quinta-feira, 10 de julho de 2014

Os cachopos da Fonte do Cordeiro

assíduos nas Exposições do Grémio

Acabada a aventura do Grupo do Leão «informal e sem estatutos» [1], coisa de «dissidentes», indiferentemente ou conforme se quisesse «realistas», «impressionistas», «veristas», «paysagistas» ou «naturalistas», então «rapazes ainda todos» [2], resolvida «entre boks e fumaças de cachimbo» [2] e cuja derradeira exposição corre pelos inícios de 1889 - foi tempo de associação mais formal.


Aos dez, melhor, aos onze iniciadores das Exposições de Quadros Modernos, (auto)retratados por Columbano no célebre quadro para a nova cervejaria homónima (1885), e aos quais junta por direito Alberto d’Oliveira com a inevitável prova ainda fresca do seu Catalogo Illustrado; «essa instituição» [3] protectora chamada criado Manuel exibindo «afiançada» «costelleta com hervas» [3]; e o impagável mano Rafael, amigo de sempre, divulgador sem falhas e a tempo e horas de todas as exposições, e que por essa mesma ocasião também regista o Grupo na magnífica caricatura dos Azulejos fingidos.


Aos tais onze, dizia, logo se somariam nas sequentes Exposições de Arte Moderna – e só então - as cinco «Senhoras Leoas» [4], o dito Rafael Bordallo Pinheiro e mais uma dúzia de nomeáveis artistas. Um total de vinte e nove Leões [5]– nem mais, nem menos! E batiam já à porta os de Paris, mais uns tantos do Porto e outros ainda. Era pois altura de agremiação nova, respeitável, de estatutos lavrados e tudo. Nasceu assim no início de 1890s o Grémio Artístico - então sim, com Silva Porto feito presidente, assembleia geral tutelada pela «Ramalhal figura» (que como entra, logo sai), e onde até Suas Majestades concorreriam. Coisa séria, portanto.



Então, pelo despontar da Primavera de 1891, sócios fundadores da nova agremiação, José Malhoa e Manuel Henrique Pinto participam na exposição inaugural do Grémio - e da qual Simões d’Almeida será um dos vogais do júri. Henrique Pinto mostra dois quadros: A Fonte do Cordeiro (Figueiró dos Vinhos) e A caça dos taralhões – este com assinalável e assinalado sucesso. Todavia, não fora as boas graças do Senhor D. Carlos que se dispôs a dar os 300 mil reis pedidos por ele, tudo não seria muito mais que conversa fiada - para azar de Pinto e apesar dos propalados estatutos, não se sabe porquê, não foi ainda nesse ano que se iniciou a anunciada distribuição de prémios, e a bem provável consagração dos “Taralhões” ficou eternamente adiada. 
Malhoa, por sua vez e entre outros trabalhos, apresentou Noé e Preciosa.



Aos quadros de Pinto perdeu-se o rasto. Tudo o que deles hoje sabemos resume-se ao escrito e impresso à época e a fotos preservadas no espólio que nos deixou. A Fonte do Cordeiro, c.1891, era uma paisagem de médio tamanho registando o complexo da fonte e dos tanques de rega, com o alçado quase erudito meio rococó visto de perfil, os esteios do antigo engenho já então arruinados, e o que parece ser um outro, já de recurso, feito de varais de madeira. A presença humana era dada por duas figuras femininas e seus cântaros. Uma mancha de arvoredo e os campos de cultivo enquadravam a cena. Seria hoje um documento único sobre a famosa Fonte. Já A caça dos taralhões, c. 1891 – mas por certo e como o outro pintado no final do Verão anterior - registava um rapazito descalço, deitado de bruços sobre a erva rasteira, de olhar atento na costela armada lá mais adiante, esperando pacientemente que mais um passarito lhe caísse na armadilha. Junto a ele, também pelo chão, jaziam chapéu e sacola da escola e uma mão cheia de taralhões já sem vida cujo destino seria o tacho. A paisagem era de mato rasteiro, tojos e urzes, árvores raquíticas, e muito ao longe na encosta divisavam-se as primeiras casas do povoado. Em grande formato, do que podemos adivinhar, seria uma bela duma pintura. Digna, assim e sem favor, do seu lugar na colecção Real.


