(des)variações
acerca da Praia das Maçãs
Então, agora, em pleno Agosto
que é o tempo dela para quem gosta, vamos lá até à Praia… a das Maçãs, como
é evidente.
Finalmente! que era assunto que andava prometido aqui há
anos, muito particularmente ao meu amigo Pedro Macieira que, no seu blog Rio das Maçãs e em várias conversas que fomos tendo, deu para isto uma bela
ajuda. Para ele, fica um abraço.
E também a propósito da recente apresentação no Museu e
Cento de Artes de Figueiró dos Vinhos, onde ficará patente julgo que até
final de Outubro, do excelente quadro de Malhoa «À Beira-mar (Praia das
Maçãs)», c.1926. Este é um dos grandes quadros de Malhoa, e vale a pena ser
visto. Vale mesmo uma viagem.
1. À Beira-mar, sem molhar os pés.
O quadro de Malhoa que é mote para esta nossa conversa
chama-se «À Beira-mar (Praia das Maçãs)». Chama-se e sempre se
chamou «À Beira-mar». O designativo «(Praia das Maçãs)» entre parênteses
indica simplesmente o local onde terá sido pintado. «À Beira-mar» há só
um, «Praia(s) das Maçãs» – como os chapéus do outro «palerma» - há
muitos! E aqui reside um dos primeiros equívocos à volta deste quadro: para
simplificar, facilitar ou porque sim, às vezes, chamam-lhe apenas «Praia das
Maçãs» e… dá asneira.
É um quadro a óleo pintado sobre madeira, de razoáveis
dimensões para tal suporte: 69x87cm. Está assinado, mas não datado. Esta, outra
das razões para equívocos, adivinhações e trapalhada.
À mesa de uma esplanada, à beira-mar, sobranceira à arriba da
Praia das Maçãs, sob uma coberta de colmo apoiada em toscos prumos de madeira
caiada, na «Varanda do Grego», Malhoa apresenta-nos um casal de ar citadino au
rendez-vous. Sobre uma toalha branca que cobre a mesa rústica, o bule do
chá, duas xícaras e um açucareiro. E o cotovelo do homem e mais o braço todo
refastelados sobre ela – a pose é nada cortês, antes de um grande à vontade.
Virado para o observador, veste fato, colete e gravata, aparenta ser novo e
apresenta bigode; atenta enlevado a conversa. Ela, a três quartos de costas, senta-se
numa cadeira também rústica e também de modo menos conveniente – meia de lado,
com o braço que abana um leque escarlate apoiado sobre o espaldar do assento. Perna
traçada, a mão livre repousa sobre o joelho. Veste de rosa-malva, saia comprida
e blusa ou casaco cintado (não, não é um tal de vestido!). Sobre o cabelo que
parece apanhado atrás, usa capeline, um chapéu leve de aba larga, num
tom parecido com o dos sapatos de meio salto. Mais perto do observador, sobre
um banco de madeira azul, jazem o canotier, o palhinhas dele, e uma
sombrinha mais ou menos a condizer com o que veste ela. O piso é térreo, no
mobiliário tosco domina o verde, de duas barricas caiadas crescem girassóis.
Junto à parede do fundo, de tábuas brancas da cal, na mesa do canto, um outro cliente
é servido – para os protagonistas da cena é como se ali nem estivessem. Só o
mar, o imenso mar, para lá do parapeito alvo de alvenaria caiada.
«Do monte, Malhôa desceu ao mar.
É da Praia das Maçãs, e dos pintores, o seu outro grande quadro, À
Beira-Mar, cheio de maresia e colorido, na varanda do hotel, à hora em que
as espumas são mais brancas e os lábios femininos mais vermelhos». Assim nos descreve o quadro Manoel
de Sousa Pinto [1] na sua crónica sobre A
23ª Exposição da Sociedade Nacional de Belas-Artes.
Porque foi na 23ª SNBA, a de 1926 – e não noutra qualquer,
nem em 1918, tão pouco na de 1921 – que o quadro foi pela primeira vez
apresentado. E logo adquirido pelo Estado para o Museu de Arte Contemporânea. «O
quadro À beira-mar (Praia das Maçãs) (…) o segundo mais caro de Malhoa,
depois de As promessas – 18.000$00» - dirá Lucília Verdelho da Costa [2].
