quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

O António Carlos

e depois, podem chamar-lhe (ou a mim) 
o que quiserem…

          Novembro quase passado. Há muito que lá iam as vindimas. Já eram as broas mais o tempo das castanhas. Nos lagares moíam-se as derradeiras azeitonas.  Aquele ano de 1902 estava a chegar ao fim, e Malhoa ainda se demorava por Figueiró.
Pudera! o «Casulo» aumentado, finalmente com um atelier como devia ser, tudo ainda com as madeiras a cheirar a novo. Houve que aproveitar e trabalhar até mais não. E, para Malhoa, a “colheita” desse ano foi bem boa!
Estava quase «a retirar para Lisboa» levando consigo o produto da sua “safra”. Mas, antes, tinha que satisfazer a curiosidade de alguma daquela gente que andava mortinha por meter o bedelho no «chalet novo do sr. Malhoa» e não havia meio… Malhoa não podia passar mais um ano sem o fazer, ou “o cortar-lhe na casaca” seria ocupação certa nas longas noites do inverno figueiroense…
Assim, numa terça-feira, 25 de Novembro (ora cá está uma boa razão para se evocar a data) mas de 1902, lá se resolveu a convidar «as pessoas de suas relações» a visitarem o atelier «para verem os seus bonecos».
Por certo não estiveram os mais íntimos, os amigos da casa: o Pinto e o Simões há muito que haviam abalado para Tomar e Lisboa, logo que o tempo das aulas a isso os obrigara (embora o «Manel» ainda lá permanecesse em retrato); e o Quaresma, outro grande amigo que conhecia o «Casulo» de trás para a frente, pois havia sido o grande apoio na condução das obras, andava já atrapalhado, coitado, com os achaques que o iriam levar em breve “desta para melhor” - até o jornal falava disso. Terão ido outros e outras, não interessa agora quem. Parece que ficaram todos satisfeitos. E, quatro dias depois, a "vernissage campestre" foi notícia n’ O Figueiroense.

Podemos, agora e aqui, voltar a ler e ficar a saber tudo:





























         E, da mesma página do jornal, a nota sobre a doença do Quaresma. Com a particularidade, pelo menos para mim que sou um pedaço distraído, de ser a primeira vez que o vejo nomeado como presidente da Câmara Municipal. Que este Manuel Quaresma d’Oliveira, quer-me parecer um homem bom, é mais um desgraçado que não caiu em graça da historiografia figueiroense…




















O relato do escriba do jornal é saboroso. Através dele ficamos a saber um pouco mais sobre alguns dos quadros que Malhoa pintou nesse ano em Figueiró: «A procissão», o retrato d’«O António Carlos», «O phosphoro de enxofre», «A apanha das castanhas», a «Descamisada», «Cabeça d’estudo» (o tal retrato do Pinto de que já aqui falámos) e «Ultimos raios de sol». De alguns destes ficamos a conhecer os protagonistas – e de fonte bem mais segura que algumas inquinações posteriores, porque nos é dito em primeira mão e por quem os conheceu realmente. E, sem escusadas erudições, modestamente reconhecido - «que por incompetência nos abstemos» - ali temos também uma descrição sucinta e objectiva de algumas das pinturas de Malhoa.
Deixemos as outras para depois. Detenhamo-nos no intrigante «O António Carlos». 
           O «retrato de um velho d’aquelle nome» - chamava-se António Carlos, está visto - «de 88 annos» - uma provecta idade para esses tempos - «com chapeu na cabeça, capote aos hombros e mãos sobre um apoio» – só faltou dizer mesmo que o «apoio» era um grande guarda-sol azul - «tudo o mais natural que pôde imaginar-se»… Delicioso. Conciso. Sem lugar a dúvidas.

Fica, assim, apresentada a «Cabeça do António Carlos», 1903. Um grande Malhoa! Ei-lo:

José Malhoa. Cabeça do António Carlos / Cabeça de velho / O Regedor, 1903.
ost. 56x46. Casa dos Patudos - Museu de Alpiarça.





































E se dúvidas ainda houver, o próprio Malhoa se irá encarregar de no-las tirar. Prossigamos a nossa história.

Finalmente acabada a longuíssima saison figueiroense, Malhoa retira-se para Lisboa e traz os quadros. É natural que ainda trabalhe um e outro no atelier de Campo d’Ourique, os mande emoldurar, os vá assinando e datando. Por isso não estranhemos se, daquela meia dúzia vista em Novembro de 1902 no «Casulo», uns nos apareçam datados de 1902, outros de 1903 ou mesmo 1906… Alguns serão destinados à Exposição da Sociedade Nacional de Belas Artes, outros, os que Malhoa considera mesmo bons, são-no ao Salon de Paris. A bela Cabeça do António Carlos, 1903, tinha todas as razões para o sucesso, e Malhoa sabia-o.


A 30 de Março de 1903, Malhoa assenta no seu livro «Receita | Despeza» - o tal que era mesmo só para si: «Recebi do José Relvas por conta da cabeça do Antº Carlos, pintada em Figueiró dos Vinhos, em Novembro 1902, e agora exposta no “Salon” – 300$000».

