segunda-feira, 30 de junho de 2014

Notícias que o não foram,

mas bem podiam ter sido…

Fica aqui uma “brincadeira”, mas uma brincadeira "séria”.
Trata-se de um conjunto de “notícias” (e das ilustradas) escritas à maneira da época, por um imaginário repórter Fulano de Tal mais ou menos conhecedor do meio e dos protagonistas, e que poderiam ter sido publicadas num qualquer jornal de Figueiró dos Vinhos entre 1880 e 1904. Pedaços marcantes de um quarto de século na vida dos quatro Artistas figueiroenses - de nascimento ou opção - dos seus amigos e familiares, evocados como notícias mais de um século depois. Os factos, as datas, os personagens, os locais e as "premonições" são absolutamente verdadeiros e baseados em documentos ou fontes credíveis. Como é evidente, adicionou-se algum “romance” facilmente perceptível. Fruí!


(Publicado originalmente em Imagens de Figueiró, o jornal da exposição recentemente inaugurada no chamado Museu e Centro de Artes de Figueiró dos Vinhos.)


Um Baptizado
A Igreja Matriz desta Vila, onde se realizou o baptizado.
Gravura do nosso colega lisboeta «O Século» [1]
Figueiró, 29 Julho 1880 – Realizou-se esta manhã, na Igreja Matriz de S. João Baptista, a cerimónia de Baptismo do primeiro filho do nosso amigo sr. Joaquim Simões d’Almeida Fidalgo e de sua mulher D. Augusta da Conceição Almeida. O pequenito, a quem foi dado o nome de José, nasceu de boa saúde pelas nove horas da manhã do passado dia 17 de Junho.
Oficiou e depôs solenemente os Santos Óleos o rev.º pe. José António Pimenta, prior desta Vila. Foi padrinho o tio materno do neófito, o conhecido estatuário sr. José Simões d’Almeida Júnior, actualmente a residir na capital do reino, e que não podendo estar presente foi representado com procuração pelo seu pai, o sr. José Simões d’Almeida, também avó da criança; a madrinha foi a irmã mais nova do pai do rebento, a jovem Maria da Conceição d’Almeida, residente ao Cimo da Vila.
Augura-se um bom futuro ao pequeno José, havendo mesmo quem afirme que seguirá as pisadas de seu tio e padrinho na nobre arte da escultura… FdT.


O sr. Malhoa em fotogra-
fia realizada no ano pas-
sado pelo conhecido ama-
dor da Golegã, o sr. Carlos
Relvas, e pelo retratado
dedicada e oferecida à sra.
D. Conceição Simões d'Al-
meida que o tem hospeda-
do e ao sr. Pinto numa ca-
sa de sua propriedade.

De visita
Figueiró, Verão 1883 - A convite do nosso conterrâneo sr. José Simões d’Almeida Júnior, encontram-se de visita a esta vila os srs. José Vital Malhoa e Manuel Henrique Pinto, promissores pintores da capital. Os referidos artistas, antigos alunos do sr. Almeida na Academia Real das Belas-Artes de Lisboa, têm percorrido em jornadas de estudo várias regiões do país na busca de motivos para os seus quadros. Vindos agora do litoral e da região do Vouga, no seu regresso a Lisboa aproveitaram o conselho e o convite do Mestre para conhecerem em boa hora a nossa linda terra. Encontram-se alojados numa casa da tia do sr. Simões d’Almeida lá para os lados de S. Sebastião.
Ao que nos dizem, ficaram encantados com as paisagens e a luz de Figueiró e não têm parado de procurar os mais pitorescos recantos da Vila e seus arredores, realizando inúmeros estudos e pinturas. Os dois artistas têm sido vistos, agarrados a tintas e pincéis, em vários trechos da Ribeira d’Alge - das Fragas de S. Simão à Foz e junto à Ribeira da Madre – e também pelo Perrecho ou pelo Areal. Ficamos curiosos em ver aqueles pedaços de Figueiró dos Vinhos na próxima exposição de quadros modernos.
Diz quem com eles lida que para o ano cá teremos de volta os dois jovens pintores... FdT.



