e mais umas quantas pinceladas…
Manuel Quaresma d’Oliveira (1860-1902) morreu, fazem hoje, 13 de Dezembro, cento e dezasseis anos.
[Repito, por causa das dúvidas: Manuel, em vez de «José»; morreu
em 1902, não em «1905».]
J.Malhoa. Retrato do Exm.º Sr. Manuel Quaresma de Oliveira, 1897.
O pequeno Manoel nasceu em Figueiró dos Vinhos, a 26 de
Agosto de 1860, de Manoel Quaresma Valle do Rio e Vicencia Clara da
Conceição, então moradores da Vila. Pelo baptismo, realizado logo a 9 de
Setembro, na igreja paroquial de S. João Baptista, teve como padrinhos um
importante negociante da cidade do Porto, Alexandre Casimiro de Vasconcellos,
e sua mulher, Dona Filomena Maria d’Oliveira Vasconcellos. Ambos por
procuração: passada a dele em Lamego, onde estaria ausente em negócios, e a
dela no Porto.
Manuel Quaresma d’Oliveira irá, pela vida fora, adoptar os
sobrenomes dos dois avôs: ao do paterno, José Quaresma casado com Maria
Josefa, junta o do materno, Manoel Caetano d’Oliveira casado com Joaquina
Bernarda. Deixa cair, assim, o toponímico de origem que fora acrescentado na
geração anterior por seu pai Manoel e seu tio José [1] [2].
[Toponímico da origem destes e da avó Josefa, bem entendido, que o avô José era
dos Quaresmas do Casal dos Ferreiros da Ribeira [3].]
O pai, Manuel Quaresma Val do Rio, negociante tal como o irmão,
era já proprietário de apreciáveis meios de fortuna. Comprou a Cerca
que fora das freiras, e tinha casas ao Cimo da Vila, à Cruz de Ferro,
propriedades no Madrão, ao Chávelho, nos Mações… Morrerá a 26 Nov. 1889, na «edade
de setenta annos», tinha o filho vinte e nove.
Na década anterior, a pouco de completar os vinte anos, [curiosamente
no mesmo dia mas hora e meia antes àquela em que o seu ainda desconhecido mas
futuro amigo José Malhoa se casava em Lisboa] a 29 Jan. 1880, o jovem Manuel
ver-se-á filho único [4]. Morre a irmã, Maria Justina Quaresma d’Oliveira, quatro
anos mais velha pois havia nascido a 6 de Janeiro de 1856, ao dar à luz o seu
segundo filho. Mª Justina era casada com José Quaresma Val do Rio Junior, seu primo direito, filho do tio José, e eram moradores na Vila [5].
Terá sido enorme o desgosto familiar.
Mais tarde será mandado
edificar um magnífico e comovente túmulo, fina obra de cantaria e escultura das
oficinas lisboetas de Moreira Rato, obra merecedora da mais atenta observação
no cemitério de Figueiró dos Vinhos.
Desconhece-se qual foi a formação do jovem Manuel. Mas, pelo que nos
deixou escrito, sempre em cuidada caligrafia, exemplar ortografia e linguagem
escorreita, percebe-se que terá estudado bem mais que o useiro para um jovem
burguês de província. Deverá ter andado lá por Coimbra…
Mais certo é ter sido da Lusa Atenas que trouxe o grande amor da
sua vida: a Srª Dona Albertina da Conceição. Com quem teve cinco filhos e nos
braços da qual se finou.
Nunca casaram. Vá-se lá saber das razões…
E talvez tenha sido este o seu pecado maior. Aquele que, na
sociedade beata e fechada dos finais de XIX, e ainda mais genuflectória e
hipócrita de umas décadas passadas, o levou ao esquecimento, quase o apagou da
memória. Mesmo agora, em escritos mais ou menos recentes, aparece-nos como se
fora actor secundário, referido en passant, quase por favor, pouco mais
que nota de rodapé. Trocam-lhe o nome, baralham-lhe as datas, ignoram-lhe a importância
e as acções, não lhe ligam pevide. Injusta e deploravelmente.
Contudo, um seu contemporâneo descrevia assim Quaresma d’Oliveira: «rico
proprietario e não menos abastado capitalista; não obstante essa avultada
fortuna, possuia, o que é raro, a maior coisa do mundo talvez: - Animo sufficiente
para desprezar as grandezas!» «De genio independente, abstrahia de si
tudo quanto fossem vaidades (…) honrado e generoso cidadão, prestavel a
si, aos seus, à sociedade, e incansavel amigo da sua terra – Figueiró dos
Vinhos».
E é assim que o vamos encontrar, discreto e sem grandezas, mas
diligente, generoso e meticuloso, sempre presente em todas as grandes
iniciativas da sua terra e do seu tempo.
