sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Hoje, vamos à Praia!… (II)

uma volta mais pela Praia das Maçãs


     Ora vamos lá pegar de novo na sacola e vamos dar mais um salto até à praia… À ida, à boleia do amigo Macieira e do seu Rio das Maçãs.

Para se entender melhor tudo isto nada melhor que começar pelo princípio. E, como «no princípio era o verbo», damos a palavra a quem sabe… (os sublinhados, notas e comentários são, obviamente, meus).


5. A Praia do Keil…

«Foi esta linda praia fundada por alturas de 1886, tendo uma comissão constituída pelos Snrs. Drs. Luís de Almeida Albuquerque, Joaquim  de Vasconcelos Gusmão, António Maria Mazziotti e engenheiros Joaquim de Sousa Gomes e Frederico Ressano Garcia levado a efeito por meio de subscrição pública e com a cooperação da câmara o projecto de uma estrada de ligação entre ela e a verdejante região de Colares.» [6]

É bom que se entenda que ainda antes da abertura da estrada já se desenvolveria sazonalmente alguma actividade piscatória, e há notícia de gente da região a ali ir a banhos.

«Uma vez aberta a estrada, logo algumas casas se construíram, as primeiras das quais foram a do padre de origem espanhola D. Matias del Campo, coadjutor em Colares, a de Manuel Dias Prego, onde hoje está instalado com muitas modificações o Hotel Royal, e logo a seguir a de Alfredo Keil que ali buscava frequentemente o sossego necessário para a concepção de algumas das suas notáveis composições musicais e picturais.» [6]

Alfredo Keil (Lisboa, 1850 – Hamburgo, 1907), poeta, escritor, fotógrafo, coleccionador, mas sobretudo pintor e compositor, autor de «A Portuguesa» e da primeira ópera na nossa língua, «A Serrana», tinha casa de veraneio na região de Colares, na Eugaria, o «Casal da Serrana». Fazia parte do círculo intelectual e mundano colarense que se reunia no Eden Hotel e na Villa Costa. E é considerado o terceiro edificador do novo lugar de Villa Nova da Praia das Maçãs, como foi então conhecida.

«O seu elegante chalet, cuja construcção principiou em Janeiro de 1889 e estava terminada em 1890, é, ainda hoje, a mais bella construcção ali feita. Junto d´elle fez o sr. Keil erigir uma pequena capella, sob invocação da Nossa Senhora da Praia, que um anno depois fazia sagrar, e onde o Padre D. Matias del Campo resou a primeira missa, que o sr. Keil mandou celebrar por alma de seu pae. Desde 1893, e quasi sempre no ultimo domingo de Setembro, alli se tem realizado uma festa, á que concorrem muitos devotos dos logares limitrophes, vendendo-se, como recordação d’essa festividade, um registo com a imagem de Nossa Senhora da Praia.
«Em 1897, todas as familias que no mez de Setembro se encontravam na Praia das Maçãs, combinaram dar aquella festa um maior brilho, e auxiliadas por alguns cavalheiros de Collares, realizaram esses festejos com grandiosidade tal que conseguiram attrahir alli para cima de cinco mil pessoas. 
«Dessa festa o que mais se admirou foi o imponentissimo cirio de Collares á Praia. Sem o aspecto dos antigos cirios religiosos, mas com um cunho moderno, nélle se encorporaram approximadamente duzentos cavalleiros e mais de cem carros artisticamente enfeitados.» [7]


O chalet de Keil, a «Villa Guida», ainda hoje existe, mas já noutras mãos e com naturais alterações. Ei-la aqui, num belo desenho do próprio Keil, acabada de construir, cerca de 1893, a «Vila Guida» e a Ermida de Nª Sª da Praia ainda isoladas, no morro da Praia, vistas do lado Norte.

A mesma «Villa Guida» numa foto da época e com a legenda: «Vista da nossa casa na Praia. Offerecido pelo sr. Alfredo Braga».





E ainda, um postal da própria Guida [8], datado de 1903 mas editado ainda em 1901, onde esta assinala o local exacto da casa de praia da família.