Pois permitam-me uma ligeira correcção: o mais caro de
Malhoa (pelo menos em valor absoluto)! É certo que «As Promessas»,
1933, haveria de ter um preço de catálogo bem superior – 25.000$00. Mas a esse
nunca ninguém se chegou; e «As Promessas» - tal como À Sombra,
1933, 15.000$00 - nunca foram comprados. Acabariam por ir parar ao Museu das
Caldas, mas oferecidos, à borla, por conta, à pala, a
troco de niqueles - como se quiser – certo é que nunca alguém deu qualquer dinheiro
por eles. E, por isto, «À Beira-mar (Praia das Maçãs)», nos seus 18
contos, acaba por ser mesmo o quadro mais caro alguma vez vendido por Malhoa em
exposições. É obra!
E é uma bela Obra.
2.
Ser ou não ser…
Façamos por esquecer «a burguesia
que lhe convém» e outras
tretas sociológicas do género que normalmente surgem sempre por esta altura da
conversa e que não levam a lado algum. Adiante. Vamos a outras conveniências,
quiçá algo inconvenientes.
Sempre que se aborda «À Beira-mar (Praia das Maçãs)»,
c.1926, associa-se logo um outro quadro de Malhoa. Trata-se de um pequeno óleo
sobre madeira, 21,5x27cm, assinado e datado - e assim não há dúvidas - do
acervo da Casa Museu Anastácio Gonçalves. É um quadro bastante interessante – e
não é isso que está em causa. Falo, obviamente, de «Praia das Maçãs
(estudo)», 1919. E dito assim até está certo. Mas há quem na sua douta
sapiência se apresse a crismá-lo e já o intitule «Praia das Maçãs – Varanda
do Grego». E lá vem asneira.
Independentemente disto, o problema é que, à falta de melhor, à falta de outro objecto, não há bicho careta que não haja desenvolvido teorias onde se apresenta este como «o estudo» do outro. Mesmo as santas almas que juram que «À Beira-mar…» é coisa de 1918 (já lá iremos mais adiante…) conseguem a quadratura do círculo afirmando que este, o de 1919, é «o estudo» para o dito de «um ano antes». E, convenientemente, até conseguem descortinar, lá mais ao fundo, «um casal [é, por certo, o tal… que] conversa sentado a uma mesa» – Eu, que não sou completamente ceguinho, vejo o que me parecem ser uma senhora, um cavalheiro e duas crianças, eventualmente uma segunda mulher… mas posso estar enganado. Agora, «um casal»? francamente!? nem com toda a boa vontade!...
Mas vejamos isto com olhos de ver.
Neste pequeno quadrinho Malhoa regista o ambiente de uma
esplanada, de um restaurante sobre o mar. A pincelada é larga, o desenho pouco
definido, tudo nos é mostrado como numa impressão. Mas dá para perceber.
Dá para perceber, sob as toalhas brancas, o tipo de mesas, o desenho das
cadeiras, e as colunas aparelhadas de secção poligonal que suportam a cobertura;
esta só a adivinhamos, mas conseguimos ver os estores de enrolar, de palhinhas
ou de ripas, que dela se suspendem; percebemos, pelos vasos que se dispõem
entre as colunas e pelo desenho destas, que existirá muito provavelmente um
murete de alvenaria, um parapeito, onde os vasos e colunas poisam e assentam. Percebemos
que na mesa do fundo está uma senhora, nutrida e de costas, e à sua direita uma
criança (salvo se considerarmos tratar-se de um anão); ao aproximarmos a visão,
por entre as manchas de impressão, talvez entendamos, de costas ao mar e
frente à senhora, um outro adulto, de chapéu e a ler o menu (?); e, à frente da
primeira criança, uma outra; na quina da mesa, à esquerda da senhora,
sobrepondo-se à coluna, há uma mancha que parece representar uma segunda
mulher, falta-lhe parte do rosto, comido por uma pincelada de azul do
mar que também ratou a coluna… Mas nada disto é importante, e nestas
coisas cada qual vê o que realmente quer ver. Percebemos, por fim, o
mar, a relação daquele espaço com o mar, e que entre a nossa esplanada e
o oceano algo mais haverá: outra construção abarracada, mais uns toldos, numas
manchas amareladas. Depois, só os grandes azuis.