Quaresma está na génese da Sociedade
Recreativa Figueiroense (vulgo Clube Figueiroense). Ainda
não completara os 27 anos de idade e, embora não seja um dos cinco denominados
«iniciadores» da ideia, faz parte da restante meia dúzia que, com
aqueles, promoveram e realizaram a «sessão preparatória para discussão e approvação
dos estatutos» daquela Sociedade, e que teve lugar a 16 de Abril de
1887. É Quaresma quem redige a acta da reunião com os respectivos estatutos. E,
numa das reuniões seguintes, será eleito para os primeiros corpos sociais do Clube.
Um dos Sócios Fundadores, portanto.
Quaresma participa na fundação da Filarmónica
Figueiroense. Também aqui, Manuel terá sido um dos Sócios
Fundadores. A coroa de flores enviada ao seu funeral, «de rosas-chá,
violetas, miosottis, e fitas brancas, com a dedicatoria: - “A Philarmonica
Figueiroense ao seu socio fundador – M. Q. d’Oliveira”», parece confirmá-lo
plenamente.
[Agora, o que já não parece lá muito bem confirmado é a fundação da
Filarmónica ter “ocorrido” «em 1858» ou mesmo «em 1870»?! Pois em
1858 ainda este sócio fundador não era nascido, e em 1870 não parece que a
tenha ido “fundar” vestido de bibe e calção… Mais um daqueles síndromes da
pescada que volta e meia atacam por aí, como na fábrica do pão-de-ló
ou nalguns clubes da bola: «que antes de o ser já o eram»...]
Quaresma é um dos mais activos membros da
Comissão das obras de restauro da Igreja Matriz. Nomeada a 30 de Março de 1898, afim de por elles ser levada a
effeito a referida obra, face às dificuldades e falta de recursos sentidos
pela Junta da Paróquia.
As obras, que se prolongam de 1898 a 1903 [a Igreja é reinaugurada e
retoma o culto neste último ano pelo S. João, recorde-se], são inicialmente
dirigidas pelo arquitecto lisboeta Luiz Ernesto Reynaud. Depois do retorno
deste à capital, bem antes do final de 1898, terá sido Quaresma d’Oliveira e a
sua iniciativa a coordenar os trabalhos.
Quase nunca recordado, mas bem patente nos jornais da época, é o
facto de, a determinada altura, conseguido algum contributo financeiro do
Estado central, as obras terem andado num vai e não vem, entre o faz e o não
faz, e nas vindas e idas de uns inspectores de Lisboa…
Contudo, como facilmente se percebe por este escrito do próprio
Quaresma, publicado em Julho de 1902, a seis meses do seu passamento e praticamente
um ano antes do final das obras, os trabalhos estariam bem adiantados. O
exterior praticamente acabado. E no interior do templo, pelo que se pode ler,
estaria já pronto o altar do Senhor Jesus dos Aflitos, com o fresco de Malhoa já
pintado e o Cruxificado de Simões encarnado, e ambos já secos, assim
como o tecto da Capela-Mor. E até os «quadros sacros que existiam no mozeu
em Lisboa» [os tais que um Doutor acha que vieram todos ali do convento do
lado…] e que Simões d’Almeida obtivera do governo, também já estariam em
Figueiró. Faltaria mesmo pouca coisa: os douramentos de uns altares e
pouco mais.
Este artigo de Quaresma, resposta a umas parvoeiras
publicadas no número anterior d’O Figueiroense, é exemplar. É dos que eu
gosto. Só por isto, Manuel Quaresma d’Oliveira merece toda a minha
consideração.
[As parvoeiras, já na altura e como está bom de perceber, são
o encher de boca e… a(r)rota Malhoa. Como o tal brandy, é
coisa que «já vem de longe»…]
E ainda hoje, se o escrito de Quaresma fosse mais bem lido e
relido, muito ajudaria a que se não dissessem banalidades menos acertadas quanto
à história das obras da Igreja. Está lá tudo escarrapachado.
[É este texto, além do mais, fonte primeira. Não se percebe, portanto, porque se insiste em ir buscar transcrições de uma década depois e que baralham até a sequência da polémica, quando se tem bem à mão o original?! Vontade de complicar…]
Quaresma tudo deu na tentativa de erguer
a Empresa da Fábrica de Cerâmica de Figueiró dos Vinhos.
De vida efémera, entre meados de Agosto e o início de Novembro de 1898
aconteceu quase tudo, e ter-se-á arrastado apenas por mais um ano…
![]() |
Luiz Reynaud, António Lopes Serra, Manuel de Vasconcellos, Quaresma
d’Oliveira, pe. Diogo de Vasconcellos,
Simões d’Almeida, Henrique Pinto, e José
Malhoa. Em Figueiró, Agosto/Setembro de 1898.
|
A 18 de Agosto de 1898, oito figuras constituíram a sociedade
destinada a tal propósito.
