citando dos tércios,
contrariando
a querença natural
«Neste mês de julho, a Casa dos
Patudos – Museu de Alpiarça irá inaugurar uma Exposição de fotografias de
Carlos Relvas. Antecipando esta exposição, apresentamos como peça do mês uma pintura
de José Malhoa representando Carlos Relvas montando o Salero, o seu cavalo
preferido, numa praça de touros, possivelmente na praça de touros de Setúbal,
que tem o seu nome.
«Esta pintura foi encomendada
por Carlos Relvas ao pintor em 1881, mas apenas foi realizada em 1887. A obra
retoma as convenções grandiloquentes do retrato equestre. O cavalo retratado é
um dos últimos cavalos de toureio de Carlos Relvas, um puro-sangue lusitano,
chamado Salero. Este encontra-se bem adornado, empinado com brio e de perfil.
«Carlos Relvas, também
retratado de perfil, está elegantemente vestido, rodando a cabeça para o
espetador e cumprimentando-o com o tricórnio.
«A praça de touros parece
surgir depois do retrato, artificio cénico, tratado com uma luminosidade intensa
e um cromatismo tímbrico bem naturalista, a luz intensa do dia, marcada por
fortes sombras projetadas.
«O retrato tem um sentido
dedicado exclusivamente ao personagem, mesmo pelas flores caídas no chão,
exposto na atitude mais nobre da montaria, com numerosos exemplos anteriores
nas representações da realeza e dos membros da nobreza.
«Invulgar na obra de Malhoa, a
solução do retrato equestre em corpo inteiro, terá sido talvez um pedido do
próprio Carlos Relvas, tratando-se do momento apoteótico do fim da lide.»
«Peça
do mês – Julho
Carlos Relvas montando o Salero
numa Praça de Touros
óleo sobre tela | José Malhoa,
1887 | diâm. 124cm. | CP–MA. Inv. nº 84.46»
O texto acima
transcrevo-o de um post das redes socias da Casa dos Patudos.
Será – não devo estar enganado - da lavra do meu caro Nuno Prates, dedicado e
dinâmico Conservador daquele museu de Alpiarça, a quem deixo desde aqui um grande
abraço. Gostei muito.
Gostei do
texto, gosto da notícia. Pois parece que, finalmente, entre as duas simpáticas
e vizinhas instituições, a Casa-Estúdio Carlos Relvas, da Golegã, e a Casa
dos Patudos – Museu de Alpiarça, legado de José Relvas, começa a haver
colaboração. Qualquer das duas merece a atenção de uma visita. E esta exposição,
«Carlos Relvas e a Arte Fotográfica: O Retrato», que pode ser vista até
dia 29 de Setembro na antiga casa do filho José, por maioria de razão.
Ademais, vem
mesmo a propósito de umas coisas que tinha aqui há muito para contar. Serve de
mote e aguça o sentido.
[Como as
estórias são várias e encadeiam como as cerejas, o melhor é dividi-las por
capítulos. E, para mais fácil leitura, as notas vão no final do capítulo
respectivo - caso não interessem, é passar adiante…]
_________________________
I. Cumprir apresentações, circulando
pelos quadrantes
Não tem
agora cabimento falar da vida e genialidade de Carlos Augusto de Mascarenhas
Relvas de Campos (Golegã, 1838-1894) enquanto fidalgo, rico lavrador
ribatejano, cavaleiro tauromáquico e diversificado sportsman, fotógrafo amateur,
espírito curioso e inventor, benemérito, enfim, do homem culto, elegante,
informado, de muitas perícias e várias artes. Sobre tudo isto, já por aí há muito
dito.
Mas convém
sublinhar, no que respeita ao nosso caro Malhoa, e contrariando crença
arreigada e sempre muito repetida, é com Carlos Relvas que se inicia a profícua
e longa relação entre o Pintor e a família Relvas. Primeiro foi na Golegã, só depois
em Alpiarça.
Vamos lá a ver: entre 1881 ou 1882 e, na prática, quase até à morte de Carlos Relvas,
ocorrida a 23 Jan.1894, nessa primeira dúzia de anos, é a Carlos que Malhoa pinta
os cavalos, o pinta a ele em cima dos cavalos, lhe pinta e desenha a mulher, lhe
pinta a filha, e mais umas coisas que logo veremos… E ainda lhe faz um magnífico
desenho com os planos do revolucionário bote, o Salva-Vidas
Relvas, 1883, inventado e desenvolvido entre 1880 e 1883. Fica aqui a phototypia
engendrada por Relvas sobre o desenho de Malhoa [1]. O desenho, esse, é
bem melhor vê-lo ao vivo, e é, aliás, a única marca de Malhoa que ainda permanece
na Casa-estúdio da Golegã…
Durante este
período de tempo, por seu lado e sua arte, Carlos Relvas retrata Malhoa, não
uma, mas pelo menos umas três vezes! [Como também iremos ver mais à frente…]
Já com José de Azevedo Mascarenhas Relvas (Golegã, 1858
- Alpiarça, 1929), filho do anterior, é bem sabida, alardeada e abundantemente
documentada a longa ligação a Malhoa. Com períodos de maior ou menor
intensidade, com fluxos díspares na conhecida troca epistolar, tal relação durará
igualmente até à morte deste [2], ocorrida a 31 Out.1929. No ano seguinte ao
falecimento de José Relvas, por encomenda da viúva D. Eugénia, Malhoa executará
ainda dois retratos seus. E, como se tornara uso na família, póstumos e a
partir de fotografia - pelo menos quanto à figura - que para o de corpo inteiro
ainda existe um estudozinho [já há anos aqui mostrado] da cadeira e da mesa de
trabalho de Relvas. Vale a pena recordar de novo, o Estudo e o Retrato
de José Relvas, 1930.
Voltando
atrás. A «primeira» das inúmeras cartas trocadas entre Malhoa e José Relvas,
abundantemente referidas por Saldanha, dá conta do envio para Alpiarça do Retrato
de D. Margarida Relvas, 1888, um desenho a carvão [3]. Tal desenho,
muito provavelmente a primeira encomenda de José Relvas a Malhoa, será – é bom
não esquecer [4] – uma segunda versão do desenho feito pelo Pintor no ano anterior,
a pedido de Carlos Relvas, retratando D. Margarida Amália Mendes de Azevedo e
Vasconcelos Relvas de Campos, a mulher deste e mãe daquele, falecida a 22
Mar.1887 [5]. Desenho que Carlos Relvas fotografa e publica, a par de outras fotografias suas, num luxuoso livro em memória de D. Margarida Relvas,
editado já em 1888, com o sermão do cónego Alves Mendes proferido durante as exéquias.