Visto, assim bem visto, haverá alguém de boa fé que possa
afirmar que isto é a «Varanda do Grego», a que Malhoa nos mostrará em «À
Beira-mar (Praia das Maçãs)»? que este quadrinho possa ser «o estudo» do outro?
Estamos perante o mesmo local, o mesmo ambiente, a mesma arquitectura, o mesmo
mobiliário? Olharam bem? Querem ver de novo?
Ou ainda não estão convencidos?
3. Uma coisa é uma coisa…
Vamos então a um exercício simplório: juntemos uma mão cheia
de quadros de Malhoa e olhemos para eles em conjunto.
Estas quatro coisas serão,
muito possivelmente, a mesma coisa. Pelo menos tomadas no mesmo sítio –
a Praia das Maçãs. Mas não no «Restaurante do Grego» como usualmente sói
dizer-se.
Vejamos com atenção a
arquitectura do lugar e os seus pormenores – em especial as colunas de secção
sexta ou oitavada que suportam a cobertura da esplanada, o muro de alvenaria
que forma a guarda do parapeito, os vasos de sardinheiras (ou o mais que seja)
poisados sobre o mesmo, a inserção das colunas no dito muro, os estores de
enrolar que pendem da cobertura; e, já agora, a mobília – atentemos no desenho
das cadeiras.
Aparentemente, tudo indica,
estamos no mesmo cenário. Mas este, e não o outro!
No «Retrato de Roque Gameiro», c.1918 (sim, eu sei que há por aí
um desvario que o data de 1904, mas lá iremos a seu tempo…), o.s.m., 34x26, (MJM),
reparemos na cadeira onde se apoia o Mestre aguarelista, na coluna e no vaso
azul logo por de trás, e na praia em fundo…
Em «Praia das Maçãs (estudo)», 1919, o.s.m.,
21,5x27, (CMAG), já nosso conhecido, recordemos o que atrás já vimos…
E nesta «Varanda sobre a Praia - [também mal dita]
(Varanda do Grego)», n.d., o.s.m., 22x15,5, observemos o mobiliário, o vaso, a
guarda que parece descer acompanhando uns degraus que não vemos…
Finalmente n’«A Retardatária», 1924, o.s.m., 30x38,5, (MC-Coimbra), revejamos
todos os pormenores anteriores, agora perceptíveis mais claramente e pelo lado
de fora, percebamos o que são afinal as «manchas amareladas» que nos intrigaram quando vistas pelo interior do restaurante, a guarda inclinada dos degraus que apenas subentendemos, e fixemos o terreiro onde a senhora de
azul aguarda a dita que a fez esperar… (mais à frente, ao terreiro voltaremos).
Como facilmente se percebe, estas quatro coisas serão, em termos de lugar, uma mesma coisa. Mas não a «Varanda do Grego» como a seguir vamos ver.
Como facilmente se percebe, estas quatro coisas serão, em termos de lugar, uma mesma coisa. Mas não a «Varanda do Grego» como a seguir vamos ver.
4. … e outra coisa é outra coisa.
Agora, juntemos umas outras
coisas que são, definitivamente, a outra coisa. Agora, sim, a «Varanda do
Grego» ou, de seu nome completo, o «Restaurant Flôr da Praia» de Júlio Grego.
Repare-se, ao contrário dos
anteriores, nos prumos de madeira tosca pintados a cal, na sua relação com o
muro, nas esteiras do coberto, na mobília rústica pintada a óleo… em todo o
ambiente - tudo bem distinto do conjunto anterior.
Comecemos por um retrato da filha do Grego,
Elisa de Jesus Grego, por entre as mesas pintadas de verde e já nossas
conhecidas. Trata-se de uma foto publicada em Agosto de 1912 [3].