Manuel de Vasconcellos presidiu e ficou de tratar da escritura e legalização da sociedade [não se sabe se alguma vez tal foi feito]; o padre Diogo de Vasconcellos vice-presidiu [o que também foi bom]; Lopes Serra secretariou e venderia à sociedade uns terrenos para instalar a fábrica [desconhece-se o destino posterior de tais terrenos]; e Quaresma tesoureirou, fez contas, organizou, tratou de comprar os barreiros para extrair os barros [em seu nome, que a sociedade formal ainda o não era] e acabou mesmo por ter de atar todas as pontas. Era esta a «Direcção Administrativa da empreza», eleita por aclamação.
Manuel de Vasconcellos presidiu e ficou de tratar da escritura e legalização da sociedade [não se sabe se alguma vez tal foi feito]; o padre Diogo de Vasconcellos vice-presidiu [o que também foi bom]; Lopes Serra secretariou e venderia à sociedade uns terrenos para instalar a fábrica [desconhece-se o destino posterior de tais terrenos]; e Quaresma tesoureirou, fez contas, organizou, tratou de comprar os barreiros para extrair os barros [em seu nome, que a sociedade formal ainda o não era] e acabou mesmo por ter de atar todas as pontas. Era esta a «Direcção Administrativa da empreza», eleita por aclamação.
Quanto aos outros: Reynaud foi nomeado director technico, mas
logo nos finais de Setembro oficiou a sua saída de sócio, embora continuasse
como gerente technico [um mês e tal depois acabou mesmo por
abalar, deixando tudo e as quotas realizadas por pagar]. Pinto, na volta às suas
aulas nabantinas, levou amostras do barreiro do Forno do Telheiro para
testar na fábrica de Tomar; vieram de lá «uma bacia, uma pucara, ou panella
pequena e dois vazos para flores» e a informação sobre o barro «que não
serve para louça de bocal estreito por ser fraco e não se auguentar»; então,
pelos que em Figueiró ficaram, «resolveu-se que se mandem (…) amostras
de todos os barros para elle obter (…) mais provas» [ignora-se se
novo veredicto houve]. Simões deu sábios conselhos e tratou de substituir Reynaud
quando este borregou, redigiu o regulamento da fábrica, planeou mudanças
de telheiros, novos barracões e várias remodelações [e logo precisou da ajuda
de mais um director de serviço - Quaresma, quem mais?!]. Malhoa não se
sabe bem o que fez [mas tê-lo-á feito bem com certeza].
No entretanto, naqueles dois meses e meio, fizeram-se onze reuniões
e redigiram-se outras tantas actas. Determinaram-se quotas e sucessivos
suprimentos de capital; contrataram-se três oleiros e um guarda de serviço
noturno e estabeleceram-se os seus salários [mês e meio depois já se falava em
reduzir pessoal]; deliberou-se sobre os preços de venda do tijolo grosso,
tipo burro - «dez mil reis o milheiro» - e também do delgado,
talvez lambaz, [não se sabendo, portanto, se alguma vez ali se cozeu
telha]; em meados de Outubro discutia-se «se convinha ou não que
continuassem os serviços no inverno», deliberou-se que sim. Como Reynaud já
não contava, Pinto para as aulas de Tomar já fora, Simões para as mesmas em
Lisboa, e Malhoa também logo para lá voltaria, o Padre as missas tinha a
dizer, o Serra a Câmara e a botica para aviar, e o dr. Vasconcellos já idade ou
jeito para tal não tinha, foi Quaresma, o director de serviço, que com
tudo teve de arcar [com a promessa, embora vã, de ser revezado por outros de
mês a mês]. Estávamos a 1 Nov. 1898.
A acta seguinte, a última que se conhece, data quase de um ano
depois [está assinada por seis dos sócios iniciais – Reynaud, como vimos, já o
não era; «faltando o socio Manoel Henriques Pinto, por estar auzente», nas suas actividades lectivas evidentemente]. Em 30 de Setembro de 1899 «o
sócio Manuel Quaresma d’Oliveira apresentou as contas de receita e despesa
feita durante a sua gerencia como Director, e disse que não podia continuar a
assumir aquelle encargo, declarando que nas contas não estava incluida a
despesa da compra d’um barreiro que fez em seu nome e que punha ao dispor da
sociedade para exploração do barro». «Todos os socios se deram por satisfeitos
com a direcção d’aquelle socio e approvam as contas por unanimidade…». E,
desta vez, «foi deliberado que durante a estação do inverno paralisassemos
trabalhos para principiarem no principio da primavera…» e mais um
relambório de futuras e boas intenções.