Na exposição
«Ribeira d'Alge (Figueiró)»
quadro do sr. Pinto exposto
no salão de quadros moder-
nos do chamado «Grupo do
Leão». Um dos primeiros pin-
tados por aquele artista na 
sua visita, acompanhado pelo
sr. Malhoa, à nossa linda terra.
A gravura é cortezia do nosso
amigo, o sr.Alberto d'Oliveira,
editor do Catalogo Illustrado
 do salão.
Lisboa, Dezembro 1883 (correspondente) – Abriu por estes dias, nas salas da redacção do Commercio de Portugal, o terceiro salão do denominado Grupo do Leão, agremiação de artistas da qual fazem parte os já nossos conhecidos sr. Malhoa e sr. Pinto que, como foi na devida altura noticiado, se demoraram alguns dias deste Verão a pintar aspectos da nossa Figueiró.
Logo que nos foi possível corremos a ver os resultados daqueles dias de labuta. E agora, já envernizados e emoldurados a oiro, os pequenos pedaços de tela ou de tábua pintada parece que ganharam de novo vida. A quelha do Cortez e Ao cahir da tarde, do sr. Malhoa, O Areial, do sr. Pinto, os variados aspectos da Ribeira d’Alge, tratados ora por um ora por outro, ou O Perrecho, um curioso trecho tratado de diferentes modos por cada um dos artistas, são pormenores de Figueiró que podemos por estes dias admirar aqui mesmo no coração da capital.
Como curiosidade, assinale-se que o catálogo ilustrado indica como já pertença do sr. José Simões d’Almeida duas das obras expostas: Uma varanda em Figueiró, trabalho do sr. Pinto, e Atelier de escultura, quadro onde o sr. Malhoa retrata o atelier de estatuária do seu antigo Mestre e nosso conterrâneo.
Na imprensa lisboeta, a crítica não é lá muito generosa para com os dois artistas, em particular com o sr. Pinto. Destaca-se sobremaneira um escriba que muito parece preocupar-se com a «verdade» do que chama «a côr local». Aliás, desconfiamos bem que esta questão de «a côr local» - seja lá o que isso for – ser-lhe-á leitmotiv recorrente durante muitos e bons anos… Todavia, como nunca lobrigámos tal personagem calcorreando os campos de Figueiró, nem cremos que as photographias possam vir algum dia a ser a cores, perguntamos: como raio saberá o erudito indivíduo qual é a verdade da «côr local»? se nunca a pode realmente sentir?! FdT.


O sr. José Simões Fidalgo,
o pai da noiva, e uma das
testemunhas no assento.
Um Casamento
Figueiró, 3 Agosto 1885 – Na igreja paroquial de São João Baptista realizou-se esta manhã o auspicioso enlace da menina Maria da Conceição Simões d’Almeida com o sr. Manuel Henrique Pinto, um dos pintores que de há três anos a esta parte por cá têm vindo passar parte do Verão a pintar as nossas paisagens.
A noiva, natural desta Vila, é irmã do nosso amigo sr. Joaquim Simões d’Almeida Fidalgo e prima direita do nosso conterrâneo sr. José Simões d’Almeida Júnior, o reputado escultor da capital. O noivo, ao que nos foi possível apurar, é natural de Cacilhas, residindo actualmente em Portalegre onde é professor e director da Escola de Desenho Industrial daquela cidade norte-alentejana.
Presidiu à cerimónia o prior, rev.º pe. Pimenta, e foram testemunhas presentes no assento o sr. José Malhoa, pintor e amigo do noivo, e o sr. José Simões Fidalgo, o pai da noiva.
O novo casal, ao qual desejamos as maiores venturas, irá residir para Portalegre logo que se inicie o novo ano escolar. FdT.


Honra para Simões d’Almeida
«Superstição», o mármore da 
autoria do sr. Simões d'Almei-
da e que foi galardoado com 
Medalha de Honra no 4º salão 
das Bellas-Artes promovido 
pelo «Grémio Artístico».

