uma volta mais
pela Praia das Maçãs
Ora vamos lá pegar
de novo na sacola e vamos dar mais um salto até à praia… À ida, à boleia do
amigo Macieira e do seu Rio das Maçãs.
Para se entender melhor
tudo isto nada melhor que começar pelo princípio. E, como «no princípio era o
verbo», damos a palavra a quem sabe… (os sublinhados, notas e comentários são,
obviamente, meus).
5. A Praia do Keil…
«Foi
esta linda praia fundada por alturas de 1886, tendo uma comissão
constituída pelos Snrs. Drs. Luís de Almeida Albuquerque, Joaquim de
Vasconcelos Gusmão, António Maria Mazziotti e engenheiros Joaquim de Sousa
Gomes e Frederico Ressano Garcia levado a efeito por meio de subscrição pública
e com a cooperação da câmara o projecto de uma estrada de ligação entre ela e a
verdejante região de Colares.» [6]
É bom que se
entenda que ainda antes da abertura da estrada já se desenvolveria sazonalmente
alguma actividade piscatória, e há notícia de gente da região a ali ir a
banhos.
«Uma vez
aberta a estrada,
logo algumas casas se construíram, as primeiras das quais foram a do
padre de origem espanhola D. Matias del Campo, coadjutor em Colares,
a de Manuel Dias Prego, onde hoje está instalado com muitas modificações
o Hotel Royal, e logo a seguir a de Alfredo Keil que ali buscava
frequentemente o sossego necessário para a concepção de algumas das suas
notáveis composições musicais e picturais.» [6]
Alfredo Keil (Lisboa,
1850 – Hamburgo, 1907), poeta, escritor, fotógrafo, coleccionador, mas sobretudo
pintor e compositor, autor de «A Portuguesa» e da primeira ópera na
nossa língua, «A Serrana», tinha casa de veraneio na região de Colares,
na Eugaria, o «Casal da Serrana». Fazia parte do círculo intelectual e mundano colarense que se
reunia no Eden Hotel e na Villa Costa. E é considerado o terceiro edificador do
novo lugar de Villa Nova da Praia das Maçãs, como foi então conhecida.
«O seu elegante chalet,
cuja construcção principiou em Janeiro de 1889 e estava terminada em 1890,
é, ainda hoje, a mais bella construcção ali feita. Junto d´elle fez o sr.
Keil erigir uma pequena capella, sob invocação da Nossa Senhora da Praia, que
um anno depois fazia sagrar, e onde o Padre D. Matias del Campo resou a
primeira missa, que o sr. Keil mandou celebrar por alma de seu pae. Desde 1893,
e quasi sempre no ultimo domingo de Setembro, alli se tem realizado uma festa,
á que concorrem muitos devotos dos logares limitrophes, vendendo-se, como
recordação d’essa festividade, um registo com a imagem de Nossa Senhora da
Praia.
«Em 1897, todas as familias que no mez de Setembro se encontravam na Praia das
Maçãs, combinaram dar aquella festa um maior brilho, e auxiliadas por alguns
cavalheiros de Collares, realizaram esses festejos com grandiosidade tal que
conseguiram attrahir alli para cima de cinco mil pessoas.
«Dessa
festa o que mais se admirou foi o imponentissimo cirio de Collares á Praia. Sem
o aspecto dos antigos cirios religiosos, mas com um cunho moderno, nélle se
encorporaram approximadamente duzentos cavalleiros e mais de cem carros
artisticamente enfeitados.» [7]
O chalet de Keil, a «Villa Guida», ainda hoje existe, mas
já noutras mãos e com naturais alterações. Ei-la aqui, num belo desenho do
próprio Keil, acabada de construir, cerca de 1893, a «Vila Guida» e a Ermida
de Nª Sª da Praia ainda isoladas, no morro da Praia, vistas do lado Norte.
A mesma «Villa Guida» numa foto da época e com a
legenda: «Vista
da nossa casa na Praia. Offerecido pelo sr. Alfredo Braga».