[Pelo que se depreende, salvo se outra notícia houver, a hibernação ter-se-á prolongado até hoje…]
[Pelo que se depreende, salvo se outra notícia houver, a hibernação ter-se-á prolongado até hoje…]
E foi assim, apesar de todo o esforço, do capital e suprimentos,
dos cuidados e ilusões, que, para a História, tudo não terá passado muito além
do papel : o daquela dúzia de actas e o destas duas fotografias.
Quaresma foi Presidente da Câmara
Municipal de Figueiró dos Vinhos. Sobre isto pouco
se sabe: um Edital avulso com, talvez, algumas das primeiras preocupações sobre
higiene, ordenamento e licenciamento urbano na Vila, e pouco mais.
Nem se sabe ao certo
quando iniciou o mandato. Finda-o com a sua morte.
![]() |
O Figueiroense, 26 Jul.1902, p.4
|
Apenas outras raras notícias de jornal se referem ao facto. A que
nos dá conta, em finais de Novembro, do seu estado de saúde: «O sr. Manoel
Quaresma d’Oliveira, digno presidente da camara municipal d’este concelho, tem
passado incomodado de saude | Desejamos as suas rápidas melhoras». E,
quinze dias depois, a do seu funeral, que dá ainda nota da coroa que a Câmara
Municipal depositou junto ao caixão «de saudades, goivos, violetas e fitas
roxas, com a dedicatoria: - “Ao seu inolvidavel presidente e sempre chorado
amigo – A Camara”».
E não deveremos andar muito longe da verdade se dissermos que terá
sido da sua vereação a deliberação da Câmara, de «21 de Junho de 1901»,
sobre a cedência e protecção ad aeternum, pela «Camara ou quem lhe suceder»,
do «Carvalho do sr. Malhoa» - um belo exemplar arbóreo que coexistiu anos a fio
com o «Casulo» do outro lado da quelha dos Pelomes, que foi abatido em 2007 sem
dó nem piedade e, pelo visto, ao arrepio de disposições centenárias. Este outro
Edital bem posterior, já de 1920, dá conta daquela deliberação e explicita o seu articulado.
Está visto: o «inolvidável presidente» foi sendo esquecido;
o «sempre chorado amigo» viu cedo secarem-lhes as lágrimas em volta; e
até as deliberações da sua «Câmara ou quem lhe suceder» foram parar ao
caixote do lixo da história.
Em 1897, Malhoa, seu particular amigo, já
lhe pintara o retrato.
![]() |
J.Malhoa. Retrato do Exm.º Sr. Manuel Quaresma de Oliveira, 1897.
Aqui numa foto a cores que me foi enviada, faz largo tempo, pelo meu caro Amigo F.Pires
|
Trata-se de um quadro assinado e datado [«1897», por via das
dúvidas] que nos mostra Manuel Quaresma d’Oliveira, aos 37 anos, sério mas de
olhar fino e vivo, num discreto casaco e colete escuros, onde apenas sobressaem
a gravata de seda branca e o alfinete que a pontua. Um belo retrato.
É um óleo que Malhoa levará, na Primavera do ano seguinte, à 8ª
Exposição do Grémio Artístico. Sob o nº 97, o catálogo intitula-o «Retrato
do Exmº Sr. Manuel Quaresma de Oliveira» e indica-lhe as dimensões «43x52».
Não era qualquer pintura que Malhoa decidia expor no Grémio. Nesse
ano, acompanharam o retrato de Quaresma, o «Retrato do Exmº
Sr. Conde de Proença-a-Velha» e o «Retrato de madame L»
(o de Dona Tereza Leal que Malhoa levara no ano anterior ao Salon de Paris). E ainda, entre alguns mais, «Os Oleiros» (a versão grande,
também presente no Salon de 1897), «As padeiras (Mercado em Figueiró)»,
«As papas» (mas a versão pequena), «A picota» ou «Gosando os
rendimentos». Boa pintura, já se vê.
Como se percebe, o Sr. Quaresma foi apresentado aos
lisboetas em muito boa companhia.
Há uma lenda figueiroense,
chamemos-lhe assim, acerca do «Casulo», que faz de Malhoa um dos irmãos do «porquinho
Prático» e de Quaresma uma das «Fadas Madrinha» [a outra será, obviamente, o Serra da farmácia].