Lisboa, 27 Abril 1894 (correspondente) – Encerra hoje a 4ª exposição de Belas-Artes promovida pelo Grémio Artístico. O certâmen tem estado patente nas salas da Escola de Belas-Artes desde o passado dia 14 de Março e foi muito concorrido. Como nota mais saliente, devemos referir o verdadeiro triunfo que foi a participação do nosso patrício sr. José Simões d’Almeida Júnior.
Apresentando-se com uma única escultura, a estátua em mármore Superstição, o sr. Simões d’Almeida viu não só a sua peça rapidamente vendida pela significativa importância de oitocentos mil réis – foi adquirida pelo ex.mº sr. dr. João Maria Corrêa Ayres de Campos, reputado colecionador de Coimbra – como, principalmente, viu ser-lhe atribuída a Medalha de Honra da exposição. E tal galardão é tão mais significativo quanto, recorde-se, é a primeira vez que é atribuído nas exposições do novo Grémio Artístico prémio tão elevado.
Se na exposição inaugural não foram atribuídos ainda galardões; na segunda, aquela onde a distribuição de prémios se iniciou, a Medalha de Primeira classe foi entregue ao malogrado artista António Carvalho da Silva Porto pelo celebrado quadro Barca de passagem em Serleis (Minho); já na terceira mostra igual Medalha de Primeira classe foi atribuída, então a José Velloso Salgado, pelo seu Retrato do sr. W. de Lima e que vinha já premiado de Paris. Deste modo assume o maior significado esta inédita atribuição de uma Medalha de Honra ao nosso conterrâneo e conhecido artista sr. Simões d’Almeida.
E não será de mais noticiá-lo aqui, para se não correr o risco de daqui a uns 120 anos já ninguém se lembrar mais desta Medalha de Honra e da estátua Superstição. Ou talvez por isso mesmo. FdT.


Um dos mais recentes trabalhos do sr. Malhoa, um pe-
quenino óleo que será uma das derradeiras imagens da
nossa Igreja  Matriz tal como hoje é. Pelo que temos ou- 
vido dizer, as obras a iniciar brevemente ir-lhe-ão alte-
rar de tal forma a silhouette que não mais assim a reco-
nheceremos...
Apresentação 
e Boas-vindas
Figueiró, 1898 – A comissão nomeada para tratar dos trabalhos de restauro da nossa igreja matriz, e da qual fazem parte os srs. dr. Manuel Pereira Baeta de Vasconcellos, José Manoel Godinho, Joaquim d’Araújo Lacerda, António d’Azevedo Lopes Serra, Custódio José da Costa Guimarães, Joaquim Fernandes Lopes e Manuel Quaresma d’Oliveira, acompanhada do rev. pe. Diogo de Vasconcellos, prior da freguesia, apresentou as boas-vindas, pouco após chegar na diligência do Paialvo, ao sr. Luiz Ernesto Reynaud, o arquitecto contratado por intermédio do sr. José Simões d’Almeida Júnior, a fim de dirigir os referidos trabalhos.
O sr. Luiz Reynaud foto-
grafado um destes dias em 
Figueiró.
O sr. Luiz Reynaud é, ao que nos foi possível saber, um arquitecto já experimentado. Terá sido da sua prancheta que saiu o traçado do Teatro Dona Amélia, inaugurado vai para quatro anos e que de há dois possui o mais moderno maquinismo de cinematographo da capital. Por muitos ainda julgado de arquitecto francês é, tanto quanto nos foi dado apurar, projecto deste senhor, compatriota, lisboeta de nascimento, contemporâneo na Academia das Belas-Artes dos nossos conhecidos srs. Pinto e Malhoa e possivelmente aluno de desenho de Mestre Simões d’Almeida.
Constou-nos ainda que, a par deste novo trabalho que agora abraça em Figueiró, traz o sr. Reynaud em andamento importante projecto na capital. Trata-se do anunciado elevador mecânico entre a rua Áurea e o Carmo, projecto e iniciativa do sr. Mesnier du Ponsard, reputado engenheiro portuense, e para o qual o sr. Reynaud vem estudando minuciosamente as possíveis decorações exteriores.
Desejando uma agradável e profícua estada entre nós ao sr. Luiz Reynaud, fazemos votos que trabalhos de tanta importância se não atrapalhem um ao outro. FdT.