Por sua vez, o quadro de Malhoa chegou até nós de boa saúde. Noé e Preciosa, 1891, é um retrato de dois irmãos, onde ele, ruço e mais velhito, a parece abraçar protegendo-a, e ela, de lenço amarrado à cabeça, partilha um pedaço de pão. Ambos sérios, suscitam ternura, não irradiam felicidade.
Com estas três telas iniciava-se a saga – era cenário, primeiro acto e protagonistas. Uma saga que se iria prolongar por uma boa meia dúzia de anos, contando as histórias de um punhado de cachopos - «o(s) filho(s) do Eduardo, então rendeiro da Fonte do Cordeiro, propriedade da família Serra» - como nos confidencia Malhoa pelo seu punho, e tendo por cenários aquelas terras ou os matos de pastorícia nas faldas do Cabeço do Peão, pelo Chão da Amoreira e sítios vizinhos.


O segundo episódio da novela chega com a 2ª Exposição do Grémio Artístico em 1892. Por certo animados pelo sucesso gerado na mostra anterior, mas sobretudo pela descoberta de tão bons modelos, vá de aviar mais do mesmo: Henrique Pinto apresenta-se então com Adormecido e A caça aos grilos, ambos datados de 1891; José Malhoa, quanto ao que agora interessa, mostra A última gota, Primeiras tentativas, Gritando ao rebanho e O almoço para o pai, todos também de 1891.







«Expõe Malhôa tambem uns quadros de genero, simples pastoraes, que parecem ter sido feitos de collaboração com o seu collega Henrique Pinto, tanto a factura d’elles se assemelha à deste artista. Houve quem chamasse áquella serie Escola de Figueiró dos Vinhos…» - disse-se então [6]. E o resto da crítica afinou pelo mesmo diapasão: «… as Primeiras tentativas e o Gritando ao rebanho [que pode ser visto hoje em dia no Museu Malhoa nas Caldas da Raínha], que várias pessoas attribuiram ao sr. Pinto, tanto elles se parecem com a Caça aos taralhões e com os dois quadros agora expostos por este artista, A caça aos grilos e Adormecido. Todos elles teem a mesma paisagem de um verde escuro, a mesma luz mais ou menos vaga e crepuscular, as mesmas figuras ao centro, no primeiro plano, ora um ora dois pequenos.» «Por isso o publico, que o anno passado soltou um brado unanime de admiração perante a Caça aos taralhões, este anno ficou bastante frio deante dos quadros enviados pelo sr. Pinto, - e tambem dos dois do sr. Malhoa.» «É que são variações de mais do mesmo thema. Ainda se fossem do mesmo artista, mas de dois!» «O caso fez-lhe espécie…» [7]
















Entendia-se, todavia, de modo diferente A última gota: «…que é de uma execução larga e bella. Um garotinho nu, sentado n’um interior de cabana, emborca a malga para lhe escorropichar a ultima gota de caldo…» [8].




















Os dois quadros de Pinto e as Primeiras tentativas, de Malhoa, podem ser vistos na presente exposição. E vê-los é bem melhor que descrevê-los.
Em todos, nestes e nos outros, o que primeiro salta à vista são os cachopos, os mesmos, «os filhos do Eduardo». Ainda o mesmo Noé, que de caçador de taralhões o é agora de grilos, ou é pastorinho que grita às cabras e adormece depois da janta. Ainda a Preciosa, que se delicia com os primeiros sons que, possivelmente, o Maximino – outro irmão um pouco mais velho – tenta tirar da flauta de cana. E mais um “artista”, mais novito, «o amigo António», o que escorropicha a malga, o que leva a merenda ao pai ou aprende com o Noé a tirar o bicho da toca. São eles os protagonistas.