Muitas vezes repetida, com diversas variantes, tal lenda diz
mais ou menos o seguinte: «…Malhoa encantou-se tanto por Figueiró, que os
seus amigos o convenceram a construir aqui uma casa. Azevedo Serra deu-lhe um
amplo terreno à entrada da vila, e Quaresma d’Oliveira ofereceu-lhe todas as
madeiras necessárias à sua construção…». Nas versões mais “eruditas” e “científicas”
acrescentam-se uns conceitos e palavras caras [tipo «fortuna memorial», «valor paisagístico»,
«vivência cultural», ou assim…] e uma data bem precisa: «1895». Já quem “sabe mesmo”, mas “mesmo” do
assunto, não dispensa um precioso “rectificativo”: «pedreiro: Júlio Soares
Pinto, marceneiro: Manuel Granada» [acrescem, assim, dois laboriosos «anõezinhos
da Branca de Neve» para o quadro da fantasia ficar mesmo completo: -
«Eu vou, eu vou… pará tchim pum! pará tchim pum! Eu vou…»].
Então vamos lá. E vamos por partes.
Quanto ao terreno, António Serra “deu” coisíssima nenhuma! Malhoa
comprou-o! E «pelo preço e quantia de duzentos mil reis» [e mais 19$253 em impostos, selos e alcavalas], a «João
Mendes e sua mulher Pulchueria Augusta Pimenta Serra», conforme se pode ler
na escritura lavrada a «25 de setembro de 1893» [em quatro folhinhas,
quatro e não duas, que se podem hoje ver reproduzidas numa das paredes do
«Casulo»]. Azevedo Serra, tal como António Vasconcellos (o do pão-de-ló),
limitaram-se a ser testemunhas do acto notarial.
Depois, se Quaresma deu, ou não deu, as madeiras, talvez nunca o
saibamos… [que Malhoa pagou algumas, há registo; que o «Casulo» nunca foi um bungalow
ou cabana de pau-a-pique, também é certo]. Quaresma terá, isso sim, um outro
e bem mais importante papel na ampliação do «Casulo», como mais adiante se verá.
Sobre aquela data “precisa”: «1895». Sabe-se muito pouco acerca da construção
do edifício inicial, o tal que «de tão pequenino que aquilo era, [Malhoa]
o baptisou com o nome de “Casulo”». Mas sabe-se bem como era: quatro paredes
de alvenaria de pedra e cal, uma porta e duas janelas, telhado de duas águas e
uma só divisória interior – tudo em perto de 38m2 brutos. Não é, pois, crível que tenha demorado muito a pôr em pé
[nem por licenciamento terá esperado…] e, se o não foi logo no Outono de 1893,
tê-lo-á sido, muito provavelmente, na Primavera seguinte…
Sabe-se também [se é que com isto se relaciona…] que, em 8 Out.
1895, Malhoa e Quaresma [designado aquele «mestre de pintura», este como
«Amannuense da Camara deste Concelho»] apadrinham o casamento de Júlio
Soares Pinto com Mª Rosa. [Curiosamente, os registos paroquiais dão-nos Júlio, em
1895, aquando do casamento, aos 25 anos, como «official da Admenistração
deste Concelho»; e só o irão referir como «canteiro» já em 2 Jan.
1898, pelo baptismo da filha Julieta realizado ainda na Igreja Matriz antes de ali
se iniciarem as obras de restauro, obras em que Júlio seria, e aí efectivamente, um
dos artífices]. Se, com isto, se pode afirmar que Júlio Soares Pinto “foi” o «pedreiro»
do «Casulo» [mesmo que apenas da construção inicial, e na tal data] … parece pouco,
muito pouco.
[Porque, depois, nas obras de ampliação iniciadas por Reynaud em
1898, sabe-se que o mestre encarregado foi um outro: um tal José Ignacio
Pereira. Embora o Júlio também por lá tenha feito um ou outro trabalho, pintado
um quarto, e tratado do jardim e da horta…]
Por fim, o dito «Manuel Granada». Fica-se sem saber se este Manel
será pai, filho ou apenas o espírito de um outro
a quem Malhoa chama repetidamente Joaquim... Ao «Joaquim Granada»,
ao «Joaq.im Carpinteiro», fez Malhoa pagamentos e até lhe
comprou um «alfinete» [tal como, na mesma data, um outro para o José
Inácio] em reconhecimento dos bons serviços prestados… Prestados pelo Joaquim
Granada, evidentemente.
E pronto. Como em todas as lendas, a coisa até tem fundo de verdade.
É assim a modos as cautelas da lotaria: nunca acertam na taluda, mas
ficamos todos contentes quando têm a terminação.
Voltando a coisas sérias. Ao nosso amigo
Quaresma, ao «augmento» do «Casulo» de Malhoa, ao papel daquele nas
obras, e à profunda amizade entre ambos.
