e depois,
podem chamar-lhe (ou a mim)
o que quiserem…
Novembro
quase passado. Há muito que lá iam as vindimas. Já eram as broas mais o tempo
das castanhas. Nos lagares moíam-se as derradeiras azeitonas. Aquele ano de 1902 estava a chegar ao fim, e
Malhoa ainda se demorava por Figueiró.
Pudera! o «Casulo» aumentado, finalmente com um atelier
como devia ser, tudo ainda com as madeiras a cheirar a novo. Houve que
aproveitar e trabalhar até mais não. E, para Malhoa, a “colheita” desse ano foi
bem boa!
Estava quase «a retirar para Lisboa» levando consigo o
produto da sua “safra”. Mas, antes, tinha que satisfazer a curiosidade de alguma
daquela gente que andava mortinha por meter o bedelho no «chalet novo do
sr. Malhoa» e não havia meio… Malhoa não podia passar mais um ano sem o fazer,
ou “o cortar-lhe na casaca” seria ocupação certa nas longas noites do inverno
figueiroense…
Assim, numa terça-feira, 25 de Novembro (ora cá está uma boa
razão para se evocar a data) mas de 1902, lá se resolveu a convidar «as pessoas
de suas relações» a visitarem o atelier «para verem os seus bonecos».
Por certo não estiveram os mais íntimos, os amigos da casa: o
Pinto e o Simões há muito que haviam abalado para Tomar e Lisboa, logo que o
tempo das aulas a isso os obrigara (embora o «Manel» ainda lá permanecesse em
retrato); e o Quaresma, outro grande amigo que conhecia o «Casulo» de trás para
a frente, pois havia sido o grande apoio na condução das obras, andava já
atrapalhado, coitado, com os achaques que o iriam levar em breve “desta para melhor” - até
o jornal falava disso. Terão ido outros e outras, não interessa agora quem. Parece
que ficaram todos satisfeitos. E, quatro dias depois, a "vernissage campestre" foi
notícia n’ O Figueiroense.
Podemos, agora e aqui, voltar a ler e ficar a saber tudo:
E, da mesma página do jornal, a nota sobre a doença do Quaresma. Com a particularidade, pelo menos para mim que sou um pedaço distraído, de ser a primeira vez que o vejo nomeado como presidente da Câmara Municipal. Que este Manuel Quaresma d’Oliveira, quer-me parecer um homem bom, é mais um desgraçado que não caiu em graça da historiografia figueiroense…
O relato do escriba do jornal é saboroso. Através dele ficamos a saber um pouco mais sobre alguns dos quadros que Malhoa pintou nesse
ano em Figueiró: «A procissão», o retrato d’«O António Carlos», «O
phosphoro de enxofre», «A apanha das castanhas», a «Descamisada»,
«Cabeça d’estudo» (o tal retrato do Pinto de que já aqui falámos) e «Ultimos
raios de sol». De alguns destes ficamos a conhecer os protagonistas – e de
fonte bem mais segura que algumas inquinações posteriores, porque nos é dito em
primeira mão e por quem os conheceu realmente. E, sem escusadas erudições,
modestamente reconhecido - «que por incompetência nos abstemos» - ali temos
também uma descrição sucinta e objectiva de algumas das pinturas de Malhoa.
Deixemos as outras para depois. Detenhamo-nos no intrigante «O
António Carlos».
O «retrato de um velho d’aquelle nome» - chamava-se António Carlos, está visto - «de 88 annos» - uma provecta idade para esses tempos - «com chapeu na cabeça, capote aos hombros e mãos sobre um apoio» – só faltou dizer mesmo que o «apoio» era um grande guarda-sol azul - «tudo o mais natural que pôde imaginar-se»… Delicioso. Conciso. Sem lugar a dúvidas.
O «retrato de um velho d’aquelle nome» - chamava-se António Carlos, está visto - «de 88 annos» - uma provecta idade para esses tempos - «com chapeu na cabeça, capote aos hombros e mãos sobre um apoio» – só faltou dizer mesmo que o «apoio» era um grande guarda-sol azul - «tudo o mais natural que pôde imaginar-se»… Delicioso. Conciso. Sem lugar a dúvidas.
Fica, assim, apresentada a «Cabeça do António Carlos»,
1903. Um grande Malhoa! Ei-lo:
José
Malhoa. Cabeça do António Carlos / Cabeça de velho / O Regedor, 1903.
ost.
56x46. Casa dos Patudos - Museu de Alpiarça.
|
E se dúvidas ainda houver, o próprio Malhoa se irá encarregar
de no-las tirar. Prossigamos a nossa história.
