Há muito, muito tempo, numa cidade longínqua, dois alfaiates tecelões e contadores de estórias chegaram junto do rei e disseram: - Qual brocado de Damasco, qual seda da China, qual arminho da Sibéria!? Majestade, para Vos cobrirdes condignamente, fazendo jus à Vossa Mercê, nada melhor que o tecido que só nós sabemos urdir. De tão fino e delicado, apenas espíritos superiores, somente gente de sólida cultura, indivíduos dotados da mais sábia e treinada visão estética o poderão divisar e apreciar sobre o Vosso real corpinho.
O rei anuiu.
E assim se fez. Teceram, moldaram,
cortaram, alinhavaram, coseram, bordaram, esfoliaram. E, quando tudo ficou
pronto, o apresentaram ao rei. O rei, na verdade, pouco ou nada via, mas, para
não passar por ignaro e inculto aos olhos dos súbditos mais eruditos, disse nada.
E ajudaram-No a vestir tão sumptuoso traje. E logo todos Lhe elogiaram o porte
e também o corte, o drapejar, o cair, o tão fino acabamento. Ninguém alguma vez
vira coisa mais maravilhosa - diziam. A notícia espalhou-se aos quatro ventos.
O rei, temeroso, desconfiava: se, no pino
do estio, uma certa sensação das soberanas pendurezas à solta era assaz confortável,
já na época invernosa tanta leveza deixá-Lo-ia certamente transido de frio… Contudo,
como todo o mundo tudo apreciava e muito elogiava a urdidura, esta deveria ser
mesmo de um alto coturno. E nada havia a dizer: - Aguenta! – pensou o
soberano.
Um dia, um pobre diabo, um palerma coitado, curioso de tanto
ouvir e ler sobre a anunciada novidade, resolveu ir ver com os próprios olhos.
Foi. E viu pêva!
Ele bem tentou. Semicerrou os olhos,
tirou e pôs os óculos, limpou convenientemente as lentes, maldisse o
estigmatismo, duvidou pela primeira vez da sua amiga Leonor, a optometrista de
toda a vida. Deu quatro passos à esquerda, e logo dois à direita (mais que
isso, também não!); aproximou-se quanto pode, recuou uns bons metros. E nada!
Nada via. Ou melhor: via-se a si próprio, via umas moças postadas do outro lado
da sala, via luzes e luminárias, toda a panóplia do salão, via tudo o que não
queria ver, mas ver a anunciada maravilha é que não!
Ele ouvira falar da leveza, da finura,
da transcendência de tão sublime tecelagem – Mas, nada? não ver nada, era
demais!? Seria sortilégio?!
Pediu que acendessem as luzes, que as
apagassem depois (apenas o sol lhe não fez a vontade). E nicles!
Então baixou sobre o desgraçado a grande
dúvida: seria ele, acaso, um dos tais espíritos inferiores que, por fraca
cultura e falta de visão estética, estava impedido de ver tão maravilhosa
maravilha? Só podia! Desesperou.
Tentou uma derradeira vez. Procurou ver
mais em pormenor. Com imenso esforço lá conseguia entrever, aqui e ali, por
entre as névoas e os reflexos que teimavam em toldar-lhe o olhar, em
ocultar-lhe o desfrute, uma ou outra pedra preciosa, um ou outro filamento
sabiamente disposto [seria prata, seria oiro?]; aqui adivinhava um plano
tranquilo, além uma mais movimentada superfície - pela amostra, a coisa parece
ser até bastante interessante! – pensou. Mas seriam mesmo pequenos e particulares
detalhes da preciosa urdidura o que agora via? Ou era apenas a visão construída
pela sua parca imaginação, pelo anseio, pelo querer alguma coisa ver? A
limitada mente do pobre diabo esvaía-se no dilema.
- Será «pathos»? será «ethos»?
«logos» não é, certamente! e «enos» não bate assim… [neste particular, pelo
menos, tinha a certeza: apenas virara duas tacinhas no sôr Carlos] - papagueava
ele, em arremedo quase clássico, a ver se elevava os padrõezinhos, na tentativa
última de se equiparar aos eleitos a quem a visão plena seria permitida. Mas o helénio
léxico, de tão limitado, não dava para mais. E desistia.
Nisto, alguém o lembrou: - É «a
ideia de felicidade que transparece», estúpido! - Então tudo ficou claro!
Estava explicado: o pobre coitado, burro, havia-se olvidado dessa importante premissa,
daquele novo postulado da estética comparada e analítica. Era isso!
E, finalmente, sossegou.
Embora continuasse sem ter visto [a ponta dum c…].
12 Set.2018. LBG.
Sem comentários:
Enviar um comentário
O seu comentário, contributo ou discordância é sempre benvindo. Será publicado logo que possível, depois de moderado pelo administrador. Como compreenderá, não publicaremos parvoíces... Muito obrigado.