Um dos desenhos do sr. Reynaud para o projecto
de ampliação do «Cazulo» do sr. Malhoa

Passa o «Cazulo» 
a... «Cortiço»?
Figueiró, Verão 1898 – Todos conhecem a pequenina casa construída pelo sr. Malhoa naquilo que era dos Serras e para onde ele vem passar ultimamente a estação de verão. Porta e duas janelas, quatro paredes e telhado de duas águas, uma só sala e cozinha. Para dormir, dividem o espaço com uns biombos, dizem. De tão pequenino que aquilo é, lhe chama «o Cazulo» - porque aconchegado e pequeno. Talvez demasiado pequeno.
Por isso o barraco de colmo, antigo cómodo da lavoura, mantem-se de pé e serve agora para guardar quadros e tintas em vez de enxadas e ancinhos. Mas, em tempo de chuva, mal se vislumbra lá dentro. É uma maçada.
Aproveitando a estada do seu amigo Luiz Reynaud, o arquitecto que dirige as obras da nossa Igreja, parece que o sr. Malhoa lhe pediu um projecto a fim de aumentar o seu refúgio. Da casinha actual fará atelier, mas a sério, e ao lado nasce uma verdadeira moradia toda nova, com loja, dois andares e um sótão: adega e arrumos, sala e cozinha, dois quartos e retrete, e cómodos para o pessoal nas águas furtadas.
Tivemos ocasião de ver alguns dos desenhos do sr. Reynaud - são um mimo. Pareceu-nos particularmente feliz a varanda alpendrada que abraça a frente do novo edifício, com as suas guardas em troncos de sobro retorcidos e ainda revestidos da cortiça. Será que o «Cazulo» ainda vai passar a «Cortiço»? e se vai encher do zumbido das abelhas laboriosas?! Pois labor é coisa que não falta ao Sr. Malhoa. FdT.


 Um mistério, três versões e o mau-olhado
Figueiró, cerca de 1900 – Correm desencontradas versões quanto às razões do abandono da direcção das obras da igreja matriz pelo sr. Luiz Ernesto Reynaud, o arquitecto que vinha desempenhando tal papel. Uns falam em incompatibilidades e quezílias com alguns membros da comissão, outros em dificuldades desta em satisfazer todos os compromissos assumidos, outros ainda na necessidade cada vez maior de o sr. Reynaud permanecer em Lisboa devido ao adiantado das obras do chamado elevador do Carmo. Tentámos esclarecer e não o conseguimos.
Quanto à hipotética terceira razão, e pelo que nos é dado saber pessoalmente, parece-nos pouco plausível. Chegámos a ver das mãos do sr. Reynaud alguns magníficos desenhos, cópias em papel marion, das várias alternativas de decoração para a estrutura daquela importante obra de engenharia – vimos uma extravagante decoração mourisca, uma outra em estilo gótico e alguns estudos desenvolvidos em renascença. Não sabemos agora qual a versão final adoptada, sabemos no entanto que está encarregue da feitura dos painéis metálicos decorativos a firma Cardoso d’Argent & Cia, e sabemos que até há algum tempo tudo era compatível. Aproveitava mesmo o sr. Reynaud os contactos com a referida firma, então em ensaios para a fabricação dos tais painéis, para ali mandar executar algumas peças para as obras que dirigia aqui em Figueiró. Podemos mesmo assegurar que o grande janelão já instalado no telhado do atelier do sr. Malhoa e algumas outras serralharias tiveram tal origem.

Um dos desenhos do sr. Reynaud, cópia em papel marion, para o «Ascenseur du Carmo à Lisbonne: Vue latérale projetée dans un plan paralléle au plan vertical passant par l'axe de rue Stª Justa; Echelle 1/100» e com as seguinte indicação «Projet de Raoul Mesnier du Ponsard (Ingénieur); Décoration de Louis Reynaud (Architecte)». Trata-se de uma das versões, a de carácter renascentista, que o sr. Reynaud em tempos nos mostrou. [2] 














