mas bem
podiam ter sido…
Fica aqui uma “brincadeira”,
mas uma brincadeira "séria”.
Trata-se de
um conjunto de “notícias” (e das ilustradas) escritas à maneira da época, por um imaginário repórter Fulano de Tal mais ou menos conhecedor do meio e dos protagonistas, e que poderiam ter sido
publicadas num qualquer jornal de Figueiró dos Vinhos entre 1880 e 1904. Pedaços marcantes de um
quarto de século na vida dos quatro Artistas figueiroenses - de nascimento ou
opção - dos seus amigos e familiares, evocados como notícias mais de um século depois. Os factos, as datas, os personagens, os locais e as "premonições" são absolutamente verdadeiros e baseados em documentos ou fontes
credíveis. Como é evidente, adicionou-se algum “romance” facilmente perceptível. Fruí!
(Publicado
originalmente em Imagens de
Figueiró, o jornal da exposição recentemente inaugurada no chamado Museu e Centro de Artes de Figueiró
dos Vinhos.)
Um Baptizado
A Igreja Matriz desta Vila, onde se realizou o baptizado. Gravura do nosso colega lisboeta «O Século» [1] |
Oficiou e depôs solenemente os Santos Óleos o rev.º pe.
José António Pimenta, prior desta Vila. Foi padrinho o tio materno do neófito,
o conhecido estatuário sr. José Simões d’Almeida Júnior, actualmente a residir
na capital do reino, e que não podendo estar presente foi representado com
procuração pelo seu pai, o sr. José Simões d’Almeida, também avó da criança; a madrinha
foi a irmã mais nova do pai do rebento, a jovem Maria da Conceição d’Almeida,
residente ao Cimo da Vila.
Augura-se um bom futuro ao pequeno José, havendo
mesmo quem afirme que seguirá as pisadas de seu tio e padrinho na nobre arte da
escultura… FdT.
Lisboa, 27 Abril 1894 (correspondente) –
Encerra
hoje a 4ª exposição de Belas-Artes promovida pelo Grémio Artístico. O certâmen tem
estado patente nas salas da Escola de Belas-Artes desde o passado dia 14 de
Março e foi muito concorrido. Como nota mais saliente, devemos referir o
verdadeiro triunfo que foi a participação do nosso patrício sr. José Simões
d’Almeida Júnior.
De qualquer modo, o facto de o sr. Reynaud se ter ausentado tem causado incómodo e alguns comentários pouco abonatórios e em surdina.
Jun. 2014. LBG
_____________________
[1] Gravura publicada originalmente no jornal lisboeta O Século, de 18 Julho 1897.
De
visita
Figueiró,
Verão 1883 - A convite do nosso conterrâneo sr. José
Simões d’Almeida Júnior, encontram-se de visita a esta vila os srs. José Vital
Malhoa e Manuel Henrique Pinto, promissores pintores da capital. Os referidos
artistas, antigos alunos do sr. Almeida na Academia Real das Belas-Artes de
Lisboa, têm percorrido em jornadas de estudo várias regiões do país na busca de
motivos para os seus quadros. Vindos agora do litoral e da região do Vouga, no seu regresso a Lisboa aproveitaram o conselho e o convite do Mestre para
conhecerem em boa hora a nossa linda terra. Encontram-se alojados numa casa da
tia do sr. Simões d’Almeida lá para os lados de S. Sebastião.
Ao
que nos dizem, ficaram encantados com as paisagens e a luz de Figueiró e não
têm parado de procurar os mais pitorescos recantos da Vila e seus arredores,
realizando inúmeros estudos e pinturas. Os dois artistas têm sido vistos,
agarrados a tintas e pincéis, em vários trechos da Ribeira d’Alge - das Fragas
de S. Simão à Foz e junto à Ribeira da Madre – e também pelo Perrecho ou pelo
Areal. Ficamos curiosos em ver aqueles pedaços de Figueiró dos Vinhos na
próxima exposição de quadros modernos.
Diz
quem com eles lida que para o ano cá teremos de volta os dois jovens pintores...
FdT.
Na exposição
Lisboa, Dezembro 1883 (correspondente) –
Abriu
por estes dias, nas salas da redacção do Commercio de Portugal, o
terceiro salão do denominado Grupo do Leão, agremiação de artistas da
qual fazem parte os já nossos conhecidos sr. Malhoa e sr. Pinto que, como foi
na devida altura noticiado, se demoraram alguns dias deste Verão a pintar aspectos
da nossa Figueiró.