Será o primeiro dos muitos retratos póstumos e a partir de fotografia que
Malhoa fez para a família Relvas.
Depois desta
episódica encomenda [em que o filho para não ficar atrás do pai também quis um
retrato da mãe desenhado pelo Malhoa], será preciso esperar quase sete bíblicos
anos, até às portas da morte de Carlos Relvas, pelo (re)início da longa relação
epistolar e mecenática entre José Relvas e o Pintor. Em 8 Jan.1894, uma carta
de Malhoa dá conta do envio para os Patudos do Retrato de Carlos Relvas,
1894, conforme referido por Saldanha, e que terá custado 350$000 réis [6]. Não
sendo, desta vez, um retrato póstumo [Carlos Relvas só viria a morrer no dia 23
Jan., mas havia já caído do cavalo, teimara em não se tratar e, por certo, a
septicémia que o haveria de vitimar há muito alastrara…] não se sabe
exactamente se a encomenda foi já do filho se ainda do pai, sequer se teve
sessões de pose ou se, mais uma vez, tudo foi feito a partir de fotografia…
Pela mesma
altura José Relvas adquire a Malhoa a primitiva versão de As Cócegas,
1894, pintada em Figueiró no verão anterior - no catálogo da 4ª exposição do
Grémio Artístico, inaugurada a 14 de Março, o quadro aparece já com a indicação
prévia «pertence ao sr. R.». [Anos mais tarde, Relvas viria a vendê-lo a um
espanhol... e perdeu-se-lhe o rasto.]
Dois anos passados,
nova desgraça e nova encomenda: o retrato póstumo da filha de Relvas, Retrato
de Luísa Relvas, 1896, falecida nesse ano a 28 de Junho, e feito mais
uma vez a partir de uma fotografia, com Maria Luísa de violino nas mãos [7].
Ora, ao
contrário do que está estabelecido nos cânones, tal retrato deverá ser,
muito provavelmente, o que Malhoa anuncia no catálogo do ano seguinte na 7ª
exposição do Grémio sob o título Retrato de M.elle R. Se esteve,
ou não, efectivamente presente no salão do Grémio, nunca o saberemos: Os
Oleiros (a versão pequena) e À passagem do Combóio [um dos quadros
também vendidos previamente a Relvas, e que mais tarde desaparecerá na volta de
Paris 1900] ofuscariam,
nas críticas e relatos que nos chegaram, as demais obras que Malhoa então
apresentou [8]. Mas o título e a coincidência nas medidas da(s) tela(s) de “ambos”
apontam claramente para que seja, afinal, um só retrato… [A leitura das cartas, por
vezes, anda longe de ser ciência exacta.]
E a saga de
José Relvas vs. Malhoa desenvolver-se-á nos anos sequentes. Entre outras
desgraças familiares e novas encomendas. Na compra e na venda, ou na oferta, de
muitos outros quadros e desenhos. E em cartas, muitas cartas. Mas essa é
história sabida, já recontada, e não é isso que nos traz agora.
_________________________
[1]. E esta é a gravura de Caetano
Alberto, publicada no Occidente a 21 Jan.1884, «segundo photographias de
Carlos Relvas».
Para ver ainda «Carlos
Relvas com o collete salva-vidas» e o resto das notícias sobre o invento, em
nota assinada por Gervásio Lobato no Occidente, é clicar aqui (ao fundo
da página e nas três seguintes…)
[2]. Quanto a isto, leia-se Saldanha
quando nos diz ser ainda em 1925 que Malhoa «recebe a última visita conhecida
de José Relvas» e nos remete para a «carta, de José Malhoa a José Relvas,
Lisboa, 27 Mai. 1925.». Contudo, o episódio dos retratos póstumos justifica a
afirmação.
Ver
SALDANHA, Nuno (2006). JOSÉ Vital Branco MALHOA (1855-1933): O pintor, o
mestre e a obra. Universidade Católica Portuguesa, FCH. Tese de
doutoramento. Dez. 2006. p.160.
[3]. Ver SALDANHA, Nuno (2010). José
Malhoa: Tradição e Modernidade. Lisboa: Scribe. pp.35 e 98.
[4]. Como, e bem, já referido por FALCÃO,
José António (2006). Os Corpos e as Almas: Obras de José Malhoa na Colecção
da Casa dos Patudos. Casa dos Patudos – Museu de Alpiarça (Catálogo da
Exposição realizada no Clube Figueiroense – Casa da Cultura, Figº. dos Vinhos,
2006). p.14.
[5]. Numa pesquisa rápida, o dia da morte,
tal como o ano do nascimento da Senhora, parece que variam conforme os autores…
Opta-se, assim, pela data alegadamente gravada no epitáfio do jazigo da Golegã,
segundo: FEIO, Cláudia. Ritualizar a morte no século XIX: O funeral de D.
Margarida Relvas (1837-1887) na Golegã. Aqui.
[6]. Ver SALDANHA. Op. cit. pp. 40
e 99.
[7]. Ver SALDANHA. Op. cit. pp. 41,
42 e 99.
E, já agora,
só para esclarecer: nur das, nichts mehr!
[8]. O catálogo da 7ª exposição do Grémio
Artístico mostra-nos, aliás, três quadros já pertença de Relvas – sem preços de
venda e com a indicação conjunta: «Pertencem ao Ex.mº Sr. R.». Para lá do já
referido À passagem do comboio, podemos ainda ler A torre
da cadeia (Figueiró dos Vinhos) e A casa d’Affonso (Figueiró
dos Vinhos) [ou, melhor, «a casa d’Áffunsa | Figueiró dos Vinhos»,
como parece ler-se na legenda manuscrita por Malhoa na própria pintura, junto à
assinatura e à data, «1896»].
Voltando ao
catálogo.
No início da
lista, podemos ver os dois retratos que Malhoa apresentou. Ambos sem indicação
de preço e de pertença, tal como era usual. Pois não eram para venda, e seriam,
é bom de entender, pertença de quem os havia encomendado e pago – o próprio
retratado ou um seu familiar [na sociedade de então, queira-se ou não, no caso
das senhoras, o marido; no caso de menores, o pai…]. Sabemos hoje que a senhora
«M.me A.W.» era D. Ada Weinstein. Resta, portanto, saber quem seria a menina
«M.elle R.», cujo retrato mede tal qual o de Mª Luísa Relvas… Será que vai uma
aposta?
_________________________
II. Findas as cortesias, arrecuemos ao páteo de
quadrilhas
e
vamos lá tratar dos cavalos – os de Carlos Relvas, claro.