Se olharmos com mais atenção para esta foto (é de Júlio Novaes), veremos que, por volta de 1900, as construções na Praia das Maçãs ainda se podiam contar pelos dedos das mãos. Mais junto à arriba, no plano mais próximo, vemos um edifício de dois pisos sobre o que parece ser um embasamento, e mais adiante o que parecem ser os «caramanchões do Prego» (a mancha horizontal negra e baixa) com umas casas logo por de trás (já lá iremos); ainda junto ao mar, lá mais acima, já na zona da falésia, um ou dois edifícios de maior porte. O caminho para as Azenhas do Mar é perceptível. À sua esquerda estarão mais algumas casas pouco nítidas na foto; e à direita, um primeiro chalet do qual vemos a empena com três vãos. E só mais ao fundo, no alto, vislumbramos o bico de uma das fachadas da «Villa Guida» assertivamente assinalada pela mão da Guida Keil.


Numa outra tomada de vistas, ainda a Praia das Maçãs na primeira década de novecentos. O reenquadramento de uma foto publicada em 1906, da autoria de Francisco Braga [9] (desconheço se este Braga teria alguma coisa a ver com o da outra foto).


6. …a do «Prego» e a do «Grego»,

Já tivemos notícia do Manuel Dias Prego como um dos edificadores iniciais da Praia. Parece que era de ali perto e ter-se-á estabelecido na Praia com uma taberna, casa de pasto e mais tarde serviço de banheiro. Ainda antes de construir este edifício em tijolo, onde o vemos todo pimpão e de tabuletas sobre a porta - «Prego | Villa Nova da Praia das Maçãs | 1889» e «Banheiro & Cª» -, já num outro estabelecimento abarracado teria iniciado o seu negócio.
E, como parece que o negócio prosperava, logo surgiu concorrência.

«O semanário Correio de Sintra, de 6 de Junho de 1897, dizia que era de lamentar o facto de ser a Praia das Maçãs muito visitada e não existir um estabelecimento conveniente (o do Prego era uma taberna, embora com esplanada), onde os visitantes pudessem tomar  as suas refeições e “descansarem um bocado”. E sugeria que, para isso, serviria uma casa do Padre Matias que, nessa altura, já tinha aumentado o seu património rústico e urbano, o qual, certamente, pediria pouca renda.
«E a coisa resultou.
«O mesmo jornal, em 2 de Abril de 1899, noticiava:
«O sr. Júlio Grego, laborioso e activo proprietário do novo Restaurant Flôr da Praia das Maçãs, instalado na casa que pertence ao nosso amigo Sr. Matias del Campo, vai dotá-lo com novos melhoramentos e já concluiu uns frescos e aprazíveis caramanchões, donde se disfruta vista sobre o mar.»
«Já um mês antes desta notícia se anunciava que o estabelecimento do Grego tinha «bons terraços, abrigo para carros e gado, aceio e boa cozinha».
«Foi neste restaurante que se serviu o primeiro banquete que houve na Praia das Maçãs - um almoço de homenagem ao Visconde de Tojal (…)
«O interior da esplanada do Grego, debruçada sobre a praia, plena de mesas sempre cheia de clientes, foi motivo para uma tela do grande pintor José Malhoa.» [10]


O «Restaurant Flôr da Praia» de «Julio R. L. Grego».
Na «casa que pertence ao (...) sr. Matias del Campo» já com os  seus «aprazíveis caramanchões».
Há diferentes versões sobre a data desta fotografia, mas tudo indica que seja ainda dos finais do séc. XIX.
 À entrada da «Varanda do Grego» teremos Júlio Grego e sua Mulher e, ao colo desta, supõe-se, a sua filha,
a que veremos (ou será outra?) já bem crescidinha na foto de 1912, mostrada aqui anteriormente.

Entretanto, «o negócio do Prego [também] progrediu a ponto de ocupar com mesas um terreno adjacente à taberna, cobrindo-o com um caramanchão, apresentando na Câmara um pedido para o fechar. A Câmara em reunião de 1 de Fevereiro de 1899 reconhecendo que o terreno era municipal, indeferiu o pedido» [10]. Contudo, mais tarde (e resta saber quando...?) [11] tal pedido acabou por ser deferido e Manuel Prego obrigado a requerer uma licença. 

