quarta-feira, 1 de junho de 2016

«O Casulo» contado às criancinhas

(a ver se os crescidos entendem…)


Neste Dia Internacional da Criança deixo-vos com o meu amigo Figueiredo, o Esquilo Figueiredo. O Figueiredo é, como o nome indica, um esquilo de Figueiró. Um Sciurus Vulgaris, de Linnaeus, um velho conhecido, um simpático bicho.

   Gosta de me aparecer por lá. Dá-me conta das avelãs, no tempo delas das nozes e das castanhas, mas principalmente das pinhas. Às vezes quero acender a lareira ou o fogareiro para assar umas sardinhas e só encontro carolos das pinhas, que o malandro mas roeu todas. Isto não impede que entre nós se tenha desenvolvido uma bela e verdadeira amizade.

Quando por lá estou e está tudo sossegado, quando não anda por lá o gato da Mena ou o canito da Dona Adélia, volta e meia lá me aparece. Empoleira-se numa ramada, olha para mim, eu olho para ele, e ficamos horas a conversar. É um bicho esperto. Sabe-a toda!
Mas é bastante reservado, e gosta pouco de trapalhices. Assustadiço. Se algo o incomoda, se alguém se arma em parvo, a coisa não corre bem, desaparece num pulo, trepa à copa mais alta dum pinheiro ou dum cedro grande e nunca mais ninguém o vê. Pelo menos durante uns tempos, até lhe passar…
Gosta muito de pinhas, mas também de respeito e da boa educação. É assim.
Apesar do aparente mau feitio, é uma jóia de bicho, um animal prestável. Bem conversado e longe de confusões, faz tudo o que se lhe pede. E certinho. Só não faz mais se não puder.

Outro dia, por um acaso, encontrei uns amigos meus às voltas com um folheto para os meninos das escolas de Figueiró. A ideia era boa, as ilustrações muito engraçadas, faltava uma história com pés e cabeça. Lembrei-me do Figueiredo. E ele tratou do assunto.
Basicamente aqui vão a conversa e os desenhos do Figueiredo feitos especialmente para os meninos de Figueiró. Agora em versão completa, antes de condensada para caber no papel. Que quando começa, e custa a começar, depois é difícil pará-lo.
Como parece que a outra custa a sair, lá por coisas, esta nossa versão vai com outros retratos de outros fotógrafos. – «É pena, pá! Gosto mesmo dos bonecos da Ana… Mas se se entretêm a engonhar, mete aí outra coisa qualquer. Enleios é que eu não quero!» – avisou-me logo o bicho. Portanto, os bonecos ficam para outra vez.
E fiquem com o Figueiredo.





Eram uma vez (em Figueiró) quatro artistas:

José Simões d’Almeida júnior, escultor.
Nasceu em Figueiró dos Vinhos, a 24 de Abril de 1844, e morreu na Amadora em 13 de Dezembro de 1926.







É do seu cinzel este mármore de «Luís de Camões», 1892, escultura que o Artista ofereceu ao «Clube Figueiroense» e que agora podemos ver no Museu.





Manuel Henrique Pinto, pintor.
Nasceu em Cacilhas, em 15 de Março de 1853, e morreu em 26 de Setembro de 1912, nas Lameiras, no fim de mais um verão passado em Figueiró.

«A caça dos taralhões», c.1891, é a primeira de uma série de pinturas, umas feitas por ele e outras por Malhoa, que 


retratam a vida e as brincadeiras de uns meninos que viviam na quinta da Fonte do Cordeiro, em Figueiró. O quadro foi logo comprado pelo Rei D. Carlos, chegou a ir a Berlim em 1896, mas depois não se sabe onde foi parar… Por isso só o conhecemos de fotografia.


José Malhoa, pintor.
Nasceu nas Caldas da Rainha, a 28 de Abril de 1855, e morreu em Figueiró, no «Casulo», em 26 de Outubro de 1933.







«O Baptismo de Cristo», 1904, é um quadro que Malhoa fez de propósito para a Igreja Matriz de Figueiró. Mostra o S. João Baptista a baptizar Jesus. Está à vista de todos lá na Igreja.


José Simões d’Almeida (sobº), escultor.
Nasceu em Figueiró, ao Cimo da Vila, em 17 de Junho de 1880, e morreu em Lisboa a 2 de Março de 1950.








O «Busto da República», 1908, foi modelado ainda durante a monarquia para a Câmara de Lisboa que era já republicana. 
Este, que podemos ver no Museu, é talvez o gesso original que Simões, mais tarde, ofereceu à sua terra.