Hoje
rebaptizadas Cavalo “Salero” (ou simplesmente, Salero),
1882, e Cabeça do Cavalo “Salero” (estudo),1882, a tela
com um metro de largo e a tábua, esta com menos de metade daquele tamanho,
foram apresentadas na 2ª exposição de Quadros Modernos (Grupo do Leão,
1882) com uma outra dignidade equina: Salero, retrato e Estudo
para o retrato de Salero [pois cavalo que merece retrato, é um
senhor cavalo!]. E como os dois primeiros da longa lista de 21 títulos que
Malhoa então mostrou [ali, e não noutro lado qualquer].
Estes dois
quadros são o resultado da primeira encomenda feita a Malhoa pela família Relvas
- por Carlos, evidentemente. Por via da qual Malhoa se terá deslocado propositadamente
à Golegã.
Nessa
ocasião Relvas retratou Malhoa. E retrata-o precisamente a pintar o
Salero – ou melhor, a fazer que pinta, que é foto de estúdio, preparada
e com cenário por de trás.
[Fez uns seis
anos, já aqui falei desta foto (e de uma outra, tomada certamente também por
Relvas pela mesma ocasião, referida na nota ao mesmo artigo). Tal como de uma
certa Cabeça de cavalo, 1875, que poderia ter servido de motivo a Carlos
Relvas para o convite ao promissor pintor (Malhoa tinha então 26/27 anos) para lhe
retratar o seu muito querido cavalo Salero.]
A foto, dizia
na altura «mais ou menos inédita» ou praticamente desconhecida, tem sido
entretanto bastante divulgada, quer em novas publicações quer em recentes exposições
sobre a obra de Carlos Relvas - e ainda bem! Normalmente reproduzida no cliché
integral, ou perto disso, permite perceber bem toda a mise-en-scène
preparada por Relvas para retratar Malhoa – o cenário pintado, o cavalete armado
e o banco do pintor, os demais adereços.
Aqueloutra prova,
reenquadrado o cliché e colada sobre um cartão de Carlos Relvas, foi ofertada
por Malhoa a Mª da Conceição Simões d’Almeida aquando da primeira estada em Fig.º
dos Vinhos (1883) e apresenta o bordo inferior mal cortado à cause do passe-partout
onde esteve colocada longos anos, mas serve muito bem para, aqui e agora,
podermos ver em pormenor a imagem do quadro que Malhoa faz que pinta.
Ora, ao
contrário das dúvidas que então colocava e depois de uma posterior olhada à
tábua existente na Casa dos Patudos, quer-me parecer, convictamente, que a
tábua junto à qual Carlos Relvas retratou Malhoa é aquilo que veio a ser,
efectivamente, o Estudo para o retrato de Salero, 1882 [ou, se
quiserem, a Cabeça do Cavalo “Salero” (estudo)]. A assim ser, é tal
fotografia um documento marcante, o duplo registo do início da relação de
Malhoa com os Relvas, datável de 1881 ou, possivelmente, já de 1882.
Olhemos com
atenção a foto da tábua no cavalete. É bem perceptível que as pontas das
orelhas do cavalo (principalmente a da nossa direita) acabam, melhor, não acabam,
para além do limite do suporte. Por outro lado, sobra bastante superfície
abaixo do pescoço do cavalo, espaço esse ocupado com o estudo avulso de uma
perna (ou mão ou o que seja) mal amanhada sob a queixada do animal… [As
manchas mais escuras, entre o pescoço do Salero e a manga do casaco de Malhoa,
são eventuais retoques dados na revelação da prova fotográfica].
Vejamos agora
a imagem do quadro tal como hoje existe (e que já deveria assim estar na
exposição do Leão, em Dezembro de 1882). Vêem a marca da emenda na tábua,
na horizontal, ao nível das orelhas do bicho? E a ponta da orelha em primeiro
plano, agora já acabada acima da tal costura? Percebem que o bocado de
madeira que agora está lá em cima, foi o que desapareceu da parte de baixo? Perceberam
tudo?!
O amigo
Malhoa era um artista! E, de um estudo de campo mal enjorcado,
fez um quadro para a 2ª exposição de Quadros Modernos! Serra em baixo,
cola por cima. Se temos perna a mais, com um simples fundo preto
nunca me comprometo. Em duas ou três pinceladas terminam-se as orelhas. Com
mais umas tantas afivela-se uma cabeçada catita. E cá temos a
Cabeça do Salero comm’il faut…
Repare-se no
catálogo do Leão: ao contrário do Salero, retrato, o de corpo
inteiro, o Estudo ainda não era «pertencente ao Sr. Carlos
Relvas». Mas ele deve ter ficado surpreso e todo contente com o belo resultado,
e também o levou para casa… Junto com o Salero, retrato, 1882, claro!
Foi o
início de uma bela amizade.
E, dessa amizade, surdiram mais retratos de cavalos e mais retratos de Malhoa.
Cada um fez e deu de si o que melhor sabia.
Eis Malhoa,
retratado por Carlos Relvas, em pelo menos mais duas ocasiões. Pela fisionomia não assim tão distantes umas da outra. E, note-se, o que vai ganhando em
elegância e atitude de poseur, lá vai perdendo em cabelo…
Quanto aos
cavalos, fora de novo o Salero [a esse já lá iremos], há pelo menos mais
dois. O problema é que ninguém se entende quanto ao chamar os nomes aos bichos!?
Falcão
diz-nos que Malhoa pintou «… em 1890 Carlos Relvas montando Salero
nos Campos da Golegã, e em 1891 Coquito, outro célebre cavalo da
casa Relvas» [9]. Saldanha, por sua vez, aponta «entre as obras executadas
nesse ano [1891] (…) [a] que realizou para Carlos Relvas (o cavalo Rollito)»
e, mais adiante, na listagem final das obras de Malhoa, refere em 1890, «Carlos
Relvas montando o “Rollito”», e em 1891, «Cavalo Rollito em liberdade»
[10]. Dois anos depois, confirmando os mesmos nomes e títulos, adianta quanto
ao primeiro quadro: «Retrato de Carlos Relvas com o seu cavalo Rollito,
que Malhoa retratou por duas vezes, e não do cavalo Salero, como tem
sido referido», e completa, «este retrato foi feito a partir de uma fotografia
de Carlos, embora com outro cavalo, provavelmente por o Rollito já ter
morrido». Já, referindo-se à segunda pintura, é parco em explicações,
limitando-se a dizer que o dito Rollito era «outro dos cavalos preferidos
de Carlos Relvas, também retratado por Malhoa no ano anterior, montado pelo seu
dono» [11]. [Aqui ficamos sem saber, como o bicho já estaria morto no ano
anterior, se, desta vez, a liberdade equina foi retratada do natural ou
por fotografia… Mas, também, não têm obrigação de nos contar tudo…]
Por fim, uma
publicação mais recente da Casa dos Patudos [por certo da mão do meu caro
Prates] dá-nos uma nova versão quanto ao animal retratado e descreve-nos até o
local da cena: «… retrata Carlos Relvas montando um dos seus cavalos, o Pérola.