Logo que nos foi possível corremos a ver os
resultados daqueles dias de labuta. E agora, já envernizados e emoldurados a
oiro, os pequenos pedaços de tela ou de tábua pintada parece que ganharam de
novo vida. A quelha do Cortez e Ao cahir da tarde, do sr. Malhoa,
O Areial, do sr. Pinto, os variados aspectos da Ribeira d’Alge, tratados
ora por um ora por outro, ou O Perrecho, um curioso trecho tratado de
diferentes modos por cada um dos artistas, são pormenores de Figueiró que podemos
por estes dias admirar aqui mesmo no coração da capital.
Como curiosidade, assinale-se que o catálogo
ilustrado indica como já pertença do sr. José Simões d’Almeida duas das obras
expostas: Uma varanda em Figueiró, trabalho do sr. Pinto, e Atelier
de escultura, quadro onde o sr. Malhoa retrata o atelier de estatuária do
seu antigo Mestre e nosso conterrâneo.
Na imprensa lisboeta, a crítica não é lá muito
generosa para com os dois artistas, em particular com o sr. Pinto. Destaca-se
sobremaneira um escriba que muito parece preocupar-se com a «verdade» do que
chama «a côr local». Aliás, desconfiamos bem que esta questão de «a côr local»
- seja lá o que isso for – ser-lhe-á leitmotiv recorrente durante muitos
e bons anos… Todavia, como nunca lobrigámos tal personagem calcorreando os
campos de Figueiró, nem cremos que as photographias possam vir algum dia a ser
a cores, perguntamos: como raio saberá o erudito indivíduo qual é a verdade da
«côr local»? se nunca a pode realmente sentir?! FdT.
Figueiró, 3 Agosto 1885 – Na igreja paroquial de São
João Baptista realizou-se esta manhã o auspicioso enlace da menina Maria da
Conceição Simões d’Almeida com o sr. Manuel Henrique Pinto, um dos pintores que
de há três anos a esta parte por cá têm vindo passar parte do Verão a pintar as
nossas paisagens.
A noiva, natural desta Vila, é irmã do nosso
amigo sr. Joaquim Simões d’Almeida Fidalgo e prima direita do nosso conterrâneo
sr. José Simões d’Almeida Júnior, o reputado escultor da capital. O noivo, ao
que nos foi possível apurar, é natural de Cacilhas, residindo actualmente em
Portalegre onde é professor e director da Escola de Desenho Industrial daquela
cidade norte-alentejana.
Presidiu à cerimónia o prior, rev.º pe. Pimenta,
e foram testemunhas presentes no assento o sr. José Malhoa, pintor e amigo do
noivo, e o sr. José Simões Fidalgo, o pai da noiva.
O novo casal, ao qual desejamos as maiores
venturas, irá residir para Portalegre logo que se inicie o novo ano escolar. FdT.
Honra para Simões d’Almeida
«Superstição», o mármore da
autoria do sr. Simões d'Almei-
da e que foi galardoado com a
Medalha de Honra no 4º salão
das Bellas-Artes promovido
pelo «Grémio Artístico».
|
Apresentando-se com uma única escultura, a estátua
em mármore Superstição, o sr. Simões d’Almeida viu não só a sua peça
rapidamente vendida pela significativa importância de oitocentos mil réis – foi
adquirida pelo ex.mº sr. dr. João Maria Corrêa Ayres de Campos, reputado
colecionador de Coimbra – como, principalmente, viu ser-lhe atribuída a Medalha
de Honra da exposição. E tal galardão é tão mais significativo quanto,
recorde-se, é a primeira vez que é atribuído nas exposições do novo Grémio
Artístico prémio tão elevado.
Se na exposição inaugural não foram atribuídos ainda
galardões; na segunda, aquela onde a distribuição de prémios se iniciou, a
Medalha de Primeira classe foi entregue ao malogrado artista António Carvalho da
Silva Porto pelo celebrado quadro Barca de passagem em Serleis (Minho); já
na terceira mostra igual Medalha de Primeira classe foi atribuída, então a José
Velloso Salgado, pelo seu Retrato do sr. W. de Lima e que vinha já premiado de Paris. Deste modo assume o
maior significado esta inédita atribuição de uma Medalha de Honra ao nosso conterrâneo
e conhecido artista sr. Simões d’Almeida.
