Um brasuca mudo e o portuga que se não cala…
«Sabem
què vem a ser um conto do vigario?
Com
certeza sabem de cór e salteado.
Mas
aposto em como não sabem o que seja um conto de padre mestre.
Pois
lá vai.
No
theatro Apollo, não sei em que data, senti um abraço pelo pescoço e um beijo
estalado atrás da orelha.
Era o Malhôa.
Sentámo-nos a uma mesa e eu, por
delicadeza, apesar de pouca vontade de pagar, pedi uma garrafa de cerveja.
Atrás dessa, o illustre artista pediu outra e mais outra, e ainda estaria a
pedir, se eu não tivesse tomado o expediente de chamar o caixeiro e pagar a
conta.
O diabo bebe aquillo como se fosse
agua da Carioca, e emquanto bebia engrossava-me.
- Pois, meu negro do coração; és o
rapaz mais bonito desta geração; nem sei como ainda estás solteiro.
Pausa e tres goles de cerveja; e eu
calado.
- Preciso de um rufo de tambores para
a minha exposição; uns annunciosinhos desfarçados, e a tua secção de theatros
está a calhar.
Outra pausa e mais tres goles; e eu
calado.
-Preciso liquidar aquillo tudo e
tratar da vida; se acharem que os quadros prestam, muito bem; se não acharem,
faço a trouxa e raspo-me.
Mais pausa, mais cerveja e mais
silencio meu.
- Uma mão lava a outra, já se vê; e
isso de pedir só sem dar não é dos meus habitos.
Pausa, nova garrafa e eu na moita.
-Trago uma pasta cheia de desenhos que
reputo obras d’arte, e que destino aos amigos do peito, e você fica sendo do
peito se me tocar os tambores e todos os chocalhos do reclame.
Idem idem idem.
- E depois o amiguinho manda pôr o
desenho num passe partout e lá
vai-elle para a parede da bibliotheca lembrar sempre o amigo velho, o maior
admirador do Carino.
Pausa, etc., etc.
- Está dito? Vai ou não vai? Entra no
accordo? É pegar ou largar.
Etc. pausa, etc. e cerveja.
- Bem, respondi; aceito.
Aceitei e cumpri, tocando gaitas por
aqui e pelos bonds da Gavea.
Enchi-lhe a exposição e elle encheu de
notas do Thesouro uma burra de respeitavel tamanho.
Os quadros produziram 318 contos de
réis.
Pois bem.
O padre mestre sem coroa esqueceu se
da cerveja e do desenho.
Sim, senhor; mas ha de voltar, e quem
lhe ha de dar desenhos, rufes e gaitas e cervejas e o diabo que o carregue, é o
– CARINO.»
Esta delícia de texto
foi publicada em O Paiz, do Rio de Janeiro, salvo erro em 6 de Agosto de 1906.
Não resisto a transcrevê-lo na íntegra.
Da
coluna «Visita aos theatros» daquele periódico, está assinado por um tal «Carino»
- personagem que desconheço mas tudo indica seria o colunista teatral e social
do dito – e vai, tanto quanto me permite o malvado corrector ortográfico, com a
grafia original.
Com
humor fino e prosa escorreita, relata um alegado encontro, mais ou menos casual,
mas muito conveniente, entre o autor e José Malhoa, nas vésperas da inauguração
da sua Exposição individual no Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro.
O empenho deste em convencer o jornalista a “dar-lhe uma forcinha”, a promessa
de um desenhito assinado em troca e, coisa mais rara para quem o “conhece” de ginjeira,
um Malhoa bebedolas - ou quase.
Mas
que tem piada, tem! E falta faz no extenso «anedotário malhoesco» a que bem se
referia Varela Aldemira.
Suscita
contudo algumas notas.
Chegado
à baía da Guanabara, a bordo do «Cordillière», no dia 10 de Junho de 1906,
Malhoa permanecerá no Rio de Janeiro cerca de dois meses.
Recebido,
segundo os jornais, com pompa e circunstância, a sua fama precedia-o. Já nos
meses anteriores uma imprensa muito favorável publicava regularmente matéria
sobre o Pintor e a sua Arte, preparando-lhe a vinda.
«Não ha mais difficuldade em pintura, José malhou-a !» in Jornal do Brazil, 4 de Julho de 1906 |
As
primeiras semanas em solo carioca serão de vida social intensa e honrarias
várias, como o ser aclamado «membro honorário da Escola Nacional de Bellas-Artes
e, portanto, do Conselho Superior de Bellas-Artes», actos que os jornais não se
cansam de registar, aguçando o apetite para o «vernissage». Que a Exposição só
seria inaugurada a 4 de Julho, com mais pompa, circunstância, Presidente da
República e tutti quanti! E mais banquetes e mais notícias...
E
a 7 de Julho (faz hoje 106 anos) lia-se no Paiz e na Gazetta «Mais de duas mil pessoas visitaram
hontem a exposição Malhôa franqueada ao publico na sala dos brazões do Gabinete…»
Ficamos
a saber, portanto, que será um manifesto exagero carioca a presunção de terem sido as supostas linhas de Carino, negociadas entre algumas garrafas de cerveja, a
«encherem-lhe» a exposição.
Quanto
aos «318 contos de reis» com que Malhoa «encheu a burra», apesar da aparente precisão
nada redonda de tal número, sabemos que é outro manifesto exagero.
Malhoa
assentará o «Preço porque vendi os quadros em moeda brazileira». E na soma
final, incluindo 2.776$000 pela venda de catálogos, bem como os 7.000$000 por
cada um dos retratos Reais à Sociedade D. Pedro II, mas não contando com As
Cócegas, que em Janeiro do ano seguinte ainda não lhe haviam sido pagas pelo
Estado brasileiro, regista 72.950$400 – menos de um quarto do badalado pelo
escriba fluminense!
E Malhoa acrescenta «Recebi em Lisboa vendendo as libras -
22.500$000». Uma bela quantia, é certo, mas muito longe da propalada.
Por fim, anote-se a
data da publicação. Se o 6 de Agosto está certo (torna-se difícil ler hoje a
data) é mais que conveniente.
Carino sugere que o
«padre mestre sem coroa» já se fora com a promessa por pagar. Todavia, Malhoa
ainda por lá anda, só a 13 de Agosto zarpará de volta, no «Nile», para
desembarcar em Lisboa quinze dias depois.
A exposição tinha
encerrado a 23 de Julho; antes Malhoa já havia ido visitar a Escola de Belas
Artes, a sua galeria e a aula de Henrique Bernardelli: depois o Palácio do
Cattete, a agradecer ao Presidente Rodrigues Alves «a honra que lhe dispensára»
ao inaugurar a exposição; escrevia agora várias cartas de agradecimento que haveria
de publicar nos jornais na altura da partida; natural era que ainda lesse a
prosa macaca, lhe achasse alguma piada e escorregasse com o desenhinho
combinado e agora sabiamente pedinchado…
Se o estratagema de
Carino resultou ou não, não sabemos.
Mas que é difícil de
engolir, porque nunca vista, a extraordinária estória de um “tuga” que não se cala e consegue dar a volta perante um “zuca”
mudo e quedo… é! E muito!
Com carinho.
7 Jul. 2012. LBG.
Em tempo: Fica também o Convite para a Exposição. É Pessoal e assinado pelo próprio. Não percam!
7 Jul. 2012. LBG.
Em tempo: Fica também o Convite para a Exposição. É Pessoal e assinado pelo próprio. Não percam!
17 Ago. 2012. LBG
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