No ano de 1898, Malhoa chega a Figueiró nos princípios de Junho já
com tais obras em mente. Num postal enviado a MHPinto, datado de 16,
apresenta-nos pela primeira vez a «Maria dos pintainhos» - a fiel
criada Maria Ferreira que o irá acompanhar por toda a vida - escrevendo [os
sublinhados são de Malhoa]: «…não foi ficar a tua casa por ter tido trabalho
nas obras até ao último dia» [tal «trabalho» seria, bem entendido, o
desfazer e o arrumar de toda a tralha existente no «Casulo» para se poderem iniciar
as ansiadas obras de ampliação]. Depois, segundo tradição na família
Quaresma [e as tradições familiares valem o que valem – sei-o por
experiência própria], será em casa de Manuel Quaresma que Malhoa, e os seus, se
irão alojar enquanto duram as obras no «Casulo» - tal parece bem plausível [convém,
no entanto, não abusar e não tentar alargar o alvará de hospedagem ao
período anterior à inicial e pequenina casa de veraneio de Malhoa…].
Poucos dias depois, também Reynaud chega a Figueiró para dar início
às obras da Igreja Matriz. E, muito provavelmente, já apalavrado para proceder
ao «augmento» da casinha do seu antigo condiscípulo na Academia
das Belas Artes. Um dos desenhos originais de Reynaud já o pudemos ver aqui
(numa das notas destoutro artigo): o alçado lateral nordeste, assinado e datado
de «1898» [infelizmente, sem indicar dia ou mês].
Os trabalhos de construção civil terão o seu início aí pelo mês de
Julho. Na Igreja e logo no «Casulo». Reynaud risca, dirige ambos os estaleiros,
encomenda materiais, contacta fornecedores - amiúde os mesmos para as duas
obras [6]. Malhoa permanecerá em Figueiró até aos inícios de Novembro [já vimos
que a 1 Nov. 1898 ainda assina a acta da Fábrica de Cerâmica]. Chegado a
Lisboa, regista de uma assentada no seu livro «Receita/Despeza»: «Junho,
Julho, Agosto, Setembro, Outubro» | «Custo do augmento do “Cazulo” até 3
Nº 98 – 1:289$320» | «Estada em Figueiró despeza de casa – 250$000».
![]() |
Encomenda de cantarias para o «Casulo» em 19 Set. 1898.
Conforme o copiador
de cartas do arq. Luiz E. Reynaud,
in DIAS, Jorge A. Ferreira. O
Casulo ou Chalé de Malhoa. DA/ESBAL, 1984 (policopiado).
|
Depois [como também vimos antes, e sem se perceber bem porquê]
Reynaud dá por terminado o seu trabalho em Figueiró e sai de cena.
Se Quaresma teve de assumir a coordenação das obras da Igreja,
também o fará com as do «Casulo» [para além daquela outra história da Fábrica
de Cerâmica, recordemos… e tudo isso pelo mesmo tempo!].
Os registos de Malhoa confirmam: «Novembro» | «Ida a
Figueiró, contas pagas ao Teixeira – 38$000» | «Paguei ao Quaresma em 28
Nº, contas das folhas d’este mez nas obras do “Cazulo”, fornecimento de
canterias, saibro e pedras – 227$170». E durante o ano de 1899 repetem-se os
assentos de pagamentos «ao Quaresma por despesas já feitas e a fazer no
“Cazulo”» ou por «importancia que elle adeantou…»: em Janeiro 440$000,
em Março 300$000, em Junho 538$275, e em Dezembro 251$000.
Somas significativas, já se vê, e que demonstram grande confiança entre dois bons amigos.
Durante este ano, Malhoa irá a Figueiró em Janeiro e Março para ver
do andamento da obra e fazer contas com Quaresma, e faz estada prolongada de 20
de Junho ao fim de Outubro [assenta então semanalmente os pagamentos das «folhas
de ferias» feitos por si próprio aos operários].
Mesmo a finalizar o ano, deixa-nos este significativo apontamento.
![]() |
Do livro «Receita/Despeza» de Malhoa, últimas linhas do
ano de 1899.
|
E foi assim, por tudo isto, como o Amigo da máxima confiança, como o que realmente coordenou e dirigiu os trabalhos por mais de um ano, que Quaresma d’Oliveira deixa o seu nome definitivamente ligado ao edifício do «Casulo». Não fora ele e talvez a coisa tivesse empancado… Foi por isto. Não por uma qualquer palete de tábuas de solho.
[No ano seguinte, 1900, ainda haverá registo de mais dois
pagamentos a Quaresma. Um, a 4 Fev., de 79$000, e um outro no início de
Maio: «Dinheiro que mandei para o Quaresma, importância de folhas de
salarios do Joaq.im Carpinteiro na execução da mesa de Casa
de jantar e armario assim como de miudezas apresentadas pelo Julio e conta do
Teixeira – 33$845».