Finalmente acabada a longuíssima saison figueiroense, Malhoa
retira-se para Lisboa e traz os quadros. É natural que ainda trabalhe um e
outro no atelier de Campo d’Ourique, os mande emoldurar, os vá assinando
e datando. Por isso não estranhemos se, daquela meia dúzia vista em Novembro de
1902 no «Casulo», uns nos apareçam datados de 1902, outros de 1903 ou mesmo
1906… Alguns serão destinados à Exposição da Sociedade Nacional de Belas Artes,
outros, os que Malhoa considera mesmo bons, são-no ao Salon de Paris. A
bela Cabeça do António Carlos, 1903, tinha todas as razões para o
sucesso, e Malhoa sabia-o.
A 30 de Março de 1903, Malhoa assenta no seu livro «Receita |
Despeza» - o tal que era mesmo só para si: «Recebi do José Relvas por conta
da cabeça do Antº Carlos, pintada em Figueiró dos Vinhos, em Novembro 1902, e
agora exposta no “Salon” – 300$000».
Não sabia ainda Malhoa, como o sabemos agora nós, que a sua (e afinal
já do Relvas) querida Cabeça do António Carlos havia de ficar às portas
do Salon.
Como se confirma pelo Catalogue Illustré, apenas «La procession» (assim, e simplesmente!) - a bem conhecida A Procissão, 1903 - teve direito de acesso.
Para Malhoa, foi um desgosto!
Como se confirma pelo Catalogue Illustré, apenas «La procession» (assim, e simplesmente!) - a bem conhecida A Procissão, 1903 - teve direito de acesso.
Para Malhoa, foi um desgosto!
Como vimos, o quadro da Cabeça do António Carlos
foi pago enquanto foi a França e voltou. Voltou e foi direito aos «Patudos», a
casa de José Relvas, de cuja colecção ainda hoje faz parte.
Mudou logo de nome – sabe-se lá se por fazer alguma confusão
ter a cabeça de um velho aldeão chamado António Carlos na casa afidalgada do
filho e pai de outros dois Carlos, e não se querer "certas misturas"… E «Cabeça
de velho» simplesmente ficou.
Este postal ilustrado, enviado pelo Veríssimo ao Malhoa (e é
daqueles que eu gosto, onde se tratam por tu, direito ao assunto, sem conversas
de circunstância, das que dão aso a interpretações duvidosas a quem pouco jeito
tem para ler as cartas embora leia muitas…Eu, um dia destes e a outro propósito, mostro o resto). O postal, dizia, circulou em 1907, mas é natural que tenha
sido editado uns anos antes, e como se vê já lhe chama «Cabeça de velho».
Depois, logo, logo em 1906, no Catálogo da Exposição do Rio
de Janeiro, o António Carlos lá aparece, mas desta vez como «O regedor».
Mas não, a Cabeça do António Carlos não foi ao Brasil ! Apenas a sua fotografia, que é uma das que ilustram o catálogo. E tal pode enganar
muito boa gente. A escritora brasileira Carmen Dolores foi a primeira – durante
a vernissage deve ter estado mais interessada em “tomar um vinho”, “bater um papo gostoso”, e nem olhou os
quadros como devia ser… chegada a casa, fez a crónica para O Paiz a olhar
os bonecos do catálogo. O resultado até é surpreendente, fala de algumas das
obras expostas e doutras que nem sequer pode ter visto, e escreveu sobre a Cabeça do
António Carlos:
«Vejam em seguida outro estudo de velho, e
que lindo velho também, Regedor , de ásperas sobrancelhas
revoltas cujos fios duros como piaçavas tem todavia a sua utilidade:
velam um pouco a esperteza aguda dos olhinhos matreiros, de emboscada atrás
dessas sarças brancas. | No alto
das faces enrugadas, sente-se o belo tom sadio de uma maçã camoesa. As mãos são
um prodígio de realidade, com as suas juntas encarquilhadas, toda a rede de
grossas veias em relevo sob a pele franzida e lismada.» [1]
Mais tarde, na
grande Exposição de Homenagem a José Malhoa, 1928, voltou «O Regedor».
Desta vez não só no catálogo, ilustrado com aquela foto do postal
ilustrado, mas de tela e moldura dependuradas na parede e tudo.
Terá, alguma vez, o nosso amigo António Carlos sido «Regedor»
lá da freguesia? fosse ela qual fosse? ou é como o outro, que é «Juiz» sem
nunca o ter sido? Eu disso não sei, e duvido que alguém verdadeiramente o saiba…
Mas chamem-lhe «O Regedor», «Cabeça de Velho»,
chamem-lhe o que quiserem, aqui o velho António Carlos, menino de mais de
duzentos anos, não se deve importar grandemente com isso…
Agora escrever, e com o ar mais sério deste mundo, «o
retratado é Joaquim Gabriel, do lugar da Lavandeira» é que já é o …….! com
Vossa licença, era mas era a prima!