De qualquer modo, o facto de o sr. Reynaud se ter ausentado tem causado incómodo e alguns comentários pouco abonatórios e em surdina.
E deu-se o caso pela última lua nova, bem tarde na noite, na encruzilhada dos castanheiros ali ao Areal: a este repórter foi dado surpreender um grupo de mulheres em estranhas rezas e ladaínhas. Não podemos afirmar com todas as certezas quem elas eram, pois estava breu e todas de capote e lenço, mas não devemos andar longe da verdade se dissermos que seriam algumas senhoras - diz o povo «de certas virtudes» - ali do Cimo da Vila. Abalaram mal se viram descobertas. Mas antes, no meio das lenga-lengas, deu para perceber que pronunciavam o nome do falado sr. Reynaud e prognosticavam coisas como: «deixado no esquecimento» e, no futuro, «o seu trabalho olvidado por todos», de historiadores até seus pares da Associação dos Architectos…
Não acreditamos em tal esconjuro, até porque o trabalho do referido senhor vale por si. Nem cremos que as «virtudes», ao que se diz, de tais senhoras valham assim tanto. Mas, nestas coisas, nunca se sabe… FdT.



«À Paris!»
França, Junho 1904 (correspondente) – Já se encontra instalado em Paris o sr. José Simões d’Almeida, jovem e promissor escultor nascido em Figueiró dos Vinhos, recente vencedor de uma das bolsas do Legado Valmor destinadas à prossecução de estudos artísticos na Cidade Luz, onde chegou no passado dia 7.
Concluído o curso de Escultura na Academia de Lisboa, onde foi brilhante aluno do conhecido estatuário, seu tio, seu homónimo e também ele filho de Figueiró, José Simões d’Almeida, este, o sobrinho, irá durante os próximos dois ou três anos aperfeiçoar a sua arte junto dos maiores mestres franceses. Desejamos-lhe as maiores felicidades e proveitos nessa estadia. FdT.


Grupo de artistas portugueses em Paris. O sr. Simões d'Almeida (sobrinho) é o primeiro da esquerda, com a bengala na mão e identificado com o nº1. Destacam-se ainda: o sr. Costa Motta (sobrinho) com o nº2,  o sr. Acácio Lino com o nº5, e o sr. Sousa Lopes com o nº 9, entre muitos outros.

A gravura que publicamos mais acima representa «La Gaité», uma placa em gesso patinado realizada, neste mesmo ano de 1904, pelo sr. Simões d'Almeida (sobrinho) e com dedicatória «ao ex.mo sr. C. J. de Lima».





















   

Jun. 2014. LBG

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[1] Gravura publicada originalmente no jornal lisboeta O Século, de 18 Julho 1897.
Reprodução semelhante e recente por Miguel Portela in Cadernos de Estudos Lerienses (vol.1). Leiria: Textiverso, 2014. p.24.
[2] Cópia do Arquivo Histórico da CMLisboa, publicada no catálogo Lisboa de Frederico Ressano Garcia: 1874-1909. Lisboa: FCG; CML, 1989.

domingo, 29 de junho de 2014

Uma questão de nervos (ou datas)

ou como o lifting pode borrar a pintura


Em Analyze that (2002), Paul Vitti (Robert de Niro) o mafioso nova-iorquino de Analyze this (1999) [Uma questão de nervos] está preso e à beira de um esgotamento nervoso que o deixa quase catatónico. É-lhe dada liberdade condicional sob custódia do seu psicoterapeuta, Ben Sobel (Billy Crystal). O psiquiatra procurará chegar ao fundo da psicose do seu peculiar paciente enquanto o tenta integrar de novo na sociedade e longe do crime… ou antes pelo contrário.
Às tantas, Vitti experimenta o emprego de vendedor de automóveis e esclarece um casal sobre todas as virtualidades de um novo Audi, incluindo o excepcional tamanho da bagageira onde «se podem meter à vontade uns três cadáveres…». Como os compradores não pareçam muito interessados, o empenhado vendedor insiste e força o diálogo: - «E… que carro é que têm agora?» - «Um Lexus…» - «Ou seja, um Toyota.» - «É um Lexus!» - «Toyota, Lexus, é basicamente a mesma coisa, tudo treta japonesa… (e não esqueçamos Pearl Harbor)».


