se esse «Manoel» era mesmo o Pintor ou um seu irmão. Um possível irmão mais velho que, entretanto e como não era raro à altura, tivesse falecido ainda no berço, e o filho seguinte de igual sexo (o futuro Pintor) tomasse, como também era uso, o mesmo nome de baptismo… Repare-se: entre 2 Abr. 1952 e 15 Mar. 1953, medeiam cerca de onze meses e meio, tempo mais que suficiente para uma nova e feliz gestação de Sebastiana Rosa.
(Esta hipótese, que não passa disto mesmo - de uma hipótese, discuti-a já, de viva voz e em tempo devido, com o meu estimado amigo José Abrantes Raposo. Nem ele ficou totalmente convencido, nem antes pelo contrário.)
Ah! e o assento de baptismo do “segundo” Manuel? – perguntarão. Pois não se encontra. Nem esse, nem o de uma sua irmã mais nova, a Margarida, que pelo menos por fotografias se sabe bem que existiu… A falta dos assentos também não prova o contrário.

Assim, entre o registo do cura cacilhense que nos parece dizer uma coisa; e (mesmo se toda a vida enganados) aquilo que parece ser a verdade vivida pelo próprio MHPinto, pela sua família, os seus amigos (com Malhoa à cabeça), pelos jornais das terras onde foi considerada figura, e ainda por Pamplona, e França, e Matias, e todos os demais autores (ante ou após a revelação do tal assento), não parece a coisa merecer mais rodeios.

Por tudo isto, decididamente: Manuel Henrique Pinto (Cacilhas, 15 Março 1853 – Figueiró dos Vinhos, 26 Setembro 1912).


22 Nov. 2018. LBG

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[1]. Por via das dúvidas, nas citações ou referências que se seguem, houve o cuidado de confrontar a versão final impressa com o caderno original manuscrito por Raposo. Manuscrito que o Autor fez questão de me oferecer vai para uma década, e que guardo com o maior desvelo e amizade.

[2]. Todos, todos não! Que Saldanha, em José Malhoa: Tradição e Modernidade, 2010, afina pelo diapasão de Raposo: embora lhe desdenhe o livro, copia-lhe a data. Ao mesmo tempo que troca o nome ao Padre Ventura Pinho… (ver nota 529).


Ilustração: montagem sobre um fotograma da animação Der Rabe Und Der Fuchs que pode ver aqui.