Não sabia ainda Malhoa, como o sabemos agora nós, que a sua (e afinal já do Relvas) querida Cabeça do António Carlos havia de ficar às portas do Salon
    Como se confirma pelo Catalogue Illustré, apenas «La procession» (assim, e simplesmente!) - a bem conhecida A Procissão, 1903 - teve direito de acesso.

           Para Malhoa, foi um desgosto!


Como vimos, o quadro da Cabeça do António Carlos foi pago enquanto foi a França e voltou. Voltou e foi direito aos «Patudos», a casa de José Relvas, de cuja colecção ainda hoje faz parte.
Mudou logo de nome – sabe-se lá se por fazer alguma confusão ter a cabeça de um velho aldeão chamado António Carlos na casa afidalgada do filho e pai de outros dois Carlos, e não se querer "certas misturas"… E «Cabeça de velho» simplesmente ficou.

     Este postal ilustrado, enviado pelo Veríssimo ao Malhoa (e é daqueles que eu gosto, onde se tratam por tu, direito ao assunto, sem conversas de circunstância, das que dão aso a interpretações duvidosas a quem pouco jeito tem para ler as cartas embora leia muitas…Eu, um dia destes e a outro propósito,  mostro o resto). O postal, dizia, circulou em 1907, mas é natural que tenha sido editado uns anos antes, e como se vê já lhe chama «Cabeça de velho».

Depois, logo, logo em 1906, no Catálogo da Exposição do Rio de Janeiro, o António Carlos lá aparece, mas desta vez como «O regedor».
Mas não, a Cabeça do António Carlos não foi ao Brasil ! Apenas a sua fotografia, que é uma das que ilustram o catálogo. E tal pode enganar muito boa gente. A escritora brasileira Carmen Dolores foi a primeira – durante a vernissage deve ter estado mais interessada em “tomar um vinho”, “bater um papo gostoso”, e nem olhou os quadros como devia ser… chegada a casa, fez a crónica para O Paiz a olhar os bonecos do catálogo. O resultado até é surpreendente, fala de algumas das obras expostas e doutras que nem sequer pode ter visto, e escreveu sobre a Cabeça do António Carlos 
«Vejam em seguida outro estudo de velho, e que lindo velho também, Regedor , de ásperas sobrancelhas revoltas cujos fios duros como piaçavas tem todavia a sua utilidade: velam um pouco a esperteza aguda dos olhinhos matreiros, de emboscada atrás dessas sarças brancas. | No alto das faces enrugadas, sente-se o belo tom sadio de uma maçã camoesa. As mãos são um prodígio de realidade, com as suas juntas encarquilhadas, toda a rede de grossas veias em relevo sob a pele franzida e lismada.»[1]

Mais tarde, na grande Exposição de Homenagem a José Malhoa, 1928, voltou «O Regedor». Desta vez não só no catálogo, ilustrado com aquela foto do postal ilustrado, mas de tela e moldura dependuradas na parede e tudo.
Terá, alguma vez, o nosso amigo António Carlos sido «Regedor» lá da freguesia? fosse ela qual fosse? ou é como o outro, que é «Juiz» sem nunca o ter sido? Eu disso não sei, e duvido que alguém verdadeiramente o saiba…

Mas chamem-lhe «O Regedor», «Cabeça de Velho», chamem-lhe o que quiserem, aqui o velho António Carlos, menino de mais de duzentos anos, não se deve importar grandemente com isso…

Agora escrever, e com o ar mais sério deste mundo, «o retratado é Joaquim Gabriel, do lugar da Lavandeira» é que já é o …….! com Vossa licença, era mas era a prima!

E quem copia a asneira | fica também ali à beira» – ditado popular que eu inventei há um bocadinho).

Recorte de uma  fotografia do Museu e Centro de Artes de Figueiró dos Vinhos.



           
          Entretanto, por estes dias e até 21 de Maio de 2016, a Cabeça do António Carlos está de novo em Figueiró dos Vinhos. E muito bem acompanhada!

Só a falar francês, daquele do Salon, encontramos logo dois: L’homme au capuchon / O homem do gorro / Retrato do fotógrafo António Novais (Salon, 1901) e Portrait de Mme C…… / Retrato da Ex.mª Sr.ª P. da C. (Teresa Pereira da Costa) (Salon, 1902). Esta última já havia hablado español, na verdade no ano anterior e com assinalado sucesso (Madrid, 1901). A juntar a estes dois, a Cabeça do António Carlos / Cabeça de Velho / O Regedor que, como foi e veio de Paris sem entrar no Salon (1903) e é campónio, acaba por ser apenas «avec». Não obstante, nada fica a dever aos precedentes.
De um pouco conhecido mas de muito boa qualidade Retrato do Senhor D. Luiz I, 1884, a carvão, ao pastel de O Ventura, 1933; do Retrato de Dona Júlia Malhoa, 1883, à serigaita atrevida de A Provocante, 1914; o Museu e Centro de Artes de Figueiró dos Vinhos exibe por esta altura um excelente conjunto de retratos da mão de Malhoa. Do melhor que se pode reunir. 
           É uma imperdível mostra. Merece a vossa visita.
           O António Carlos fica à espera, com «as mãos sobre um apoio»...