            Na passada semana deu-se a vernissage da nova exposição no chamado Museu e Centro de Artes de Figueiró dos Vinhos.
Um ano após a sua inauguração, então com duas interessantes exposições, já aquiaqui e aqui faladas, previstas para durarem três ou quatro meses e que vicissitudes várias e, assinale-se, a muito boa vontade das instituições e dos particulares detentores das obras expostas obrigaram e permitiram o seu sucessivo prolongar por todo um ano, finalmente nova mostra está ali patente. Esta é igualmente uma interessantíssima exposição.
Denominada «Os Caminhos do Naturalismo em Figueiró dos Vinhos», reúne cerca de quatro dezenas de peças, entre escultura, pintura e desenho, dos autores figueiroenses, por nascimento ou adopção, José Simões d’Almeida Júnior, Manuel Henrique Pinto, José Malhoa e José Simões d’Almeida (sob.º), e ainda um pequeno desenho de arquitectura de Luiz Ernesto Reynaud – um dos alçados para a ampliação do Casulo de Malhoa. Oriundas dos mais importantes museus nacionais e de várias colecções particulares, encontramos ali, pela primeira vez em muitos anos e lado a lado, obras de grande interesse e que vale a pena ver em diálogo. A mostra prolonga-se até ao dia 28 de Setembro e merece uma visita atenta.
Não vale por agora falar do estupendo mármore de Esperança e saudade, 1887, de Simões d’Almeida Júnior – até há pouco esteve lá o gesso patinado, mas este agora é outra coisa! Nem interessa por enquanto referir a feliz reunião de três dos quadros – A caça aos grilos, 1891, Adormecido, 1891, ambos de Manuel Henrique Pinto, e Primeiras tentativas, 1891, de José Malhoa - que deram origem à esdrúxula formulação da «Escola de Figueiró dos Vinhos» [1] . E tal «Escola» ultimamente tão falada, por mais voltas que se queira dar, não terá tido mais que dois mestres e dois discípulos: o sr. Malhoa e o sr. Pinto, o Zé e o Manel. Cabe tão pouco alertar para a possibilidade única de ver ao vivo a magnífica Varanda florida, 1930, de Malhoa, e de perder algum tempo a descortinar o rasto do gato dali erradicado, ou a comparar o resultado final da desgatização com esta foto original de 1931…


          Ou sequer falar da soberba À Lareira (provando a panela), c.1902, de MHPinto, que encantou D. Carlos. Ou do surpreendente Retrato de minha mulher, 1914, de Malhoa e que este fez questão de oferecer ao Museu [2]  logo após a morte dela. Ou da elegante e quase desconhecida Cabeça de estudo | Botão de rosa, 1925, de Simões d’Almeida (sob.º), um mármore encantador. Só por estes, ou cada um de per si, vale bem uma visita.


O que nos traz aqui hoje - a origem da minha questão de nervos - são dois outros quadros de Malhoa. Dois quadros menos falados e que nunca tinha visto ao vivo.
Bem sei que as inaugurações são más ocasiões para se verem as coisas – por isso evito-as sempre que posso – há sempre algo que nos distrai, uma conversa a despropósito, uma observação interrompida. Obrigam-nos sempre a uma segunda visita. Mas já deu para ver. E, nestas coisas, julgo que os meus olhos me não enganaram. Antes pelo contrário, surpreenderam-me. Porque me mostraram que as datas registadas pelo Pintor são diferentes das escritas nas tabelas. Uma vez é distração, duas já é demais. Fiquei a matutar no assunto. E decidi ir ver…

Um dos quadros da questão é esta Paisagem, «1889»[?], um óleo s/ madeira, 23,5x41,5 cm, do acervo do Museu do Chiado, legado de D. Emília Bordalo Pinheiro, viúva de Columbano, em 1945. Um quadro, portanto, da colecção de Columbano, uma possível oferta entre colegas dos tempos do Grupo do Leão.


Conhecido de várias publicações, não me recordo de o ter visto cara a cara. Ou então lavou a cara, que as cores são completamente diferentes das reproduções. É uma interessante pintura. O problema é que eu, em vez do anunciado «1889», olhando com atenção para o que Malhoa ali assinalou, leio 1885. E não é só a data: é a assinatura - que vai subtilmente variando ao longo dos anos e não confere -, é o tipo de pintura – parece-se com algo que já se viu algures… Há ali qualquer coisa que não me “cheira”. Estarei enganado?