E todo aquele cenário não nos é estranho – é o que vimos logo ao início.
Passemos de novo a Malhoa.
Em «O Caminho do Grego (Praia das Maçãs)», 1922, o.s.t.(?) [4], 23x32, vemos a entrada e o exterior da dita «Varanda do Grego» pousada sobre a arriba, numa construção meio tosca mas cheia de encanto…
Em «O Caminho do Grego (Praia das Maçãs)», 1922, o.s.t.(?) [4], 23x32, vemos a entrada e o exterior da dita «Varanda do Grego» pousada sobre a arriba, numa construção meio tosca mas cheia de encanto…
Depois
«A Varanda do Grego (estudo)», n.d.,
o.s.m., 33x41, (este, sim, o estudo, o da «bayer»)
onde Malhoa regista em manchas largas as principais características
arquitectónicas, de luz e ambiência do local, as mobílias e até o barril da cal
que veremos em «À Beira-mar». Sentada por detrás do prumo que vemos em primeiro plano,
está uma figura feminina que parece coser ou fazer malha…
No
«Retrato de Agostinho Fernandes», 1925,
p.s.p., 49x38, (MJM) temos ainda o mesmo local, o mesmo muro (agora a tijolo de quinze, mais delgadito), mas os mesmos prumos e a mesma
luz da «Varanda do Grego». A cadeira é que parece não ser daqui, será uma das
de sola que Malhoa tinha no atelier [5] e que hoje estão no Museu das Caldas.
E finalmente o nosso já conhecido «À Beira-mar (Praia das Maçãs)», c.1926, o.s.m., 69x87, (MNAC-MC), com tudo isto e o mais que já foi dito.
E finalmente o nosso já conhecido «À Beira-mar (Praia das Maçãs)», c.1926, o.s.m., 69x87, (MNAC-MC), com tudo isto e o mais que já foi dito.
Talvez assim se perceba que uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. Confundi-las só pode dar trapalhice.
[1] in Ilustração, nº8,
16 Abril 1926, p.24. Que pode ler aqui.
[2] in Amar o Outro Mar: A
pintura de Malhoa. Lisboa, MC-CRCI, 2003. p.89.
[3] in Illustração
Portugueza, nº340, 26 Ago. 1912, p.288. Publicada a propósito de um crime ocorrido nas «Arribas do Mar» em que
a referida jovem terá sido testemunha. Se o amigo leitor é dos a quem interessa a quadrilhice, pode ver tudo aqui.
[4] O suporte indicado «óleo sobre tela» é de veracidade duvidosa, mas como nunca vimos o quadro pessoalmente mantivemos a indicação tal como na fonte.
[4] O suporte indicado «óleo sobre tela» é de veracidade duvidosa, mas como nunca vimos o quadro pessoalmente mantivemos a indicação tal como na fonte.
Acontece que na grande maioria, senão na totalidade
dos quadros pintados na Praia das Maçãs, Malhoa utiliza como suporte a madeira
(recordemos inclusive as relativamente grandes dimensões de «À Beira-mar» em
que tal suporte também é o usado). As razões são técnicas e fáceis de perceber –
a tela seria muito mais sensível às condições higrométricas extremas da
beira-mar. Nos presentes textos, em alguns casos e quando as obras são por nós
conhecidas, mesmo que a literatura consultada diga o contrário, corrigimos tais indicações. Neste caso, limitamo-nos a duvidar.
[5] Recordemos que também no pastel onde Malhoa retrata
a Mulher do mesmo Fernandes, «Retrato de Maria da Nazareth Fernades»,1926, (MJM),
esta aparece frente a uma paisagem figueiroense meio fantasiosa. E nem a Senhora
Dona Mª da Nazareth foi de estola de peles passear a Figueiró, nem Agostinho Fernandes
levou a cadeira para a Praia das Maçãs. O mais certo é que ambos os retratos tenham
sido feitos no atelier lisboeta e os fundos, registando os dois locais então
mais queridos da pintura de Malhoa, pintados como cenário.
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