A «Casa de Pasto - Prego» aqui com a esplanada coberta. 
Numa fotografia, muito provavelmente, ainda do séc. XIX ou dos primeiros anos de novecentos. No terreiro logo abaixo vemos uma série de carros e carroças estacionados. Será muito possivelmente este o terreiro que veremos em 
«A Retardatária», 1924.
 E, lá ao cimo na curva, meio encoberta pelos homens a cavalo, a «Varanda do Grego». Reparemos nas diferenças entre o desenho da fachada (digamos assim) que aqui vemos e o que mostra a foto anterior. E recordemos ainda uma outra versão, a que Malhoa registará em 
«O Caminho do Grego (Praia das Maçãs)», 1922.








Um outro registo fotográfico que mostra a casa do «Prego» (em segundo plano), mas agora sem o caramanchão da esplanada. Vemos a escada de acesso ao andar, possivelmente aos quartos.
Logo atrás, ao fundo, à esquerda, meio cortado pelo enquadramento, vemos ainda parte das letras pintadas na fachada do «Grego»: «...STAURANT FLÔR...»

Não sabemos se por causa das licenças se por efeitos das invernias, a referida esplanada coberta parece não ter sido coisa permanente. Em registos fotográficos que pela evolução do tecido edificado parecem ser sequênciais a dita esplanada ora aparece ora deixa de aparecer… [11]
Por outro lado, seja também pelas invernias ou pela evolução natural das coisas, quer «a esplanada do Prego», quer «a varanda do Grego» parecem sofrer algumas modificações de aspecto ao longo dos anos…
Supostamente, quer um quer outro dos estabelecimentos, para além do serviço de «restaurant» e bebidas, forneceria também serviço de alojamento, «abrigo para carros e gado, aceio e boa cozinha». Daí a designação de «hotel» usada na crónica de Manoel de Sousa Pinto que aqui vimos antes.

A Praia das Maçãs cerca de 1908 (com o Hotel Royal Belle-Vue ainda em construção).
 O «Grego» e o «Prego», neste ângulo vistos logo abaixo do novo hotel, parecem ambos ter as esplanadas cobertas.


Cerca de 1909, com o novo Hotel Royal Belle-Vue já acabado. Claramente o «Prego» apresenta-se sem a esplanada.



















        7. …e como a Praia da moda.

Entretanto outros hotéis e restaurantes haveriam de surgir na Praia das Maçãs, como o da madame «Tapie» e o «Hotel Royal Belle-Vue». Este, mais finaço, lá no alto da falésia, para além de outras histórias [12] que para a nossa interessam nada, tem importância porque ajuda grandemente a datar os registos fotográficos: foi construído por volta de 1908, inaugurado em 1909 e ardeu completamente em Novembro de 1921.

A Praia das Maçãs poucos anos depois (registam-se alguns novos edifícios), talvez cerca de 1910 ou 1911. 
O «Prego» ainda não voltou a construir a sua esplanada coberta...

«A propósito da inauguração do novo Hotel Royal Belle Vue, tiveram eco na imprensa os trabalhos de reforma, organização e modernização levados a cabo na região da Praia das Maçãs.
«O projecto e iniciativa estiveram a cargo de Eugène Levy. Traçaram-se novas ruas, macadamizaram-se estradas, regulamentaram-se as construções, organizaram-se os espaços, e, segundo um projecto do arquitecto Ventura Terra, proveu-se à construção do Hotel Royal Belle Vue, construído por Francisco dos Santos. Esperava-se que o referido Hotel impulsionasse o turismo balnear, tendo-se apostado, por isso, na higiene, elegância e conforto. O Hotel Royal possuía água potável, directamente canalizada para o restaurante, e iluminação eléctrica em todos os quartos.
«Por seu lado, a estação telégrafo-postal, instalada em frente ao Hotel, o telefone Praia-Sintra-Lisboa e o serviço médico permanente existente na região, completavam este empreendimento da Praia das Maçãs.» [13]

Ainda antes destes grandes e inegáveis melhoramentos, um outro grande contributo para a modernização e desenvolvimento da Praia das Maçãs foi a construção da linha do Eléctrico entre Sintra e a Praia. Era uma ideia que, parece, já vinha de 1886, teve avanços em 1898, mas só seria concretizada já nos primeiros anos de novecentos [14]. O último troço, o que de Colares chegou até à Praia, foi inaugurado em 10 de Julho de 1904.