E ainda, um postal da própria Guida [8], datado de
1903 mas editado ainda em 1901, onde esta assinala o local exacto da casa de
praia da família.
Se olharmos com mais atenção para esta foto (é de
Júlio Novaes), veremos que, por volta de 1900, as construções na Praia das
Maçãs ainda se podiam contar pelos dedos das mãos. Mais junto à arriba, no
plano mais próximo, vemos um edifício de dois pisos sobre o que parece ser um
embasamento, e mais adiante o que parecem ser os «caramanchões do Prego» (a
mancha horizontal negra e baixa) com umas casas logo por de trás (já lá
iremos); ainda junto ao mar, lá mais acima, já na zona da falésia, um ou dois
edifícios de maior porte. O caminho para as Azenhas do Mar é perceptível. À sua
esquerda estarão mais algumas casas pouco nítidas na foto; e à direita, um
primeiro chalet do qual vemos a empena com três vãos. E só mais ao
fundo, no alto, vislumbramos o bico de uma das fachadas da «Villa Guida»
assertivamente assinalada pela mão da Guida Keil.
Numa outra tomada de vistas, ainda a Praia das Maçãs
na primeira década de novecentos. O reenquadramento de uma foto publicada em
1906, da autoria de Francisco Braga [9] (desconheço se este Braga teria alguma
coisa a ver com o da outra foto).
6. …a do «Prego» e a do «Grego»,
Já tivemos notícia do Manuel Dias Prego como um dos
edificadores iniciais da Praia. Parece que era de ali perto e ter-se-á
estabelecido na Praia com uma taberna, casa de pasto e mais tarde serviço de
banheiro. Ainda antes de construir este edifício em tijolo, onde o vemos todo
pimpão e de tabuletas sobre a porta - «Prego | Villa Nova da Praia das Maçãs |
1889» e «Banheiro & Cª» -, já num outro estabelecimento abarracado teria iniciado
o seu negócio.
E, como parece que o negócio prosperava, logo surgiu
concorrência.
«O semanário Correio de Sintra, de 6 de
Junho de 1897, dizia que era de lamentar o facto de ser a Praia das
Maçãs muito visitada e não existir um estabelecimento conveniente (o do
Prego era uma taberna, embora com esplanada), onde os visitantes pudessem
tomar as suas refeições e “descansarem um bocado”. E sugeria
que, para isso, serviria uma casa do Padre Matias que, nessa altura, já tinha
aumentado o seu património rústico e urbano, o qual, certamente, pediria pouca
renda.
«E a coisa resultou.
«O mesmo jornal, em 2 de Abril de 1899,
noticiava:
«O
sr. Júlio Grego, laborioso e activo proprietário do novo Restaurant Flôr da
Praia das Maçãs, instalado na casa que pertence ao nosso amigo Sr.
Matias del Campo, vai dotá-lo com novos melhoramentos e já concluiu uns
frescos e aprazíveis caramanchões, donde se disfruta vista sobre o mar.»
«Já um mês antes desta
notícia se anunciava que o estabelecimento do Grego tinha «bons
terraços, abrigo para carros e gado, aceio e boa cozinha».
«Foi neste restaurante que se serviu o
primeiro banquete que houve na Praia das Maçãs - um almoço de homenagem ao
Visconde de Tojal (…)
«O interior da esplanada do Grego, debruçada
sobre a praia, plena de mesas sempre cheia de clientes, foi
motivo para uma tela do grande pintor José Malhoa.» [10]
Entretanto, «o negócio do Prego [também] progrediu a ponto de ocupar com
mesas um terreno adjacente à taberna, cobrindo-o com um caramanchão,
apresentando na Câmara um pedido para o fechar. A Câmara em reunião de 1 de
Fevereiro de 1899 reconhecendo que o terreno era municipal, indeferiu o pedido» [10]. Contudo, mais tarde (e resta saber quando...?) [11] tal pedido acabou por ser
deferido e Manuel Prego obrigado a requerer uma licença.