Carlos Relvas encontra-se vestido com um fato de montar e chapéu de cor
cinzenta. Em segundo plano, uma paisagem campestre que representa a Alverca do
Campo, na Golegã» [12].
Pois, quer
seja Relvas a montar o «Salero», o «Rollito» ou o «Pérola»,
seja o «Coquito» ou o «Rollito» a trotar em liberdade, aqui ficam
as imagens de ambas as telas - com o mesmo ou com dois cavalos diferentes, sejam lá eles quais
fossem.
[E pode o
amigo leitor entreter-se a ver se lhes encontra parecenças…]
_________________________
[9]. Ver FALCÃO. Op. cit. p.13.
[10]. Ver SALDANHA. Op. cit. pp. 38
e 382.
[11]. Ver SALDANHA, Nuno (2012). José
Malhoa 1855-1933: Catálogo Raisonné. Lisboa: Scribe. pp. 240 e 354
[12]. Ver Peça do mês - Novembro
(2017), aqui. Que, às vezes, não é por a coisa estar impressa em papel ou
editada em livro, com todos os efes e erres, que passa a ser mais
verdadeira.
_________________________
III. De volta ao redondel, mão firme nos compridos.
Na 7ª
exposição de Arte Moderna (Grupo do Leão, 1887) Malhoa apresentou em
cartel apenas oito exemplares, diversos em peso e trapio. Entre
tais oito, puderam então ser apreciados, nada mais nada menos que 4-RELVAS-4. Mas todos
os oito vão ser merecedores da nossa atenção.
No dia
seguinte ao da abertura da exposição, o Diario Illustrado dava conta
minuciosa de todo o evento: do «incommodo» de «El Rei», do rol dos expositores,
das primeiras compras realizadas, do pagamento das entradas às quintas-feiras,
do atraso do catálogo, e de uma novidade - «o sr. Arthur Benarus, distincto
photographo amador, ofereceu-se para reproduzir os quadros».
E, em pequenas
chamadas de primeira página publicadas três e sete dias depois, insistiu na
novidade das «photographias do sr. Benarus».
Pois,
benditas photographias, bendito Arthur Benarus, bendito Malhoa que as
anotou, e bendito quem as guardou durante este tempo todo. Que nos vão dar,
agora, um jeitaço…!
Olhando de
novo à parte malhoesca do catálogo, logo percebemos que apenas os dois
primeiros títulos eram para venda. Os restantes seis, sem preços, quase todos retratos, já
teriam dono. Vamos então a isso.
Pensativa, 1887, diz-nos o Diario
Illustrado e confirma-o Malhoa no verso dum cartão do sr. Benarus, foi
«comprado pelo Marquês da Foz» e logo na vernissage. Era um óleo s/ tela,
c.62x45, e podemo-lo ver aqui, talvez em melhor proporção que na imagem
costumeira, na foto de Arthur Benarus.
Um belo
quadro. Dizem as crónicas que «admiravelmente pintado o velludo azul do casaco
guarnecido de arminho tão alvo e fino que parece ondular ao mais leve sopro».
O
Nabão, Thomar,
1887, muito provavelmente, mas sem absoluta certeza, será esta paisagem. Um óleo
s/ madeira, 36x66, que vem tendo sucessivos outros nomes: «Lavadeiras»,
«Paisagem de Casario com Rio»… Mas que é, sem qualquer dúvida, uma interessante
paisagem do rio Nabão, tomada em Tomar.
Retrato da sr.ª Condessa de Burnay, c.1887, será, eventualmente, este.
[Saldanha achou
que se trataria do retrato de «Maria Amélia Macedo» e tratou de discorrer
abundantemente: «Embora apareça referida como Condessa de Burnay, Maria Amélia
Burnay Macedo (n.1891), era filha de Carolina de Carvalho Burnay, e portanto,
neta do 1º conde de Burnay, nunca tendo sido titular. Maria Amélia era sobrinha
de Elisa Burnay, que foi discípula de Malhoa.» [13]. Ora, apesar de ali
assinalar a data de nascimento da alegada retratada (data, efectivamente,
certa!), não terá reparado ou não deve saber fazer contas, e quer que a gente
acredite que a putativa retratada, quatro anos antes de ter nascido já tinha o retratinho
pintado pelo Malhoa?! É obra!
Vamos lá tentar
ser mais seriozinhos. Henrique Burnay (1838-1909), o 1º conde de Burnay, casado
com D. Maria Amélia de Carvalho (1847-1924), teve dez filhos. Como, para o caso,
só nos interessam as mulheres: Maria Amélia de Carvalho Burnay (n.1865),
Carolina de Carvalho Burnay (n.1866), Elisa de Carvalho Burnay (n.1871) e Sofia
de Carvalho Burnay (n.1875). Em 1887, todas ainda solteiras. Assim, para quem
souber fazer umas contas, a Maria Amélia (a mais velha entre todos os irmãos, então
com 22 anos, e com o mesmo nome da alegada) ou a Carolina (de 21 anos, a
futura mãe da dita) podem ser boas candidatas ao lugar… Note-se que
Malhoa designa a retratada por «sr.ª», e não por menina ou m.elle.,
o que deverá eliminar as outras duas, então ainda menores de idade. Percebido?
Não queiram é fazer de nós parvos…]
Retrato
do sr. dr. Serpa Pinto, c.1887, que teve direito a gravura e tudo no catálogo do Leão.
Apesar disto,
e de dar para ver que se trata do retrato de um velho, lá temos de levar com mais
uma bela lição sobre a proliferação [ - foge cão que te fazem barão! –
p’ra onde, se me fazem visconde?! ] dos títulos nobiliárquicos durante o
liberalismo constitucional: «Alexandre Alberto da Rocha de Serpa Pinto
(1846-1900), 1º Visconde de Serpa Pinto, explorador, deputado e governador de
Cabo Verde, foi aqui retratado com cerca de 41 anos» [14].
Muito interessante, sem dúvida. Não fora tudo precisamente ao contrário: o retratado não é Alexandre de Serpa Pinto, nunca terá posto pé em África, nunca foi visconde, teria na altura perto de 89 respeitáveis primaveras e, se era chamado de «dr.», só podia ser uma de duas coisas – “doutor de leis” ou “doutor de medicina” (então não havia cá outros “doutores”, excepto em Coimbra onde tudo quanto era gente assim era tratado…).