E a fechar o “deve e haver” com Quaresma, ainda em Maio mas a 20, mais
dois assentos: «Broche pª a Conceição do Quaresma d’Oliveira – 19$000», e logo um outro que diz às tantas «(…) e brindes pª as pequenas do Quaresma
(…)».]
[Depois, tal como Malhoa antecipa na nota do final de ano, os
trabalhos da mina e da canalização de água irão ocupar os anos de 1900 e 1901. Mas
essa é já uma outra história que, então sim, mete o Serra, dono do terreno onde
se situava a nascente, e não é, por ora, p’ráqui chamada.]
No entretanto, a 6 de Dezembro de 1898,
nasce o primeiro filho varão do casal Albertina e Manuel Quaresma d’Oliveira.
Irá tomar o nome do padrinho, o amigo Zé Malhoa, e os competentes
apelidos de família. Terá, para isso, de esperar pela vinda
com estadia prolongada de Malhoa e sua família a Figueiró. Isso, só a 20 de Junho
do ano seguinte, como já vimos. E logo no dia 26, na «Egreja da Mesericordia» [a do
Convento, bem entendido, que a Matriz estava em obras], se realiza o baptismo
do pequeno «José Quaresma d’Oliveira» [assim mesmo registado, de nome
completo e por extenso, por causa de quaisquer dúvidas…]. Foram padrinhos José
Malhoa e a sua mulher Júlia [assinando o registo e nele nomeada como «Julia
Augusta de Carvalho Malhôa», em modo imperial portanto, à causa de
outras dúvidas].
O assento de baptismo deste primeiro filho varão é, curiosa e
sintomaticamente, o primeiro em que, para além da mãe Albertina da Conceição,
também Manuel Quaresma d’Oliveira [ambos «solteiros», como vimos ao início]
aparece nomeado, quer como pai, quer perfilhando «para todos os effeitos
legais» a criança [que, apesar disto, não se livra do estigma «filho
natural»…]
Nos baptismos anteriores, no da filha mais velha Aldara (31
Jan.1890 - Nov.1917), no da Hedmea (30 Ago.1892 - c.1929), e no da Maria
(16 Dez.1894 - 17 Mai.1976), apenas é nomeada a mãe, Albertina da Conceição,
que todas declara «para todos os effeitos legais sua[s] legitima[s]
filha[s]». O pai está sempre omisso. Curioso é também o facto da pequena «Aldara
da Conceição» [assim e apenas], mesmo de tenra idade, ser das duas
irmãs sequentes madrinha.
Contudo, em 7 Jun.1898, a pequena Aldara, já com oito aninhos e a
saber ler e escrever, apadrinhará, juntamente com o pai Manuel, um tal Annibal.
É então que tem direito ao seu nome completo e, como tal, orgulhosamente o
assina.
Ainda sobre o direito ao nome, uma outra nota. Em 1 Nov.
1897, a mulher de Quaresma foi madrinha de um qualquer Alberto. O padre
faz o assento, nomeando-a como soía «Albertina da Conceição (…) solteira»;
então, nas barbas do padre Diogo, a Srª Dona Albertina, senhora do seu nariz,
assina como achou que já era altura: «Albertina Quaresma»! [E o padre lá
teve de assinar por baixo…]
Depois do José (6 Dez.1898 - 1 Nov.1975), o casal Quaresma
d’Oliveira terá ainda um outro rapaz, a quem foi posto o nome do pai e do avô. Manuel,
o mais novo dos cinco irmãos, nasceu a 20 Mai.1902. [Fará a sua vida adulta em
Alcobaça, e ignora-se quando morreu.]
Quando tudo parecia, finalmente, estar a correr bem, com toda uma vida pela frente, Quaresma
morre aos 42 anos de idade, repentinamente. Entre a pequenina
notícia, de 29 Nov., que refere quase despreocupadamente «tem passado
incomodado de saúde», e a sua morte passam menos de quinze dias. A 13 de
Dezembro de 1902, Figueiró dos Vinhos e os seus amigos vêem desaparecer um dos
seus mais ilustres.
Manuel Quaresma d’Oliveira morre, de morte sofrida, em Coimbra.
Deixando a sua companheira de sempre, Albertina da Conceição, e cinco filhos,
todos menores, «por quem era immensamente extremoso».
Mais que contar ou relevar este ou aquele pormenor, o melhor é ler
o que na altura se escreveu. Um belo artigo, e parece sincero, que dá conta de
toda a tragédia.
E, pelo trigésimo dia, duas missa(s) por sua alma.