O Hotel Restaurant Royal Belle-Vue, fotografado por Benoliel em 1913. 
Reparemos no grupo de veraneantes chiques que se dirigem para a praia; no carro de cavalos que descarrega umas malas à porta do Hotel;
 e no poste e fios telefónicos que se dirigem ao edifício.

Assim já podiam Duquesas e Marquesas deslocar-se comodamente a banhos e com local decente onde se hospedar. Logo depois, com a República, mudar Marqueses por Ministros, Condes por Conselheiros, foi fácil e natural. E a pequenina Praia das Maçãs entrava definitivamente na moda.


«Mas, e nesta visita quase nunca encontrámos o Malhoa?!» – admira-se o amigo leitor, já meio farto de tanta conversa fiada.
Pois não! – respondo eu. Nem no Hotel Royal Belle-Vue - se calhar porque aquela era «a burguesia que [não] lhe conv[inha]». Nem, por muito que a alguns custe, a comer uns percebes, um arroz de mexilhão ou a virar umas imperiais na companhia do Keil – porque, é bom lembrar, este fina-se em 1907, durante uma viagem à Alemanha, e o outro só aqui haveria de aparecer lá por 1911. E é assim a vida!...

Para essa e outras partes da nossa história aqui à Praia voltaremos mais umas vezes. Qu‘inda o Verão vai a meio.

(continua…)

14 Ago. 2015. LBG.

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[6] Oliva Guerra, in Roteiro Lírico de Sintra, Lisboa,1940. Apud Pedro Macieira, in Rio das Maçãs.
[7] António A. R. Cunha, in Cintra Pinturesca: Memoria descriptiva das villas de Cintra e Collares e seus arredores, 1905. Apud Pedro Macieira, in Rio das Maçãs.
[8] Trata-se de Guida Maria Josefina Cinatti Reis Keil, a segunda filha de Alfredo Keil. Por sua vez, a mãe do Arq. Francisco Keil do Amaral (1910-1975).
[9] In Brasil-Portugal, nº184, 16 Set. 1906, p.244.
[10] José Alfredo da Costa Azevedo, in Obras de José Alfredo da Costa Azevedo III: Litoral e Planície Saloia. C. M. Sintra, 1997. Apud Pedro Macieira, in Rio das Maçãs.
[11] O (ou os) período durante o qual o «Prego» se terá visto privado da sua esplanada coberta não é mencionado em qualquer das fontes consultadas. Contudo, pela análise cuidada dos documentos fotográficos, parece claro que ela aparenta existir nas fotos de finais de oitocentos, de c.1901, c.1906 e de c.1908. Depois, nas fotos supostamente subsequentes, c.1909 e c.1910/11, deixa de existir. E só volta a aparecer, já com uma mais cuidada construção, em registos dos anos 20, como iremos ver depois. Malhoa, por sua vez, parece registá-la no «Retrato de Roque Gameiro», c.1918, em «Praia das Maçãs (estudo)», 1919 (CMAG), etc.  
[12] No «Hotel Royal Belle-Vue» ou «Hotel do sr. Levy», o novo grande hotel da Praia, hospedar-se-ia em 1913 Afonso Costa. Pelo final de Setembro, início de Outubro, é notícia a descoberta de um complot para «assassinar o chefe do governo» durante a sua estadia de veraneio. Pode ler mais aqui.
[13] In Centenário da República,1910-2010. Tendo por fonte O Século, nº 9901, 10 Julho 1909, p.3.
[14] Sobre a história do Eléctrico da Praia das Maçãs pode ler ainda este excelente artigo no blog Alagamares; se procurar bem, no Rio das Maçãs, para lá deste encontra uma boa dezena de outros mais; e pode também ler este outro, que fala um pouco de tudo o que aqui dissemos, em Restos de Colecção (embora lá no fim, na estória do quadro de Malhoa, como é costume, a trapalhada seja para esquecer).



sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Hoje, vamos à Praia!... (I)

(des)variações acerca da Praia das Maçãs


      Então, agora, em pleno Agosto que é o tempo dela para quem gosta, vamos lá até à Praia… a das Maçãs, como é evidente.
         Finalmente! que era assunto que andava prometido aqui há anos, muito particularmente ao meu amigo Pedro Macieira que, no seu blog Rio das Maçãs e em várias conversas que fomos tendo, deu para isto uma bela ajuda. Para ele, fica um abraço.
         E também a propósito da recente apresentação no Museu e Cento de Artes de Figueiró dos Vinhos, onde ficará patente julgo que até final de Outubro, do excelente quadro de Malhoa «À Beira-mar (Praia das Maçãs)», c.1926. Este é um dos grandes quadros de Malhoa, e vale a pena ser visto. Vale mesmo uma viagem.


   Na dita apresentação, onde foram mostrados em primeira mão dois praticamente desconhecidos estudos de Malhoa para o referido quadro – quem viu viu, quem não viu tivesse visto –, tive ocasião de expor boa parte das notas que se seguem. A ver se desta vez fica tudo dito, e talvez mais claro. Iremos por partes que é conversa longa. Esperando que interesse ou possa ser uma boa leitura de férias.


1. À Beira-mar, sem molhar os pés.

O quadro de Malhoa que é mote para esta nossa conversa chama-se «À Beira-mar (Praia das Maçãs)». Chama-se e sempre se chamou «À Beira-mar». O designativo «(Praia das Maçãs)» entre parênteses indica simplesmente o local onde terá sido pintado. «À Beira-mar» há só um, «Praia(s) das Maçãs» – como os chapéus do outro «palerma» - há muitos! E aqui reside um dos primeiros equívocos à volta deste quadro: para simplificar, facilitar ou porque sim, às vezes, chamam-lhe apenas «Praia das Maçãs» e… dá asneira.
É um quadro a óleo pintado sobre madeira, de razoáveis dimensões para tal suporte: 69x87cm. Está assinado, mas não datado. Esta, outra das razões para equívocos, adivinhações e trapalhada.


À mesa de uma esplanada, à beira-mar, sobranceira à arriba da Praia das Maçãs, sob uma coberta de colmo apoiada em toscos prumos de madeira caiada, na «Varanda do Grego», Malhoa apresenta-nos um casal de ar citadino au rendez-vous. Sobre uma toalha branca que cobre a mesa rústica, o bule do chá, duas xícaras e um açucareiro. E o cotovelo do homem e mais o braço todo refastelados sobre ela – a pose é nada cortês, antes de um grande à vontade. Virado para o observador, veste fato, colete e gravata, aparenta ser novo e apresenta bigode; atenta enlevado a conversa. Ela, a três quartos de costas, senta-se numa cadeira também rústica e também de modo menos conveniente – meia de lado, com o braço que abana um leque escarlate apoiado sobre o espaldar do assento. Perna traçada, a mão livre repousa sobre o joelho. Veste de rosa-malva, saia comprida e blusa ou casaco cintado (não, não é um tal de vestido!). Sobre o cabelo que parece apanhado atrás, usa capeline, um chapéu leve de aba larga, num tom parecido com o dos sapatos de meio salto. Mais perto do observador, sobre um banco de madeira azul, jazem o canotier, o palhinhas dele, e uma sombrinha mais ou menos a condizer com o que veste ela. O piso é térreo, no mobiliário tosco domina o verde, de duas barricas caiadas crescem girassóis. Junto à parede do fundo, de tábuas brancas da cal, na mesa do canto, um outro cliente é servido – para os protagonistas da cena é como se ali nem estivessem. Só o mar, o imenso mar, para lá do parapeito alvo de alvenaria caiada.