(«E quem copia a asneira | fica também ali à beira» – ditado popular
que eu inventei há um bocadinho).
Entretanto, por estes dias e até 21 de Maio de 2016, a Cabeça do António Carlos está de novo em Figueiró dos Vinhos. E muito bem acompanhada!
Só a falar francês, daquele do Salon, encontramos logo dois: L’homme au capuchon / O homem do gorro / Retrato do fotógrafo
António Novais (Salon, 1901) e Portrait de Mme C…… /
Retrato da Ex.mª Sr.ª P. da C. (Teresa Pereira da Costa) (Salon,
1902). Esta última já havia hablado español, na verdade no ano anterior e com assinalado sucesso (Madrid, 1901). A juntar a estes dois, a Cabeça
do António Carlos / Cabeça de Velho / O Regedor que, como foi e veio de
Paris sem entrar no Salon (1903) e é campónio, acaba por ser apenas «avec».
Não obstante, nada fica a dever aos precedentes.
De um pouco conhecido mas de muito boa qualidade Retrato
do Senhor D. Luiz I, 1884, a carvão, ao pastel de O Ventura, 1933; do Retrato de Dona Júlia Malhoa, 1883, à serigaita atrevida de A
Provocante, 1914; o Museu e Centro de Artes de Figueiró dos Vinhos exibe por
esta altura um excelente conjunto de retratos da mão de Malhoa. Do melhor que se pode
reunir.
É uma imperdível mostra. Merece a vossa visita.
O António Carlos fica à espera, com «as mãos sobre um apoio»...
É uma imperdível mostra. Merece a vossa visita.
O António Carlos fica à espera, com «as mãos sobre um apoio»...
16 Dez. 2015. LBG
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[1] Carmen Dolores. Impressão
de luz. in O Paiz, Rio de Janeiro, 26 Jul. 1906, p.3.
Pode ler a transcrição integral do artigo, bem como outros do referido periódico sobre a Exposição de Malhoa no Rio, 1906, aqui.
...e só mais uma coisinha
Pode ler a transcrição integral do artigo, bem como outros do referido periódico sobre a Exposição de Malhoa no Rio, 1906, aqui.
...e só mais uma coisinha
Vimos já, através de duas boas fontes - O Figueiroense e o próprio Malhoa - que, inequivocamente, o modelo da Cabeça do António Carlos / Cabeça de Velho / O Regedor foi «o Antonio Carlos (...) um velho d’aquelle nome, de 88 annos, com chapeu na cabeça, capote aos hombros e mãos sobre um apoio».
Sem tanta certeza, mas com grande probabilidade de ser também verdade, sabemos agora, segundo o tabelião da terra e de "papel passado", que o dito António Carlos era «solteiro, maior, proprietário... morador nesta villa de Figueiró dos Vinhos» e que, pelo menos por duas ocasiões, em 1892 e 1899, compareceu perante o referido tabelião para efectivar a venda de «terras de semeadura» de que era proprietário, situadas em «São Pedro, nos suburbios desta villa». E, pelo original dos assentos, ficamos a saber que era capaz de assinar o nome.
Sem tanta certeza, mas com grande probabilidade de ser também verdade, sabemos agora, segundo o tabelião da terra e de "papel passado", que o dito António Carlos era «solteiro, maior, proprietário... morador nesta villa de Figueiró dos Vinhos» e que, pelo menos por duas ocasiões, em 1892 e 1899, compareceu perante o referido tabelião para efectivar a venda de «terras de semeadura» de que era proprietário, situadas em «São Pedro, nos suburbios desta villa». E, pelo original dos assentos, ficamos a saber que era capaz de assinar o nome.
Fica, pois, o autógrafo do nosso amigo António Carlos:
O Zilo Alves da Silva, um outro a quem Malhoa também fará o retrato (hoje no acervo do MJM, Caldas da Rainha), assina «A rogo» do comprador. E António d'Azevedo Lopes Serra, o «Serra da farmácia», mais um amigo figueiroense do Pintor, assina como testemunha.
Isto é coisa que interessa pouco, claro! Mas tem piada. E fica... que não estamos aqui para inventar nada.
23 Jan. 2017. LBG
O Zilo Alves da Silva, um outro a quem Malhoa também fará o retrato (hoje no acervo do MJM, Caldas da Rainha), assina
Isto é coisa que interessa pouco, claro! Mas tem piada. E fica... que não estamos aqui para inventar nada.
23 Jan. 2017. LBG