Um ano mais, e na 3ª exposição do Grémio, 1893, quem sabe se pela má recepção anterior, apenas se viu uma amostra desta cachopada e num registo mais pequeno: a Preciosa, ainda com a mesma saia rosa, e «o amigo António» protagonizam uma única cena, à beira do muro «na fonte da Fonte do Cordeiro», intitulada Os curiosos, 1892. É Malhoa. E agradou - pelo menos à condessa de Proença-a-Velha que terá dado 135$000 por ele. Sabemos hoje que o quadro foi feito a partir de uma fotografia tirada por Malhoa ou por Pinto e que aquele pede por carta a este (é história já contada).

De Henrique Pinto, nesta mostra de 1893, nem rasto! O que é no mínimo curioso !? De facto, desde o início da sua apresentação regular nas exposições da Promotora (1880) até à sua morte (1912) já depois da 9ª da SNBA, esta é a única exposição onde não está presente!? Depois do mistério nunca falado da não atribuição de medalhas na exposição inaugural do Grémio e depois de mais trapalhada na seguinte – sabe-se que Malhoa recusou a «medalha de segunda classe» que lhe foi atribuída -, será que Pinto, a quem foi dada então uma «de terceira classe» precisamente pelo Adormecido, resolveu por sua vez amuar desta forma? Mais um mistério a acrescentar ao anterior…

Seja como for, no ano seguinte, na 4ª Exposição do Grémio, 1894, Manuel Henrique Pinto volta e insiste no mesmo registo: Preparativos para a caça, 1893, (também conhecido como Armando aos pássaros) é mais um episódio onde talvez ainda o Noé arma pacientemente a costela para a caçada do costume. E agora, talvez para obviar aos evidentes problemas oftálmicos do sr. João Sincero que, pelo visto, marrava no «verde escuro», um esplendoroso verde alface inunda a paisagem. Mereceu referência envergonhada da crítica e mereceu comprador. Ainda hoje corre pelo mercado.


Malhoa, por sua vez e neste particular dos «filhos do Eduardo», apresenta-nos agora o mais novito, o pequenito Venâncio brincando com uns ouriços de castanheiro, em Os ouriços, c.1894. E aqui também os verdes são outros – et pour cause!

«Agora passou a ser moda tratar mal os artistas na imprensa, e esta moda para se parecer com todas veiu importada de Paris na bagagem de um jornalista que encetou uma critica, embora illustrada e com pontos de vista elevados, exageradissima pelas comparações e pelas pretensões de querer medir pela grande bitola do Salon de Paris o nosso petit salon da rua de S. Francisco. Criticando acerbamente todos os nossos artistas não deixava de pé dois ou tres, visando, talvez, principalmente, ferir o Gremio Artistico, mas sendo em geral de uma grande benevolencia para com os amadores pretenciosos que o estragam.»
«Todavia esta critica irritante e injusta muitas vezes, não tem ainda os ridiculos de algumas outras, feitas por sujeitos que pouco enxergam de arte e vão dando bordoada de cego, macaqueando as severidades vindas de Paris, mas sem conseguirem alcançar ao menos o ar pedante e fino d’ellas.»
Com isto, e mais outro tanto, se viu Ribeiro Arthur obrigado a acabar a sua crónica sobre a 4ª Exposição, 1894 [9]. Tal seria o desvario que se apoderara da crítica - de uma e da outra.



















Depois, depois é a vez de Malhoa se dedicar À caça, 1895, possivelmente ainda com o Noé e as suas armadilhas (curiosamente a preço de saldo e com mais estória ainda por contar…). E logo, mudando-se para o outro lado da Vila, já com outra gente, nos mostrar A Olinda do lagar, 1895, com as suas trancinhas côr de fogo, rodeada de galinhas e pitos.



















Nesta 5ª Exposição do Grémio, Henrique Pinto terminaria a sua colaboração na novela de «Os filhos do Eduardo...» teimando - teimando no Noé como modelo quase exclusivo, que teima e mede forças com a cabra que finca as patas, em Uma teima, 1895, [quadro que podemos ver agora no Museu Malhoa sob o nome de Perrice]. E teimando nos verdes, nos outros, nos que ele via, nos que lhe pareciam e sentia, ele, como verdadeiramente sinceros.

