16 Dez. 2015. LBG

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[1] Carmen Dolores. Impressão de luz. in O Paiz, Rio de Janeiro, 26 Jul. 1906, p.3. 
Pode ler a transcrição integral do artigo, bem como outros do referido periódico sobre a Exposição de Malhoa no Rio, 1906, aqui.

...e só mais uma coisinha

Vimos já, através de duas boas fontes - O Figueiroense e o próprio Malhoa - que, inequivocamente, o modelo dCabeça do António Carlos / Cabeça de Velho / O Regedor foi «o Antonio Carlos (...) um velho d’aquelle nome, de 88 annoscom chapeu na cabeça, capote aos hombros e mãos sobre um apoio». 
        Sem tanta certeza, mas com grande probabilidade de ser também verdade, sabemos agora, segundo o tabelião da terra e de "papel passado", que o dito António Carlos era «solteiro, maior, proprietário... morador nesta villa de Figueiró dos Vinhos» e que, pelo menos por duas ocasiões, em 1892 e 1899, compareceu perante o referido tabelião para efectivar a venda de «terras de semeadura» de que era proprietário, situadas em «São Pedro, nos suburbios desta villa». E, pelo original dos assentos, ficamos a saber que era capaz de assinar o nome.
Fica, pois, o autógrafo do nosso amigo António Carlos: 



           O Zilo Alves da Silva, um outro a quem Malhoa também fará o retrato (hoje no acervo do MJM, Caldas da Rainha), assina «A rogo» do comprador. E António d'Azevedo Lopes Serra, o «Serra da farmácia», mais um amigo figueiroense do Pintor, assina como testemunha.
           Isto é coisa que interessa pouco, claro! Mas tem piada. E fica... que não estamos aqui para inventar nada.

23 Jan. 2017. LBG

Breve retrato de Olavo Bilac

num crayon de António Carneiro



Olavo Bilac (Rio de Janeiro, 16 Dez. 1865 - 28 Dez. 1918) foi um grande e respeitável cultor da Língua Portuguesa. Poeta, contista, cronista e jornalista. «A Pátria não é a raça, não é o meio, não é o conjunto dos aparelhos econômicos e políticos: é o idioma criado ou herdado pelo povo» - teria escrito, talvez ainda antes do outro que todos conhecemos…
Membro fundador da Academia Brasileira de Letras, colaborou em diversos jornais e revistas, entre eles o Diário de Notícias e a Gazeta de Notícias, do Rio. E também nos sucessivos periódicos luso-brasileiros do tempo: A Imprensa (1885-1891), A Leitura (1894-1896), Branco e Negro (1896-1898), Brasil-Portugal (1899-1914) e Atlântida (1915-1920).
 Activo republicano e nacionalista, é o autor da letra do Hino à Bandeira brasileira. Foi inspector de instrução da escola pública e membro do Conselho Superior do Departamento Federal; foi também secretário do Congresso Pan-Americano realizado em Buenos Aires. Entre uma multifacetada intervenção cívica e literária, granjeou o reconhecimento geral e a simpatia popular.
Em Lisboa, em sua homenagem, o jardim frente ao Palácio das Necessidades tomou o nome de «Jardim Olavo Bilac».

Sobre Bilac, as suas relações e viagens com e a Portugal vale muito a pena ler um interessante texto, intitulado «Bilac em Lisboa» [1], acessível neste PDF.
            Será, por certo, da sua última das viagens a Lisboa, a realizada em 1916, este retrato de Olavo Bilac, um belo desenho da autoria de António Carneiro (Amarante, 16 Set. 1872 - Porto, 31 Mar. 1930).

            Recordemos que já aqui e aqui vimos algumas fotos onde Olavo Bilac está presente. São fotografias tiradas por ocasião da estada de Malhoa no Rio, em 1906, durante a visita social ao Sumaré de 29 de Julho. Oferecidas e legendadas pelo seu autor, Luiz Canêdo, foram trazidas do Rio e bem guardadas por Malhoa. Publicam-se de novo agora. 
               Cento e cinquenta anos após o nascimento de Olavo Bilac.


«Este bloc sinthetiza a Poesia e a Arte - nas suas mais bellas e extraordinarias creações». 
«29 Julho 1906 - Sumaré».                                                      «Luiz Canêdo».
Olavo Bilac será o primeiro da esquerda, seguem-se Joaquim e José Malhoa, Rodolfo Bernardelli, e Gonzaga Duque.


«Lembrança do almoço que o grande industrial Casimiro Alberto da Costa, 
offereceu ao distincto pintor José Malhôa no alto do Sumaré, em 29 de Julho de 1906»  (fotografia: Luiz Canêdo).
Dos cinco sentados na segunda fila, Olavo Bilac será o último mais à direita.























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16 Dez. 2015. LBG.


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[1] Dimas, Antonio. «Bilac em Lisboa», in Via Atlântica, nº2, pp.174-189. USP-Universidade de São Paulo, 1999.