Muito interessante, sem dúvida. Não fora tudo precisamente ao contrário: o retratado não é Alexandre de Serpa Pinto, nunca terá posto pé em África, nunca foi visconde, teria na altura perto de 89 respeitáveis primaveras e, se era chamado de «dr.», só podia ser uma de duas coisas – “doutor de leis” ou “doutor de medicina” (então não havia cá outros “doutores”, excepto em Coimbra onde tudo quanto era gente assim era tratado…).
Um cartãozinho
do sr. Benarus vem em nosso auxílio, com preciosa nota de Malhoa a confirmar
tudo, e mais uma inédita fotografia para todos podermos ver pela primeira vez
como seria, numa melhor aproximação à verdade, o retrato do Sr. Dr. José da
Rocha Miranda de Figueiredo (1798-1898), médico, empedernido miguelista, senhor
da Casa das Poldras, em Tendais, Cinfães. Afinal, o pai de Alexandre de
Serpa Pinto (este, sim, visconde).
«Retrato do
pai do explorador africano Serpa Pinto | pintado por José Malhôa | no seu solar
de Sinfães» - anotou o Pintor no verso do cartão. Só não é clara a última
frase, pois ficamos sem perceber se refere o local onde teria sido feita a
pintura, ou o seu eventual paradeiro à data da nota… (nota que terá sido feita,
recorde-se e a crer nas restantes, já duas décadas após as mortes de Serpa
Pinto e de seu pai).
[Aqui atrasado, bem procurei saber novas deste retrato junto do museu de Cinfães, que leva o nome de Serpa Pinto – mas é coisa ali completamente ignorada…]
Agora, em quiebro,
deixemos para depois o Retrato do sr. Carlos Relvas e prossigamos com os
restantes retratos, os outros da família Relvas.
[A propósito destes, não resisto recordar: «Durante o Verão desse
ano [1887], Malhoa trabalha novamente para Carlos Relvas, na Golegã, ou já
em Alpiarça, na Quinta dos Patudos, onde morava seu filho José Relvas, fazendo
uma série de retratos» [15] - os sublinhados são meus, e só para dizer: “é ter vontade!?”]
Retrato
da sr.ª D. Margarida Relvas, 1887, será, a par do(s) desenho(s) que já vimos ao início,
mas este em meio corpo e um óleo s/ tela, 144x110, mais um retrato de D.
Margarida Amália de Azevedo Relvas, a mulher de
Carlos Relvas, falecida a 22 Mar.1887, como também já visto. E, muito
possivelmente, outro retrato póstumo e feito a partir de fotografia.
Sobre este, refere-se: «…Relvas efectuou o pagamento do retrato a 7 de Maio de 1888 no valor de 18$300 réis» [16]. Embora, enquanto pintura, esta pareça ser a mais fracota de todas as oito agora vistas, tal valor parece francamente baixo?! a não ser que tal corresponda a uma parcela final, ou se refira, antes, ao pagamento de um dos, ou do tal, outro(s) desenho(s)...?!
Retrato
da sr.ª D. Margarida Relvas Navarro, 1887, é mais um óleo s/ tela, 45x37, em que Malhoa retrata
um membro da família Relvas. Desta vez a filha mais nova, Margarida Augusta
(1867-1930), casada no ano anterior [17] com o médico Alberto de Campos
Navarro.
«Retrato da
filha mais nova do Carlos Relvas, hoje viúva do dr Navarro» - assim assinalaria
Malhoa, em 17 Mai.1921, no verso de mais uma das fotografias de Benarus. Foto que
nos mostra, apesar dos 132 anos passados, toda a juventude do rosto, uma serena
tristeza e o belo olhar de Margarida Augusta. Talvez melhor que em foto mais
recente.
_________________________
[13]. Ver SALDANHA (2012). Op. cit.
p.237.
[14]. Idem, ibidem. p.236.
[15]. Ver SALDANHA (2006). Op. cit.
p.57.
[16]. Ver SALDANHA (2012). Op. cit.
p.236.
[17]. Quanto às datas, quer do nascimento quer
do casamento de Margarida Relvas Navarro, mais uma vez as fontes divergem: «1862»
ou «1867», «1886» ou «1887». Seguiu-se FONSECA, Cátia Salvado. Uma Família
de Fotógrafos: Carlos e Margarida Relvas. Casa-Estúdio Carlos Relvas.
p.262. Aqui.
_________________________
IV. Ao âmago da coisa, a ferros curtos...
Retrato
do sr. Carlos Relvas, 1887. Assim, sencillo, sem mais atavios.
Assim lhe
chamou Malhoa quando o apresentou. Não precisou de explicar tudo
tim-tim-por-tim-tim: Carlos Relvas montando o Salero numa
Praça de Touros.
Sequer baralhar: Tourada com Carlos Relvas Montando o “Salero” […sem
toiro! – apetece acrescentar]. Mas pronto, percebo, retratos do Sr. Carlos
Relvas passaram a haver mais… e sempre se dá o devido protagonismo ao belíssimo
cavalo.
Trata-se de
um óleo s/ tela, circular, com o diâmetro de 1 metro e 24.
Quinze dias depois
de aberta da exposição, o retrato tinha já charge de Manuel Gustavo
Bordallo Pinheiro publicada no Pontos nos ii. E, que me recorde, nenhuma
outra referência nos relatos da época, todos mais interessados na Pensativa…
É, todavia,
o Retrato do sr. Carlos Relvas um outro belíssimo quadro.
Sobre ele
também quase tudo foi dito: que é um retrato equestre, que ao gosto de
Velásquez, que associa tal temática à pintura de género e à pintura animalista,
que Salero se apresenta bem empinado sobre os quadris, ricamente arreado, tal
como o Sr. Relvas em sua fina casaca bordada, que montada e cavaleiro saúdam
sonora ovação do público, ao fim de rija lide ou após sorte de
bom recorte e fino remate… e outras tantas óbvias observações.
Depois, há o
que se diz, rediz e torna a dizer, e mais valia se não dissesse.
Deixemos de
lado uma esdrúxula teoria das sombras que, para isso, era preciso estar
aqui a explicar geometria descritiva e ninguém me paga para tal. Vamos, antes,
à síndrome do chôc’ frit’. Que é, pelo visto, doença que se pega. Mas
compreende-se: se a coisa é longamente repetida - primeiro em 2006, ipsis
verbis em 2010, quase igual em 2012, com variantes em 2008 [18] - qualquer
um crê que possa ser mesmo assim. E não custa repetir, embora, à cautela e
muito bem, ressalvando a probabilidade: «…possivelmente na praça de touros de
Setúbal, que tem o seu nome». [Fosse eu mais crédulo, faria igual.]