Não sabemos se por causa das licenças se por efeitos das
invernias, a referida esplanada coberta parece não ter sido coisa permanente.
Em registos fotográficos que pela evolução do tecido edificado parecem ser
sequênciais a dita esplanada ora aparece ora deixa de aparecer… [11]
Por outro lado, seja também pelas invernias ou pela evolução
natural das coisas, quer «a esplanada do Prego», quer «a varanda do Grego»
parecem sofrer algumas modificações de aspecto ao longo dos anos…
Supostamente, quer um quer outro dos estabelecimentos,
para além do serviço de «restaurant» e bebidas, forneceria também serviço de
alojamento, «abrigo
para carros e gado, aceio e boa cozinha». Daí a designação de «hotel» usada na crónica
de Manoel de Sousa Pinto que aqui vimos antes.
A Praia das Maçãs cerca de 1908 (com o Hotel Royal Belle-Vue ainda em construção). O «Grego» e o «Prego», neste ângulo vistos logo abaixo do novo hotel, parecem ambos ter as esplanadas cobertas. |
Cerca de 1909, com o novo Hotel Royal Belle-Vue já acabado. Claramente o «Prego» apresenta-se sem a esplanada. |
7. …e como a Praia da moda.
Entretanto outros
hotéis e restaurantes haveriam de surgir na Praia das Maçãs, como o da madame
«Tapie» e o «Hotel Royal Belle-Vue». Este, mais finaço, lá no alto
da falésia, para além de outras histórias [12] que para a nossa
interessam nada, tem importância porque ajuda grandemente a datar os registos
fotográficos: foi construído por volta de 1908, inaugurado em 1909 e ardeu completamente
em Novembro de 1921.
A Praia das Maçãs poucos anos depois (registam-se alguns novos edifícios), talvez cerca de 1910 ou 1911.
O «Prego» ainda não voltou a construir a sua esplanada coberta... |
«A
propósito da inauguração do novo Hotel Royal Belle Vue, tiveram eco na
imprensa os trabalhos de reforma, organização e modernização levados a cabo na
região da Praia das Maçãs.
«O
projecto e iniciativa estiveram a cargo de Eugène Levy. Traçaram-se novas ruas,
macadamizaram-se estradas, regulamentaram-se as construções, organizaram-se os
espaços, e, segundo um projecto do arquitecto Ventura Terra, proveu-se à
construção do Hotel Royal Belle Vue, construído por Francisco dos Santos. Esperava-se
que o referido Hotel impulsionasse o turismo balnear, tendo-se apostado, por
isso, na higiene, elegância e conforto. O Hotel Royal possuía água potável,
directamente canalizada para o restaurante, e iluminação eléctrica em todos os
quartos.
«Por seu
lado, a estação telégrafo-postal, instalada em frente ao Hotel, o telefone
Praia-Sintra-Lisboa e o serviço médico permanente existente na região,
completavam este empreendimento da Praia das Maçãs.» [13]
Ainda antes destes
grandes e inegáveis melhoramentos, um outro grande contributo para a modernização e
desenvolvimento da Praia das Maçãs foi a construção da linha do Eléctrico entre
Sintra e a Praia. Era uma ideia que, parece, já vinha de 1886, teve avanços em
1898, mas só seria concretizada já nos primeiros anos de novecentos [14]. O
último troço, o que de Colares chegou até à Praia, foi inaugurado em 10 de Julho
de 1904.
Assim já podiam Duquesas
e Marquesas deslocar-se comodamente a banhos e com local decente onde se
hospedar. Logo depois, com a República, mudar Marqueses por Ministros, Condes
por Conselheiros, foi fácil e natural. E a pequenina Praia das Maçãs entrava
definitivamente na moda.
«Mas, e nesta
visita quase nunca encontrámos o Malhoa?!» – admira-se o amigo leitor, já meio
farto de tanta conversa fiada.