Finalmente, só na 7ª Exposição do Grémio Artístico, 1897, Malhoa se despedirá desta rapaziada. Em À passagem do combóio, 1896, reúne-os a quase todos, então já mais cresciditos: o António, o Noé, o Venâncio, a Preciosa, e a mãe Teresa com novo bebé ao colo. O quadro foi depois a Paris (1900) e naufragou na viagem de regresso. Restam dele apenas algumas fotos da época. E uma gravura francesa da autoria de Charles Baude, 1900, que é já a visão pessoal deste artista. Mais tarde, c.1905, o próprio Malhoa pintará nova versão – vendida no Brasil (1906) voltou de novo a Portugal – mas não é a mesma coisa…

















(Artigo publicado originalmente em 21 Junho 2014, in Imagens de Figueiró - o jornal da exposição patente no chamado Museu e Centro de Artes de Figueiró dos Vinhos
Revisto, completado e anotado entretanto.)
Sobre este mesmo assunto pode ainda ver, publicado aqui atrasado, isto.

10 Jul. 2014. LBG

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[1] FRANÇA, José-Augusto – O Grupo do Leão, 1880 e 81. Caldas da Rainha: MJM, 1981. Resumo da conferência proferida no MJM, em 16 Dez. 1981: «um nome comum que ficou, porém, em designação familiar, nunca oficializada – nem oficializável, já que se tratou sempre de uma associação livre, sem regulamentos nem estatutos e ainda menos direcção ou presidente titularizado.»
[2] «Z. Segredo» in Diario da Manhã, de 15 Dezembro 1881. (Trata-se de Mariano Pina e do artigo inicial onde este “dá o nome” ao «Grupo do Leão»)
[3] Ramalho Ortigão (?) in O António Maria, nº134, 22 Dezembro 1881, p.405.
[4] LEANDRO, Sandra – Como Leoas: as Senhoras Artistas do Grupo do Leão (1881-1888). in Falar de Mulheres: História e Historiografia. Lisboa: Livros Horizonte, 2008. (Artigo datado de Maio 2003)
[5] São eles, seguindo a ordem pela qual vão sendo referenciados nos sucessivos Catalogos Illustrados do Grupo do Leão: João Ribeiro Cristino da Silva, José de Sousa Moura Girão, José Vital Branco Malhoa, José Joaquim Cipriano Martins, Manuel Henrique Pinto, António Monteiro Ramalho Júnior, António Carvalho da Silva Porto, João José Vaz, João Rodrigues Vieira, Columbano Bordalo Pinheiro e José Augusto de Figueiredo. D.ª Mª Augusta Bordalo Pinheiro, Rafael Bordalo Pinheiro, D.ª Helena Gomes, D.ª Berta Ramalho Ortigão, José Júlio Sousa Pinto, Francisco Vilaça, José Moreira Rato Júnior, Júlio Teixeira Bastos, Ernesto Condeixa, Augusto Rodrigues Duarte, Adolfo César de Medeiros Greno, D.ª Josefa Garcia Greno, Carlos Reis, António Soares dos Reis, José Queirós, José Veloso Salgado, António Teixeira Lopes, Duquesa de Palmela. Estes e estas, e não outros.                     .                    
[6]  ARTHUR, B. Sesinando Ribeiro - Arte e Artistas Contemporaneos, (1ª serie). Lisboa: Livraria Ferin, 1896. p.195,196 – A Segunda Exposição do Gremio Artistico. (Reproduzindo artigo publicado na imprensa da época e datado de Maio 1892)
[7] «João Sincero» in O Occidente, nº482, 11 Maio 1892, p.107.
[8] ARTHUR, B. Sesinando Ribeiro - Arte e Artistas Contemporaneos, (1ª serie). Lisboa: Livraria Ferin, 1896. p.196 – A Segunda Exposição do Gremio Artistico. (Reproduzindo artigo publicado na imprensa da época e datado de Maio 1892)
[9] ARTHUR, B. Sesinando Ribeiro - Arte e Artistas Contemporaneos, (1ª serie). Lisboa: Livraria Ferin, 1896. p.341, 342 – A Quarta Exposição do Gremio Artistico. (Reproduzindo artigo publicado na imprensa da época e datado de Maio 1894)