Vamos,
então, até à bela cidade do Sado [berço do nosso bom João Vaz
(1859-1931)] onde, todos nos dizem, a praça de toiros de Setúbal, hoje - sim
Senhor! - «Praça Carlos Relvas», mas antes chamada de «D. Carlos», foi inaugurada
– helas! – apenas em 1889, o ano da aclamação do novo monarca. E disso
restam, aliás, testemunhos na grelha de ferro forjado na sobreporta da porta
grande do recinto.
Aparentemente
e por conseguinte, estaremos perante um paradoxo espácio-temporal: a
toirada aos reis católicos, certamente por milagre, ter-se-ia
realizado num lugar inexistente, e Malhoa, em premonição, pintaria
um cenário só materializado dois anos depois!? Coisa de ficção científica, só
pode.
Já que
estamos à foz do Sado, contornemos toda a costa até à beira da do Guadiana. Só
para recordar, na pombalina Vila Real, uma quadra do filho da terra, o
poeta popular António Aleixo (1899-1949): «P'ra mentira ser segura | e atingir
profundidade | tem que trazer à mistura | qualquer coisa de verdade».
Se assim
for, se a estória dos toiros com chôc’ frit’ é aldrabice, talvez
a dos toiros à espanhola o não seja. Vamos lá ver…
E,
efectivamente, não o é. Na verdade, por ocasião da visita a Portugal de D.
Maria Cristina e Afonso XII, a convite do rei D. Luiz para a inauguração da Exposição
Retrospectiva de Arte Ornamental Portugueza e Hespanhola, realizou-se, a 15
Jan.1882, em honra dos soberanos espanhóis, uma tourada por amadores. Promovida
e oferecida por Alfredo Anjos (1860-1927), futuro conde de Fontalva (1890), grande
aficionado e cavaleiro amador, que para o efeito não terá olhado a despesas. A crer na entusiasmada
crónica d’O Occidente de 1 Fev., «a corrida, mesmo debaixo do ponto de
vista technico, [terá sido] uma das mais notaveis que se tem feito em
Portugal». Como cavaleiro, entre outros mais e além do próprio Alfredo Anjos, lidou
toiros Carlos Relvas.
Se a crónica
nada nos diz sobre a montada, sequer sobre um eventual ou particular triunfo
de Relvas, uma outra, que reporta todos os eventos da ocasião, publicada dez
dias antes e assinada por Gervásio Lobato (1850-1895), confirma-nos que foi «Domingo,
15» e «às duas horas» [cá está: sol quase no zénite, a dar cabo da teoria
das sombras…], lamenta os «toiros que eram magros e fracos, o que não
admira neste tempo» [estávamos no Inverno, recorde-se], e remata num só
parágrafo: «Entre todos os cavalleiros, tornou-se notavel pela sua suprema
arte, elegancia e serenidade o sr. Carlos Relvas».
Uma outra
crónica, esta do Diario Illustrado e publicada logo dois dias após a corrida (ver pág.3),
adianta outros pormenores: que Relvas lidou dois toiros, o 1º e o 8º da tarde; no
primeiro, «depois de offerecer a primeira sorte a el-rei D. Affonso, enfeitou o
touro com um ferro a sesgo, 3 á meia volta, e dois ferros curtos com toda a
mestria», no final da lide o «sr. Relvas foi chamado e brindado por suas
majestades com um bouquet de fitas encarnadas e outro com fitas
escarlates, charutos e saccos de rebuçados»; já após a lide do outro toiro,
também o «sr. Carlos Relvas foi chamado e recebeu um bonito ramo e muitos
outros brindes». Diz, por fim, que «as cortezias finaes (…) foram feitas nos
mesmos soberbos cavallos ricamente ajaeiados, com que tinham feito os
cumprimentos do começo»; e informa-nos - «O sr. Carlos Relvas vestia casaca de
veludo preto e branco». Notável.
Afinal, a
estória, apesar de mal contada, sempre pode ter o tal fundo de verdade! – dou a
mão à palmatória.
Pois, mas e
aonde, se não foi em Setúbal? – perguntará o leitor, que na notícia nada leu. Não
diz a notícia, mas disse Lobato e o Illustrado. E diz a legenda duma
magnífica gravura de António Ramalho Jr. (1859-1916) que regista o
acontecimento: na velhinha praça do Campo de Sant’Anna – só podia! [Ali
mesmo, onde depois foi construída a Escola Médica, para onde Malhoa
também pintará umas coisas, entre as quais um Retrato de D. Carlos,
1905, o rei que inaugurará a nova faculdade.]
A praça de
toiros do Campo de Sant’Ana, ao que dizem de arena exígua, quase toda
construída em madeira, vinha já do miguelismo (1831) e terá sido demolida em
1889 ou 1891 [nisto, também as fontes divergem].
Mas vejamos a gravura do amigo Ramalho.
Mas vejamos a gravura do amigo Ramalho.
O que logo salta à vista é a barreira pintada a três faixas (ou, para ser preciso, três faixas e rodapé). Bem diferente destoutra fotografia que não deverá ser muito distante no tempo, onde tais faixas parecem não existir, apenas um remate mais claro no topo. [Hoje em dia, normalmente, as barreiras são totalmente encarnadas, quando muito debruadas a branco]. Será, o que nos mostra Ramalho, mais um dos preparativos especiais do Sr. Alfredo Anjos em honra dos reis espanhóis? terá mandado pintar a barreira a rojo y amarillo, as cores da monarquia espanhola? ou era coisa comum ao tempo?
Porque é isso que também vemos pintado por Malhoa no Retrato do sr. Carlos Relvas, 1887.
Quanto ao
resto da arquitectura da praça - que se percebe de bancada meio coberta pelas
duas ordens superiores de galerias que se elevam no mesmo plano do alçado - dificilmente
se podem fazer comparações entre o desenho de Ramalho e a pintura de Malhoa. O
primeiro parece mostrar a tribuna real e, talvez, a porta dos curros.
Na pintura de Malhoa apenas vemos dois pequenos trechos da bancada ladeando o
que parece ser, por de trás de Relvas, a porta dos cavaleiros, o páteo
de quadrilhas; e sobre o vão da passagem adivinha-se uma pequena tribuna,
mas com guardas de tipologia bem diversa das desenhadas por Ramalho… Entre aquela
visão geral e este pormenor tão particular, não dá mesmo para comparar.