Pois não! – respondo
eu. Nem no Hotel Royal Belle-Vue - se calhar porque aquela era «a burguesia
que [não] lhe conv[inha]».
Nem, por muito que a alguns custe, a comer uns percebes, um arroz de
mexilhão ou a virar umas imperiais na companhia do Keil – porque, é bom
lembrar, este fina-se em 1907, durante uma viagem à Alemanha, e o outro só aqui
haveria de aparecer lá por 1911. E é assim a vida!...
Para essa e outras partes da nossa história aqui à Praia
voltaremos mais umas vezes. Qu‘inda o Verão vai a meio.
(continua…)
14 Ago.
2015. LBG.
__________________________
[6] Oliva Guerra, in Roteiro Lírico
de Sintra, Lisboa,1940. Apud Pedro Macieira, in Rio das Maçãs.
[7] António A. R. Cunha, in Cintra
Pinturesca: Memoria descriptiva das villas de Cintra e Collares e seus
arredores, 1905. Apud Pedro Macieira, in Rio das Maçãs.
[8]
Trata-se de Guida Maria Josefina Cinatti Reis Keil, a segunda filha de Alfredo
Keil. Por sua vez, a mãe do Arq. Francisco Keil do Amaral (1910-1975).
[9] In Brasil-Portugal, nº184, 16
Set. 1906, p.244.
[10] José Alfredo da Costa Azevedo, in Obras
de José Alfredo da Costa Azevedo III: Litoral e Planície Saloia. C. M.
Sintra, 1997. Apud Pedro Macieira, in Rio das Maçãs.
[11] O (ou os) período durante o qual o «Prego» se terá visto privado da sua esplanada coberta não é mencionado em qualquer das fontes consultadas. Contudo, pela análise cuidada dos documentos fotográficos, parece claro que ela aparenta existir nas fotos de finais de oitocentos, de c.1901, c.1906 e de c.1908. Depois, nas fotos supostamente subsequentes, c.1909 e c.1910/11, deixa de existir. E só volta a aparecer, já com uma mais cuidada construção, em registos dos anos 20, como iremos ver depois. Malhoa, por sua vez, parece registá-la no «Retrato de Roque Gameiro», c.1918, em «Praia das Maçãs (estudo)», 1919 (CMAG), etc.
[11] O (ou os) período durante o qual o «Prego» se terá visto privado da sua esplanada coberta não é mencionado em qualquer das fontes consultadas. Contudo, pela análise cuidada dos documentos fotográficos, parece claro que ela aparenta existir nas fotos de finais de oitocentos, de c.1901, c.1906 e de c.1908. Depois, nas fotos supostamente subsequentes, c.1909 e c.1910/11, deixa de existir. E só volta a aparecer, já com uma mais cuidada construção, em registos dos anos 20, como iremos ver depois. Malhoa, por sua vez, parece registá-la no «Retrato de Roque Gameiro», c.1918, em «Praia das Maçãs (estudo)», 1919 (CMAG), etc.
[12] No «Hotel Royal Belle-Vue» ou
«Hotel do sr. Levy», o novo grande hotel da Praia, hospedar-se-ia em 1913
Afonso Costa. Pelo final de Setembro, início de Outubro, é notícia a descoberta
de um complot para «assassinar o chefe do governo» durante a sua estadia
de veraneio. Pode ler mais aqui.
[13] In Centenário da República,1910-2010. Tendo por fonte O Século, nº 9901, 10 Julho 1909, p.3.
[14] Sobre a história do Eléctrico da
Praia das Maçãs pode ler ainda este excelente artigo no blog Alagamares; se
procurar bem, no Rio das Maçãs, para lá deste encontra uma boa dezena de
outros mais; e pode também ler este outro, que fala um pouco de tudo o que aqui
dissemos, em Restos de Colecção (embora lá no fim, na estória do quadro
de Malhoa, como é costume, a trapalhada seja para esquecer).
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