«Do monte, Malhôa desceu ao mar. É da Praia das Maçãs, e dos pintores, o seu outro grande quadro, À Beira-Mar, cheio de maresia e colorido, na varanda do hotel, à hora em que as espumas são mais brancas e os lábios femininos mais vermelhos». Assim nos descreve o quadro Manoel de Sousa Pinto [1] na sua crónica sobre A 23ª Exposição da Sociedade Nacional de Belas-Artes.
Porque foi na 23ª SNBA, a de 1926 – e não noutra qualquer, nem em 1918, tão pouco na de 1921 – que o quadro foi pela primeira vez apresentado. E logo adquirido pelo Estado para o Museu de Arte Contemporânea. «O quadro À beira-mar (Praia das Maçãs) (…) o segundo mais caro de Malhoa, depois de As promessas – 18.000$00» - dirá Lucília Verdelho da Costa [2].
Pois permitam-me uma ligeira correcção: o mais caro de Malhoa (pelo menos em valor absoluto)! É certo que «As Promessas», 1933, haveria de ter um preço de catálogo bem superior – 25.000$00. Mas a esse nunca ninguém se chegou; e «As Promessas» - tal como À Sombra, 1933, 15.000$00 - nunca foram comprados. Acabariam por ir parar ao Museu das Caldas, mas oferecidos, à borla, por conta, à pala, a troco de niqueles - como se quiser – certo é que nunca alguém deu qualquer dinheiro por eles. E, por isto, «À Beira-mar (Praia das Maçãs)», nos seus 18 contos, acaba por ser mesmo o quadro mais caro alguma vez vendido por Malhoa em exposições. É obra!
E é uma bela Obra.

2. Ser ou não ser…

Façamos por esquecer «a burguesia que lhe convém» e outras tretas sociológicas do género que normalmente surgem sempre por esta altura da conversa e que não levam a lado algum. Adiante. Vamos a outras conveniências, quiçá algo inconvenientes.

Sempre que se aborda «À Beira-mar (Praia das Maçãs)», c.1926, associa-se logo um outro quadro de Malhoa. Trata-se de um pequeno óleo sobre madeira, 21,5x27cm, assinado e datado - e assim não há dúvidas - do acervo da Casa Museu Anastácio Gonçalves. É um quadro bastante interessante – e não é isso que está em causa. Falo, obviamente, de «Praia das Maçãs (estudo)», 1919. E dito assim até está certo. Mas há quem na sua douta sapiência se apresse a crismá-lo e já o intitule «Praia das Maçãs – Varanda do Grego». E lá vem asneira.




         Independentemente disto, o problema é que, à falta de melhor, à falta de outro objecto, não há bicho careta que não haja desenvolvido teorias onde se apresenta este como «o estudo» do outro. Mesmo as santas almas que juram que «À Beira-mar…» é coisa de 1918 (já lá iremos mais adiante…) conseguem a quadratura do círculo afirmando que este, o de 1919, é «o estudo» para o dito de «um ano antes». E, convenientemente, até conseguem descortinar, lá mais ao fundo, «um casal [é, por certo, o tal… que] conversa sentado a uma mesa» – Eu, que não sou completamente ceguinho, vejo o que me parecem ser uma senhora, um cavalheiro e duas crianças, eventualmente uma segunda mulher… mas posso estar enganado. Agora, «um casal»? francamente!? nem com toda a boa vontade!...


Mas vejamos isto com olhos de ver.