Ficamos,
assim, sem certezas quanto ao que Malhoa pretendeu pintar. Se foi mesmo Relvas
e Salero no dito evento em honra de Suas Magestades Catholicas na Praça
de Sant’Anna… Se apenas tal evoca, com uma ou outra referência, como nas
cores da barreira, ou no bouquet, dois «charutos» (?) e «saccos
de rebuçados», e com liberdade cromática quanto à casaca de Relvas... Ou
se foi outra coisa qualquer…
[Recordemos,
já agora, que Relvas terá mandado construir na Golegã uma praça de toiros, dizem
que inaugurada com uma corrida em benefício do hospital da vila. Pouco mais se
sabendo sobre o assunto. Não parece é que tal praça tivesse tanta capacidade de
espectadores como o pormenor pintado por Malhoa nos mostra.]
Mas esperem,
que há mais isto.
Uma pequena
tábua (15,5x21,7) com um ligeiro apontamento a óleo (tão ligeiro que grandes
partes da superfície apresentam ainda a camada de aparelho), que
regista, exactamente, a parte da praça de toiros (seja ela qual fosse…) representada
por Malhoa no Retrato do sr. Carlos Relvas.
Numa outra
perspectiva, evidentemente. Mas a mesma barreira (com as faixas
vermelhas e amarela, acima do rodapé), a mesma contra-barreira interior (em côr próxima à
do Retrato), as mesmas bancadas (uma nua, outra com apontamento de púbico), a mesma tribuna sobre a passagem para o que parece ser o páteo de
quadrilhas (com as tais guardas metálicas encarnadas), um recorte semelhante (igualmente castanho) nos topos das portas interiores (embora, neste estudo, pareçam mais baixas) e, também divergindo
do quadro, uns apontamentos de sombras que dão para adivinhar um alçado de
considerável altura. Esta é uma outra tomada de vista - mais de cima e da
direita. Que a do Retrato do sr. Carlos Relvas é bem de frente e ao
nível da arena - como se o cavalete estivesse assente na arena junto às tábuas
ou, mesmo, nos cornos do boi…
[É esta,
aliás, a característica mais interessante do Retrato do sr. Carlos Relvas,
1887. Malhoa não nos mostra o toiro porque se põe no lugar do toiro. Pôs-se a ele e põe-nos a nós. Que observamos o triunfo do Sr. Relvas pelos olhos do
toiro, castigados, refugiados às tábuas. É isto que é sublime:
Malhoa não nos mostra a festa, Malhoa faz-nos fazer parte da festa.]
Tosca
pintura, fraco desenho – dir-me-ão, sobre a tabuínha. Talvez… todavia, como
diria o outro, il disegno è una cosa mentale. E, nesse sentido, este
aparentemente pobre apontamento bem pode ter sido o auxiliar precioso para a
feitura do quadro final. Tem tudo lá! - para quem saiba ver e raciocinar, é claro.
[Agora,
se me perguntam se é obra da mão do Malhoa ou de outrem, se é um estudo
anterior ou um d’après qualquer, muito sinceramente direi - não faço a
mínima ideia! É uma daquelas coisas que, volta e meia, lá saltam do caixote
dos bem-aventurados, uma espécie de roda da Santa Casa onde convivem
os enjeitados, os que ficaram pela metade, os aleijadinhos,
os filhos de pai incógnito (que se julgam de um e, vai-se a ver, afinal
são doutro, ou dum sobrinho, ou dum filho, ou dum qualquer, ou precisamente ao contrário).
Este sofria de todos os males em simultâneo. Mas, sem qualquer marca ou
anotação e no estado em que se vê, apresenta-se numa bela tábua, uma rica tábua
mesmo, excelente madeira de generoso calibre, com todo o ar de ter vindo da estranja….
E um tipo interroga-se – Que raio é isto? como é que este mono
sobreviveu? não houve alma que se lembrasse de aproveitar uma bela tábua para
(re)pintar coisa mais interessante? quando, volta e meia, usaram tabuínhas
miseráveis, cartões ranhosos, agora empenadas ou meio desfeitos, para coisas
bem mais decentes? porque carga d’água esta treta foi guardada? foi promessa?
– E é assim.]
Mas há mais.
Mais umas fotografias de Carlos Relvas | Phot. Amateur | Gollegã Portugal.
Junto às
fotos de Malhoa tiradas por Relvas, as que já vimos antes [uma ou outra em mais
de um exemplar, que eram para ir oferecendo…], junto a elas estão mais quatro
que sempre fizeram confusão - quem serão as criaturas, que fazem aqui, porque
guardou Malhoa tais fotos?
São quatro
fotografias que retratam homens dos toiros, em pose e bem ataviados. Um
cavaleiro sentado, botas de montar, casaca de veludo, luva de pelica na mão, um
livro na outra [a propósito: no quadro do Retrato, Relvas parece ter a
mão esquerda, a das rédeas, enluvada e a direita, a dos ferros, nua… talvez
fosse uso então?]. E mais dois toureiros apeados [aparentemente, o de enormes
suíças, ora de montera na cabeça, ora com ela na mão, parece ser o
mesmo] [18a], ambos em trajes de luzes e capotes de passeio, prontos a
cortesias.
Todos me são
completamente desconhecidos. Naturalmente. Que pouco ou nada sei do mundo
taurino de XIX. Mas é natural que alguém os possa um dia identificar… Quem sabe
se algum destes, ou mesmo os três, não farão parte das listas dos participantes
na tal corrida de 1882?! Ou se os bandarilheiros [assim eram designados
todos os toureiros a pé – julgo que, à época, não haveria os chamados matadores
em Portugal, embora alguns daqueles, volta e meia, também usassem a muleta... e até
o estoque] se tais bandarilheiros, dizia, não seriam a quadrilha
de Relvas, os seus auxiliares de confiança que durante a lide lhe fariam
a brega?
[Qualquer
das fotos apresenta marcas de furos de pequenos pregos ou punaises,
sinal que terão estado dependuradas em algum lado – no atelier de
Malhoa? e a que propósito?]
Mais certo
parece ser o das fartas suíças figurar no Retrato do sr. Carlos
Relvas. Além, à nossa direita, junto às tábuas, no papel de bandarilheiro,
capinha ou peão de brega, conforme queiram chamar, sobraçando o capote
magenta e amarelo da brega, só pode ser ele. Os adornos pilosos não
enganam!
Quanto aos
outros, não faço ideia…! Mais além, entre-barreiras, na trincheira, vemos mais alguns
figurantes – um cavaleiro de tricórnio, um ou dois de montera, e
talvez o moço da porta – quem sabe se alguns destes não serão aqueles?!
Mas pretensão a adivinho é coisa que
não me assiste.