E não será de mais noticiá-lo aqui, para se não correr
o risco de daqui a uns 120 anos já ninguém se lembrar mais desta Medalha de
Honra e da estátua Superstição. Ou talvez por isso mesmo. FdT.
Apresentação
e Boas-vindas
e Boas-vindas
Figueiró,
1898 – A comissão nomeada para tratar dos
trabalhos de restauro da nossa igreja matriz, e da qual fazem parte os srs.
dr. Manuel Pereira Baeta de Vasconcellos, José Manoel Godinho, Joaquim d’Araújo
Lacerda, António d’Azevedo Lopes Serra, Custódio José da Costa Guimarães,
Joaquim Fernandes Lopes e Manuel Quaresma d’Oliveira, acompanhada do rev. pe. Diogo
de Vasconcellos, prior da freguesia, apresentou as boas-vindas, pouco após
chegar na diligência do Paialvo, ao sr. Luiz Ernesto Reynaud, o arquitecto
contratado por intermédio do sr. José Simões d’Almeida Júnior, a fim de dirigir
os referidos trabalhos.
O sr. Luiz Reynaud foto-
grafado um destes dias em Figueiró. |
O sr. Luiz Reynaud é, ao que nos foi possível saber, um arquitecto já experimentado. Terá sido da sua prancheta que saiu o traçado do Teatro Dona Amélia, inaugurado vai para quatro anos e que de há dois possui o mais moderno maquinismo de cinematographo da capital. Por muitos ainda julgado de arquitecto francês é, tanto quanto nos foi dado apurar, projecto deste senhor, compatriota, lisboeta de nascimento, contemporâneo na Academia das Belas-Artes dos nossos conhecidos srs. Pinto e Malhoa e possivelmente aluno de desenho de Mestre Simões d’Almeida.
Constou-nos ainda que, a par deste novo trabalho que agora abraça em Figueiró, traz o sr. Reynaud em andamento importante projecto na capital. Trata-se do anunciado elevador mecânico entre a rua Áurea e o Carmo, projecto e iniciativa do sr. Mesnier du Ponsard, reputado engenheiro portuense, e para o qual o sr. Reynaud vem estudando minuciosamente as possíveis decorações exteriores.
Desejando uma agradável e profícua estada entre nós ao sr. Luiz Reynaud, fazemos votos que trabalhos de tanta importância se não atrapalhem um ao outro. FdT.
Passa o «Cazulo»
a... «Cortiço»?
Figueiró, Verão 1898 – Todos conhecem a pequenina casa construída pelo sr. Malhoa naquilo que era dos Serras e para onde ele vem passar ultimamente a estação de verão. Porta e duas janelas, quatro paredes e telhado de duas águas, uma só sala e cozinha. Para dormir, dividem o espaço com uns biombos, dizem. De tão pequenino que aquilo é, lhe chama «o Cazulo» - porque aconchegado e pequeno. Talvez demasiado pequeno.
a... «Cortiço»?
Figueiró, Verão 1898 – Todos conhecem a pequenina casa construída pelo sr. Malhoa naquilo que era dos Serras e para onde ele vem passar ultimamente a estação de verão. Porta e duas janelas, quatro paredes e telhado de duas águas, uma só sala e cozinha. Para dormir, dividem o espaço com uns biombos, dizem. De tão pequenino que aquilo é, lhe chama «o Cazulo» - porque aconchegado e pequeno. Talvez demasiado pequeno.
Por isso o barraco de colmo, antigo cómodo da
lavoura, mantem-se de pé e serve agora para guardar quadros e tintas em vez de
enxadas e ancinhos. Mas, em tempo de chuva, mal se vislumbra lá dentro. É uma
maçada.
Aproveitando a estada do seu amigo Luiz Reynaud, o
arquitecto que dirige as obras da nossa Igreja, parece que o sr. Malhoa lhe
pediu um projecto a fim de aumentar o seu refúgio. Da casinha actual fará
atelier, mas a sério, e ao lado nasce uma verdadeira moradia toda nova, com loja,
dois andares e um sótão: adega e arrumos, sala e cozinha, dois quartos e
retrete, e cómodos para o pessoal nas águas furtadas.
Tivemos ocasião de ver alguns dos desenhos do sr.