Neste pequeno quadrinho Malhoa regista o ambiente de uma esplanada, de um restaurante sobre o mar. A pincelada é larga, o desenho pouco definido, tudo nos é mostrado como numa impressão. Mas dá para perceber. Dá para perceber, sob as toalhas brancas, o tipo de mesas, o desenho das cadeiras, e as colunas aparelhadas de secção poligonal que suportam a cobertura; esta só a adivinhamos, mas conseguimos ver os estores de enrolar, de palhinhas ou de ripas, que dela se suspendem; percebemos, pelos vasos que se dispõem entre as colunas e pelo desenho destas, que existirá muito provavelmente um murete de alvenaria, um parapeito, onde os vasos e colunas poisam e assentam. Percebemos que na mesa do fundo está uma senhora, nutrida e de costas, e à sua direita uma criança (salvo se considerarmos tratar-se de um anão); ao aproximarmos a visão, por entre as manchas de impressão, talvez entendamos, de costas ao mar e frente à senhora, um outro adulto, de chapéu e a ler o menu (?); e, à frente da primeira criança, uma outra; na quina da mesa, à esquerda da senhora, sobrepondo-se à coluna, há uma mancha que parece representar uma segunda mulher, falta-lhe parte do rosto, comido por uma pincelada de azul do mar que também ratou a coluna… Mas nada disto é importante, e nestas coisas cada qual o que realmente quer ver. Percebemos, por fim, o mar, a relação daquele espaço com o mar, e que entre a nossa esplanada e o oceano algo mais haverá: outra construção abarracada, mais uns toldos, numas manchas amareladas. Depois, só os grandes azuis.

Visto, assim bem visto, haverá alguém de boa fé que possa afirmar que isto é a «Varanda do Grego», a que Malhoa nos mostrará em «À Beira-mar (Praia das Maçãs)»? que este quadrinho possa ser «o estudo» do outro? Estamos perante o mesmo local, o mesmo ambiente, a mesma arquitectura, o mesmo mobiliário? Olharam bem? Querem ver de novo?
Ou ainda não estão convencidos?

3. Uma coisa é uma coisa…

Vamos então a um exercício simplório: juntemos uma mão cheia de quadros de Malhoa e olhemos para eles em conjunto.

Estas quatro coisas serão, muito possivelmente, a mesma coisa. Pelo menos tomadas no mesmo sítio – a Praia das Maçãs. Mas não no «Restaurante do Grego» como usualmente sói dizer-se.
Vejamos com atenção a arquitectura do lugar e os seus pormenores – em especial as colunas de secção sexta ou oitavada que suportam a cobertura da esplanada, o muro de alvenaria que forma a guarda do parapeito, os vasos de sardinheiras (ou o mais que seja) poisados sobre o mesmo, a inserção das colunas no dito muro, os estores de enrolar que pendem da cobertura; e, já agora, a mobília – atentemos no desenho das cadeiras.
Aparentemente, tudo indica, estamos no mesmo cenário. Mas este, e não o outro!

No «Retrato de Roque Gameiro», c.1918 (sim, eu sei que há por aí um desvario que o data de 1904, mas lá iremos a seu tempo…), o.s.m., 34x26, (MJM), reparemos na cadeira onde se apoia o Mestre aguarelista, na coluna e no vaso azul logo por de trás, e na praia em fundo…
  Em «Praia das Maçãs (estudo)», 1919, o.s.m., 21,5x27, (CMAG), já nosso conhecido, recordemos o que atrás já vimos…
E nesta «Varanda sobre a Praia - [também mal dita] (Varanda do Grego)», n.d., o.s.m., 22x15,5, observemos o mobiliário, o vaso, a guarda que parece descer acompanhando uns degraus que não vemos…





Finalmente n’«A Retardatária», 1924, o.s.m., 30x38,5, (MC-Coimbra), revejamos todos os pormenores anteriores, agora perceptíveis mais claramente e pelo lado de fora, percebamos o que são afinal as «manchas amareladas» que nos intrigaram quando vistas pelo interior do restaurante, a guarda inclinada dos degraus que apenas subentendemos, e fixemos o terreiro onde a senhora de azul aguarda a dita que a fez esperar… (mais à frente, ao terreiro voltaremos).

      Como facilmente se percebe, estas quatro coisas serão, em termos de lugar, uma mesma coisa. Mas não a «Varanda do Grego» como a seguir vamos ver.

4. … e outra coisa é outra coisa.