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O Figueiroense, nº279, 10 Jan.1903, p.3
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13 Dez.
2018.
revisto
e aumentado em 4 Fev. 2019.
anotado a 2 Mar. 2019. LBG
anotado a 2 Mar. 2019. LBG
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As NOTAS sequentes (à excepção da última) são já posteriores à
feitura do artigo. Servirão, fundamentalmente e de futuro, a quem queira
aprofundar o estudo da Família Quaresma e das relações entre os diversos
personagens desta incontornável família da história figueiroense.
Agradeço aos meus
caros amigos Débora Passos e Luís Quaresma Ferreira o auxílio, os alvitres para
pôr a descoberto e no lugar certo muita desta gente.
[1]. De José Quaresma e Maria Josefa, casados a 23 Out.1811,
nasceram, para além de José e de Manuel (o pai de Manuel Quaresma d’Oliveira), pelo
menos mais uma irmã: Maria (5 Abr.1814 - ?).
[2]. Toponímico que será continuado por quase toda a descendência
do tio.
José Quaresma Val do Rio (25 Set.1812 – 4 Mai.1896) casou com Maria Godinha, do
Bairrão, e ali nascerão os seguintes filhos:
. Luiz Quaresma Val do Rio (1 Set.1841 – 22
Jun.1912), importante comerciante de Lisboa e grande benemérito de Figº dos
Vinhos. Sobre as suas virtudes pode-se ler aqui ou ali (conforme se goste ou
não do Afonso Costa…).
. Maria de São José Quaresma Paiva (22 Jul.1846 – 16 Abr.1915)
que virá a casar, a 19 Ago.1876, com João Lopes de Paiva (e Silva) (c.1850 - 2 Abr.1919).
. Manoel Quaresma Val do Rio (23 Mai.1949 – 7
Nov.1906), tal como seu irmão Luiz, ligado à casa comercial lisboeta «Val do
Rio», fundada pelo pai, foi também um generoso benemérito figueiroense. A
apreciação contemporânea do personagem (mais monárquica ou já republicana) pode
ser feita aqui (2 artigos na p.2) ou além.
. José Quaresma
Val do Rio Júnior (3 Jan.1852 - ?) que viria a casar com sua prima Maria
Justina Quaresma d’Oliveira.
. e, por fim, António
(27 Set.1855 - ?), de quem pouco ou nada se sabe.
[3]. O avô José Quaresma era, tal como a avó Maria Josefa,
originário do Casal dos Ferreiros da Ribeira. Era filho de um Manuel
Quaresma e de uma outra Maria Josefa, também dali naturais. Tudo
indica, portanto, que a família Quaresma tem a sua origem naquele lugar junto ao Bairrão.
O avô José Quaresma terá tido, pelo menos, um irmão: Francisco
Quaresma.
Este Francisco Quaresma casará com Maria Dias (ou Maria
Godinha), da Aldeia da Cruz, e ali se irá estabelecer e gerar descendência.
Dando origem aos Quaresmas da Aldeia da Cruz. Há notícia de três filhos
de Francisco Quaresma: Maria (n. 21 Set.1814), Joaquina Quaresma
e José Quaresma.
Joaquina Quaresma, com Inácio Dias, da Vila, em 18 Abr.1852 será
mãe de uma Justina.
E José Quaresma ir-se-á estabelecer na Ervideira,
onde, com Francisca Godinha, do Bairrão, dá origem aos Quaresmas da
Ervideira. Em 30 Nov.1859, por exemplo, ali nasce outra Maria de São
José.
(E assim se vão repetindo os nomes dos e das Quaresmas, para
dificilmente percebermos quem é quem…)
[4]. Entre o nascimento de Maria Justina e o de Manuel Quaresma d’Oliveira,
há notícia de um outro irmão, José (31 Jan.1859 – 16 Jul.1859), que
morreu de tenra idade.
[5]. Do casamento da irmã Maria Justina Quaresma d’Oliveira com o
primo José Quaresma Vale do Rio Júnior nasceram dois filhos:
. Aurélia Quaresma Val do Rio (26 Nov.1878 – 15 Fev.1950) que
morrerá em Lisboa, em S. Sebastião da Pedreira.
. e José Quaresma Val do Rio (29 Jan.1880 – ?), o filho
nascido aquando da morte da mãe e que sobreviverá até à idade adulta, embora se
não saiba quando falece.
[6]. Tal como, neste particular, bem refere Miguel Portela in:
«A Igreja Matriz de Figueiró dos Vinhos: Um verdadeiro tesouro de Arte.
As obras de restauro [1898–1904]». Cadernos de Estudos Leirienses-1. Textiverso, Leiria, 2014. (Pág.
26).
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