Como disse, fui ver… Fui ver o que foi escrito antes, o que dizem os mestres, os que têm outras obrigações e são pagos para isso. Fiquei satisfeito: é que, afinal, não sou só eu e a minha máquina fotográfica a vermos 1885. É também o Prof. França, em 1983  [3], e até a minha amiga Mª de Aires Silveira (a comissária [4] desta excelente exposição, havia esquecido de o referir) que em 1994, num ajuizado juízo que vale a pena reler [5], também o dão como de 1885.


Porque mudou? Que se terá passado? Certo é que década e meia depois, na nova edição do catálogo do MNAC [6], a coisa “vareia”: se no repetido ajuizado juízo de MAS tudo se repete, incluindo a acertada data de 1885, já a ficha da fotografia que acompanha o texto disparata um surpreendente «1889»!? ilusão de óptica? gralha tipográfica? ou, simplesmente, porque sim? Depois, já se sabe, tal como se não olha para os quadros também se não olha os textos, e o mais fácil é copiar as fichas. Num pulo a coisa passa para a “nova bíblia”, onde o que está escrito é a “palavra”. Até a Matriz se converteu.

Ora, tal como um Lexus não é bem a mesma coisa que um Toyota, também neste caso 1885 é bem diferente de «1889». Não se trata apenas de tirar uns quatro anos uma velha tábua que «basicamente não passa de mais um Malhoa». Não. Ao considerarmos a data correcta de 1885 – e nisso julgo estar em boa companhia – podemos e devemos enquadrar esta Paisagem entre as obras apresentadas na 5ª Exposição de Arte Moderna. Acontece que é nesta exposição que Malhoa apresenta uma série de quadros, não pintados em Figueiró como passou a ser hábito após 1883, mas na região vizinha do Pedrógão Grande. E isto faz toda a diferença!
Atendamos agora mais à pintura – na verdade o mais importante – à pincelada, ao modo de fazer. E comparemos com Aldeia do Gravito, 1885, um dos que temos a certeza de ter estado na 5ª do Leão, um dos tais da incursão pelo Pedrógão. Façam o favor de olhar! (...) Percebem o que quis dizer anteriormente? Até as assinaturas são quase iguais!
É pois com grande probabilidade que estaremos perante uma Paisagem pedroguense, perante um dos quadros da Exposição de Arte Moderna de 1885. Embora perceber qual deles é, seja missão praticamente impossível.

(Datá-lo, pelo visto erroneamente, de «1889» é trapalhada que só serve para não mais sabermos como o ordenar…)



Mas deixemos por agora o assunto Pedrógão Grande, que é tarefa agendada, a pedido, a tratar proximamente…

E passemos então ao outro.
«Paisagem com Abóboras, 1898»[?], é um óleo s/ tela, 36x66 cm, assinado e datado, pertença de colecção particular. Estas são, ao que julgo, as escassas e praticamente repetidas referências até agora existentes sobre a obra nas duas publicações  [7] onde se encontra reproduzida. A tabela da exposição repetirá, evidentemente, mais ou menos o mesmo.