Agora, juntemos umas outras coisas que são, definitivamente, a outra coisa. Agora, sim, a «Varanda do Grego» ou, de seu nome completo, o «Restaurant Flôr da Praia» de Júlio Grego.
Repare-se, ao contrário dos anteriores, nos prumos de madeira tosca pintados a cal, na sua relação com o muro, nas esteiras do coberto, na mobília rústica pintada a óleo… em todo o ambiente - tudo bem distinto do conjunto anterior.

 Comecemos por um retrato da filha do Grego, Elisa de Jesus Grego, por entre as mesas pintadas de verde e já nossas conhecidas. Trata-se de uma foto publicada em Agosto de 1912 [3]. E todo aquele cenário não nos é estranho – é o que vimos logo ao início.





Passemos de novo a Malhoa.
      Em «O Caminho do Grego (Praia das Maçãs)», 1922, o.s.t.(?) [4], 23x32, vemos a entrada e o exterior da dita «Varanda do Grego» pousada sobre a arriba, numa construção meio tosca mas cheia de encanto…



Depois «A Varanda do Grego (estudo)», n.d., o.s.m., 33x41, (este, sim, o estudo, o da «bayer») onde Malhoa regista em manchas largas as principais características arquitectónicas, de luz e ambiência do local, as mobílias e até o barril da cal que veremos em «À Beira-mar». Sentada por detrás do prumo que vemos em primeiro plano, está uma figura feminina que parece coser ou fazer malha…



  No «Retrato de Agostinho Fernandes», 1925, p.s.p., 49x38, (MJM) temos ainda o mesmo local, o mesmo muro (agora a tijolo de quinze, mais delgadito), mas os mesmos prumos e a mesma luz da «Varanda do Grego». A cadeira é que parece não ser daqui, será uma das de sola que Malhoa tinha no atelier [5] e que hoje estão no Museu das Caldas. 





         E finalmente o nosso já conhecido «À Beira-mar (Praia das Maçãs)», c.1926, o.s.m., 69x87, (MNAC-MC), com tudo isto e o mais que já foi dito.       
Talvez assim se perceba que uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. Confundi-las só pode dar trapalhice.

Ficamos aqui por agora. Logo voltaremos à nossa conversa. 



7 Ago.2015. LBG.

(continua...)




[1] in Ilustração, nº8, 16 Abril 1926, p.24. Que pode ler aqui.
[2] in Amar o Outro Mar: A pintura de Malhoa. Lisboa, MC-CRCI, 2003. p.89.
[3] in Illustração Portugueza, nº340, 26 Ago. 1912, p.288. Publicada a propósito de um crime ocorrido nas «Arribas do Mar» em que a referida jovem terá sido testemunha. Se o amigo leitor é dos a quem interessa a quadrilhice, pode ver tudo aqui.
[4] O suporte indicado «óleo sobre tela» é de veracidade duvidosa, mas como nunca vimos o quadro pessoalmente mantivemos a indicação tal como na fonte.
Acontece que na grande maioria, senão na totalidade dos quadros pintados na Praia das Maçãs, Malhoa utiliza como suporte a madeira (recordemos inclusive as relativamente grandes dimensões de «À Beira-mar» em que tal suporte também é o usado). As razões são técnicas e fáceis de perceber – a tela seria muito mais sensível às condições higrométricas extremas da beira-mar. Nos presentes textos, em alguns casos e quando as obras são por nós conhecidas, mesmo que a literatura consultada diga o contrário, corrigimos tais indicações. Neste caso, limitamo-nos a duvidar.
[5] Recordemos que também no pastel onde Malhoa retrata a Mulher do mesmo Fernandes, «Retrato de Maria da Nazareth Fernades»,1926, (MJM), esta aparece frente a uma paisagem figueiroense meio fantasiosa. E nem a Senhora Dona Mª da Nazareth foi de estola de peles passear a Figueiró, nem Agostinho Fernandes levou a cadeira para a Praia das Maçãs. O mais certo é que ambos os retratos tenham sido feitos no atelier lisboeta e os fundos, registando os dois locais então mais queridos da pintura de Malhoa, pintados como cenário.