_________________________
[18]. «Embora datado de 1887, a sua encomenda deve recuar-se para data bastante
anterior à da execução do cavalo Solero, que aqui se encontra representado,
dado que este retrato se reporta a um evento de 1882 – a tourada oferecida aos
reis de Espanha na praça de Touros de Setúbal, onde Carlos Relvas fez grande
sucesso, montado no seu cavalo lusitano preferido» - SALDANHA (2006). Op. cit.
pp.398, 399 (e ver também p.57). Idem - SALDANHA (2010). Op. cit. p.242. Ou
ainda: «Retrato de uma tourada oferecida aos réis de Espanha na Praça de Touros
de Setúbal em 1882, onde Carlos Relvas fez sensação com o seu cavalo Salero»
- SALDANHA (2012). Op. cit. p.236. E por fim: «Em 1887, entre os 7 [sic]
retratos que o pintor apresenta no salão do Grupo do Leão, encontrava-se uma
tela oval [a geometria…], representando Carlos Relvas toureando a
cavalo, na praça de touros de Setúbal (que posteriormente seria baptizada com
o nome daquele cavaleiro)» - SALDANHA (2008). Luminismo e Tenebrismo –
Malhoa e o Retrato. in Revista de História da Arte, IHA - FCSH, UNL,
nº5, 2008. p.174.
[18a]. Em tempo (8 Nov. 2023) e a propósito de um comentário abaixo.
Parece evidente que os três toureiros apeados serão mesmo três, três-toureiros-três: os irmãos Roberto. Aqui representados por Manuel Gustavo Bordallo Pinheiro, nas páginas de «O António Maria», nº 361, de 25 Ago. 1892, a propósito da inauguração da Praça de Toiros do Campo Pequeno (juntos aos "Peixinhos")
Resta, agora, saber quem seria o registado por Malhoa junto às tábuas no Retrato do sr. Carlos Relvas? o Vicente? ou o Roberto da Fonseca?
[18b]. Continuando: embora, quanto ao cavaleiro, também M, Gustavo B.P. nos possa deixar algumas dúvidas... Será que aquele é este F. d'Oliveira?
________________________
V. Em remate, um só de palmo.
Despachados todos
os retratos [seis, considerando também a Pensativa] e a paisagem que também vimos,
vamos lá ao último dos oito quadros apresentados por Malhoa na exposição do Leão
de 1887. O tal quarto pertencente à Casa Relvas.
Decoração, 1887, assinado e datado (como se poderá ver) era, presumivelmente, mais um óleo s/ tela, também de formato circular, e de desconhecidas dimensões [19].
Mais uma vez
em heresia, desdizendo o breviário, não vou repetir que se tratava de
uma composição decorativa onde putti alados cirandavam alegremente por entre
frutos e vegetais, ou que era estudo de um tecto [20], nada disso! Direi, isso
sim, que era «coisa rara e pouco vista» e bem mais interessante.
Tinha putti
alados, tinha - mas dos rijos, como devem ser os anjinhos ribatejanos,
dos que encaram com destemor todo e qualquer cornúpeto. [Talvez, armado ao
sério, pudesse agora acrescentar que associava a temática decorativa de gosto
setecentista, à pintura de género e à pintura animalista, e assim, e coisa e tal…
mas nada acrescento, seria só parvo.]
Vamos então ao
que interessa. Pela primeira vez em muitos anos, a partir de foto inédita, aqui
podemos ver (tanto quanto é possível) essa desconhecida Decoração.
Dois putti
alados, dois anjinhos se assim quisermos, concentram-se na lide de
um bravo cornúpeto gastrópode, imponente em seu peso e trapio.
O almalho, jabonero na côr, apresenta-se gravito mas bem
armado, boa presença em praça. É terminado o tércio de bandarilhas.
Ao cimo da composição, o pequeno bandarilheiro ergue ainda o braço
direito, exultante pelo último par que acaba de deixar bem no morrilho
do contendor. O cornúpeto, enfeitado com dois pares de bandarilhas,
vira ainda a atenção ao que o acabou de desfeitear, mas já o outro diestro,
flanela escarlate nas mãos, o cita com firmeza. Está prestes a
iniciar o último tércio, muleta em punho, pronto para a faena…
E, como
podem ver, foi isto. Um misto de ternura puttiana e chiste tauromáquico,
meio a brincar, foi o que Malhoa pintou para o seu amigo Carlos Relvas. O que mostrou na 7ª do Leão.
Muito
provavelmente destinava-se a um dos dois medalhões de topo do estúdio
fotográfico da Golegã. É conhecida uma fotografia de Relvas que mostra um
desses topos - infelizmente o outro. [A foto dizem-na «cerca de 1876», o que deve ser
engano…] Nela consegue-se perceber o possível par deste - com outros putti, e dedicados a outra arte…
Malogradamente,
fossem ou não da mesma fornada, os dois medalhões são desaparecidos faz
muito tempo. Posso até estar enganado, e esta tela ter tido outro destino que não
aquele… Mas era de Relvas, sem dúvidas. Pelo assunto e confirma-o Malhoa, em mais uma anotação no verso de
mais uma fotografia de Benarus - «Decoração pª casa do falecido Carlos Relvas,
na Golegã».
Uma vez mais agradeçamos a Arthur Benarus a possibilidade de hoje, cento e muitos anos
depois, podermos ainda apreciar esta emocionante faena entre dois putti
e a caracoleta. Brindemo-lo em espírito, talvez com flores, charutos e
rebuçados…
Por mim, é
tudo.
Pode o Inteligente
mandar tocar – Á unha! Á unha! – e que entrem os moços de forcados.
Logo mais já virão
as mertolengas…
7 Ago.2019. LBG.
_________________________
[19]. Como, também presumivelmente, todos
perceberemos para onde se destinava, é uma questão de lá ir tirar medidas…
[20]. «Consistia ela [a pintura do tecto
do Palácio Burnay] numa simples composição com meninos alados e frutos, à
maneira dos plafonds setecentistas, e cujo estudo apresentaria no ano
seguinte, na 7.ª exposição do Grupo do Leão.» - SALDANHA (2006). Op. cit.
p.360. Ou, do mesmo modo - SALDANHA
(2010). Op. cit. p.220. (o sublinhado é meu).
o cavaleiro sentado, parece ser Alfredo Marreca. os toureiros parecem ser os 3 irmãos Roberto
ResponderEliminarPrecisamente! caro Anónimo (desta vez, sem exemplo), e quanto aos Irmãos Roberto!
EliminarSobre o Marreca, o meu Caro saberá melhor...
Sobre os Roberto, já havia percebido. E, quando disse atrás, que os dois com suíças seriam "o mesmo", já sabia ter dito asneira - serão, evidentemente, o Roberto da Fonseca e o Vicente Roberto! (assim os retrata M. Gustavo Bordallo Pinheiro n'«O António Maria» de 25 Ago. 1892).
Resta, assim, saber qual dos dois o Malhoa registou contra a barreira?
(Ver Notas posteriores [18a]. e [18b].)
Abraço agradecido.
L.