Reynaud - são um mimo. Pareceu-nos particularmente feliz a varanda alpendrada
que abraça a frente do novo edifício, com as suas guardas em troncos de sobro retorcidos e ainda revestidos da cortiça. Será que o «Cazulo» ainda vai passar a «Cortiço»?
e se vai encher do zumbido das abelhas laboriosas?! Pois labor é coisa que não
falta ao Sr. Malhoa. FdT.
Um
mistério, três versões e o mau-olhado
Figueiró,
cerca de 1900 – Correm desencontradas versões quanto às
razões do abandono da direcção das obras da igreja matriz pelo sr. Luiz Ernesto
Reynaud, o arquitecto que vinha desempenhando tal papel. Uns falam em
incompatibilidades e quezílias com alguns membros da comissão, outros em
dificuldades desta em satisfazer todos os compromissos assumidos, outros ainda
na necessidade cada vez maior de o sr. Reynaud permanecer em Lisboa devido ao
adiantado das obras do chamado elevador do Carmo. Tentámos esclarecer e não o
conseguimos.
Quanto
à hipotética terceira razão, e pelo que nos é dado saber pessoalmente, parece-nos
pouco plausível. Chegámos a ver das mãos do sr. Reynaud alguns magníficos
desenhos, cópias em papel marion, das várias alternativas de decoração para a estrutura
daquela importante obra de engenharia – vimos uma extravagante decoração
mourisca, uma outra em estilo gótico e alguns estudos desenvolvidos em renascença. Não
sabemos agora qual a versão final adoptada, sabemos no entanto que está
encarregue da feitura dos painéis metálicos decorativos a firma Cardoso
d’Argent & Cia, e sabemos que até há algum tempo tudo era compatível. Aproveitava
mesmo o sr. Reynaud os contactos com a referida firma, então em ensaios para a
fabricação dos tais painéis, para ali mandar executar algumas peças para as
obras que dirigia aqui em Figueiró. Podemos mesmo assegurar que o grande
janelão já instalado no telhado do atelier do sr. Malhoa e algumas outras serralharias
tiveram tal origem.
De qualquer modo, o facto de o sr. Reynaud se ter ausentado tem causado incómodo e alguns comentários pouco abonatórios e em surdina.
E
deu-se o caso pela última lua nova, bem tarde na noite, na encruzilhada dos
castanheiros ali ao Areal: a este repórter foi dado surpreender um grupo de
mulheres em estranhas rezas e ladaínhas. Não podemos afirmar com todas as certezas
quem elas eram, pois estava breu e todas de capote e lenço, mas não devemos
andar longe da verdade se dissermos que seriam algumas senhoras - diz o povo «de
certas virtudes» - ali do Cimo da Vila. Abalaram mal se viram descobertas. Mas
antes, no meio das lenga-lengas, deu para perceber que pronunciavam o nome do
falado sr. Reynaud e prognosticavam coisas como: «deixado no esquecimento» e, no
futuro, «o seu trabalho olvidado por todos», de historiadores até seus pares da
Associação dos Architectos…
Não
acreditamos em tal esconjuro, até porque o trabalho do referido senhor vale por
si. Nem cremos que as «virtudes», ao que se diz, de tais senhoras valham assim
tanto. Mas, nestas coisas, nunca se sabe… FdT.
França, Junho 1904 (correspondente) – Já
se encontra instalado em Paris o sr. José Simões d’Almeida, jovem e promissor escultor
nascido em Figueiró dos Vinhos, recente vencedor de uma das bolsas do Legado
Valmor destinadas à prossecução de estudos artísticos na Cidade Luz, onde
chegou no passado dia 7.
Concluído o curso de Escultura na Academia de
Lisboa, onde foi brilhante aluno do conhecido estatuário, seu tio, seu homónimo
e também ele filho de Figueiró, José Simões d’Almeida, este, o sobrinho, irá
durante os próximos dois ou três anos aperfeiçoar a sua arte junto dos maiores
mestres franceses. Desejamos-lhe as maiores felicidades e proveitos nessa
estadia. FdT.
Jun. 2014. LBG
_____________________
[1] Gravura publicada originalmente no jornal lisboeta O Século, de 18 Julho 1897.
Reprodução
semelhante e recente por Miguel Portela in Cadernos
de Estudos Lerienses (vol.1).
Leiria: Textiverso, 2014. p.24.
[2] Cópia do
Arquivo Histórico da CMLisboa, publicada no catálogo Lisboa de Frederico Ressano Garcia:
1874-1909. Lisboa: FCG; CML, 1989.