É uma bela duma pintura, de boa composição, fortemente marcada pela tensão das diagonais do aboboral com a dos casebres laranja, onde um céu com nuvens bem recortadas mas luminoso projecta belos contrastes de claro-escuro sobre as terras de amanho. E seria pouco mais que isto, «basicamente mais um Malhoa», um bom Malhoa é certo, mas um Malhoa anónimo de «1898», sem mais história…
Acontece que eu vi outra coisa. Em primeiro lugar vi uma pintura bem diferente daquelas dos anos noventas e tais, depois olhei melhor e vi o que o Malhoa lá deixou para nós vermos: uma assinatura, que me pareceu algo mais antiga que o anunciado, e um um e três oitos – juro que vi! E um um e três oitos quer dizer 1888.
Mais uma vez, o problema não está em querer tirar algumas rugas às vetustas abóboras – dez aninhos a menos numa velha tela com cento e vinte e tal anos é quase nada. Mas assim, a trouxe-mouxe, no mais-ou-menos, o único que se consegue é uma entradita a mais lá naquela coisa, no “breviário”, no dito “catálogo razoável” ou como se lhe queira chamar; mais uma entre uma série de entradas absurdas que volta e meia vamos encontrando, qual “milagre da multiplicação dos malhoas”, e cujo destino é ir riscando à medida que se vão descobrindo… hoje foram mais duas, qualquer dia arrancam-se folhas.
Ora, a ser verdadeira a data de 1888, facilmente se chega à conclusão que esta tela corresponde a um quadro exposto na 8ª do Leão (1888-1889) e assim referido no respectivo Catalogo Illustrado: «42 - O aboboral – 67$500». E, fazendo fé no que nos diz João Sincero na crónica  [8] referente à 2ª Exposição do Grémio Artístico (1892), o mesmo quadro voltou então e de novo a ser exposto. Consultado o catálogo de 92, temos: «102 – As abóboras – 67x37 – 45$000». Se aqui as dimensões praticamente coincidem (um centímetro a mais é desprezível) e no anterior coincidirá a data, com quase toda a certeza estaremos perante o referido quadro.
(O mais triste é que tudo isto o tal sabia e até lá tem uma entrada boa à espera de “boneco” - mas não acerta!… É o que dá não olhar para os quadros!)
Esqueçamos portanto «Paisagem com Abóboras, 1898», coisa que nunca existiu. Esta tela, agora à mostra em Figueiró, sempre teve nome e sobrenome, e registo de nascimento passado pelo sr. João Sincero – O aboboral (ou As abóboras), 1888 – e assim é que é bonito.

Já não faz bem é o pendant idealizado com O amanho das abóboras, 1897, de MHPinto, pois já não são seguidinhos. O amanho… de Pinto, já se sabia, tem antes a ver com outras coisas, principalmente quanto ao amanho das telas… Mas por enquanto, pelo menos visualmente, as abóboras continuam das amarelas.

E é assim, graças a uma bela Exposição organizada por Mª de Aires Silveira em Figueiró dos Vinhos, que estes dois quadros de Malhoa voltam a entrar na ordem. 
Repito o que disse acima: não se esqueçam de ir ver a exposição - e, já agora, de olhar para os quadros! Vale a pena e vale a viagem.


Eu, entretanto, vou enfiar um prozac… Ou dois copinhos de vinho branco, que «é basicamente a mesma coisa».


De Niro: « You’re good, Doctor !  You’re good !  You’re very good, you ! »

 29 Jun. 2014. LBG



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[1] ARTHUR, B. Sesinando Ribeiro - Arte e Artistas Contemporaneos, (1ª serie). Lisboa: Livraria Ferin, 1896. p.195,196 – A segunda exposição do Gremio Artistico. (Reproduzindo artigo anterior, publicado na imprensa da época, 1892)
[2] Museu Nacional de Arte Contemporânea, actualmente ...e do Chiado, entenda-se. Doação feita ainda em 1919.
[3] in catálogo Cinquentenário da Morte de José Malhoa (vol.1). Lisboa: IPPC, 1983. p.68
[4] Que me desculpem, mas prefiro o termo afrancesado, com conotações de hierarquia náutica, «…a quem é dada importante missão», à formulação anglo-saxónica que cheira a éter e sulfamidas. Um tipo imagina logo as couves galegas deste, ou as abóboras do outro, envoltas em ligaduras e agonizando da cura…
[5] in catálogo Museu do Chiado: Arte portuguesa 1850-1950. Lisboa: IPM,1994. p.90 e 91.
[6] Arte Portuguesa do século XIX: 1850-1910. Lisboa: MNAC-Museu do Chiado, 2010.
[7] José Malhoa. Bologna; Lisboa: FMR-Art’è; Arting Editores, 2008. p.175. e SALDANHA, Nuno – José Malhoa, 1855-1933: Catálogo raisonné. Lisboa: Scribe, 2012. p.49.
[8] in O Occidente, nº 482, de 11 de Maio de 1892, p.107.
Nota à nota: 11 de Maio e não «13». Irra! que até nas referências bibliográficas a coisa é trapalhona. Acho mesmo que é de propósito… para me dar cabo dos nervos.