M. Henrique Pinto e José Malhoa encontraram-se ainda rapazes na Academia das Belas Artes e ficaram amigos para a vida. Depois, já homens feitos, andavam muitas vezes juntos a pintar paisagens lá pelas terras à volta de Lisboa. Com cavaletes, telas, caixas das tintas, farnel, tudo de um lado para o outro.
Um dia, Simões d’Almeida (o tio), que era de Figueiró e tinha sido professor de Desenho de ambos, disse-lhes mais ou menos assim: - «Deixem-se de andar por aí com a tralha às costas, e vão mas é para a minha terra que têm lá muito que pintar!...». E eles vieram.
Isto foi no ano de 1883, vai para mais de cento e tal…
Gostaram tanto disto, que passaram a vir todos, mas todos os verões.

Logo, logo o Manuel Henrique se apaixona por uma moça de cá, uma prima do Simões d'Almeida (o tio) chamada Maria da Conceição, e dois anos depois casa com ela. Foram padrinhos o amigo Malhoa e a Júlia, a mulher deste. Foi a 3 de Agosto, na Igreja de S. João Baptista.
O «Zézito» Simões – era assim que lhe chamavam - tinha então cinco anos, e para além de ser sobrinho e afilhado do Simões (do tio) era também sobrinho e afilhado da Mª da Conceição. Por isso passou a chamar ao Manuel Henrique - «o tio Pinto». Parece complicado, mas não é.

(Isto pode até parecer Quadrilhice Analítica, que é uma disciplina da História da Arte onde, quando pouco ou nada se tem para dizer, se justifica tudo com umas propaladas e intrincadas amizades e outras intimidades entre os personagens, alguns que nem para ali são chamados, e se referem uns locais ou viagens que juntos fizeram, mesmo que, às vezes, as datas não batam lá muito certo… 
Pode ser parecido, mas não é! Isto é tudo verdadinha. E da de papel passado.)

Depois, dois ou três anos depois, o «Zézito» vai para Lisboa com os pais e as irmãs, fará por lá as Belas Artes, onde também foi discípulo do Tio, e irá até Paris. Portanto, o Simões d’Almeida (sobrinho) só voltará a entrar nestas nossas histórias muitos anos mais tarde… (mesmo que alguém possa achar o contrário).

Ora, se o Pinto casa cá, o Malhoa faz cá casa.

Alguns anos depois Malhoa comprou aqui um terreno (e parece que comprou mesmo…) onde construiu uma pequeníssima casa[1], apenas com uma divisão. De um lado uma cozinha minúscula, do outro uma só sala. Para dormirem dividiam parte da sala com dois biombos, um para fazer o quarto dele e da mulher, outro para o da irmã Maria Rita. A parte central, no que sobrava, era casa de jantar e de estar. Cá fora, uma barraca de colmo onde o antigo dono do terreno guardava as coisas da lavoura servia de atelier.
E de tão pequenino que aquilo era, o baptizou com o nome de «Casulo».

(Isto, mais ou menos, foi escrito pelo meu avô, o Esquilo Figueiroa, que em miúdo vinha às bolotas a um velho carvalho que havia ali ao lado, e viu tudo.) [2]

Era assim. Eu faço um desenho:



Depois, em 1898, Luiz Ernesto Reynaud, o arquitecto que estava cá a fazer as obras de remodelação da Igreja e tinha sido colega deles nas Belas Artes e aluno do Simões (o tio), fez o projecto de ampliação. A antiga casinha (o «Casulo» propriamente dito) ficou para atelier [3], e encostado mesmo ao lado construiu-se uma nova moradia. Também pequena, mas com quartos e tudo.
Por volta de 1901 estava quase tudo pronto.

E ficou assim:



Depois, bem, depois passaram muitos anos. O senhor Malhoa foi ficando velhinho, os amigos morrendo, e ele também acabou por morrer. E o «Casulo» foi tendo novos donos, foi servindo para outras coisas, e foi mudando aos poucochinhos. Mudou mesmo bastante. É giro descobrirmos as diferenças.
Mas ainda ali está, que as casas boas resistem a tudo. E podemos vê-lo agora, por dentro e por fora, descobrir coisas antigas e coisas novas. E voltar a contar histórias.
Ora as histórias podem ser bem ou mal contadas, das que dá gosto ler e ouvir, ou daquelas trapalhonas e que não interessam a ninguém. É conforme se queira. Tudo depende do modo como as deixam contar. Ou de não se armarem em tolos…





1 Jun. 2016.








[1] A casa, térrea, uma porta e duas janelas, teria para aí 8,10m de comprido por 4,70m de largo, o que dá uma área bruta de 38m2. Se descontarmos a grossura das paredes, a área útil rondaria os 24m2.

[2] Aqui, confesso, estou a usar uma figura de estilo, coisas da literatura. Nem por volta de 1898 havia esquilos em Figueiró – estávamos então extintos - nem os esquilos vermelhos, os da minha espécie, vão lá muito por bolotas – deixamos isso para os porcos e para os cinzentos, os americanos, uns outros esquilos que nalguns países da Europa são já uma espécie invasora. Mas tudo o resto – o carvalho, o avô, o ter visto, o ter escrito – é tudo verdade.

[3] Se olharem bem para os desenhos, verão que a porta e as duas janelas do atelier seriam as mesmas do antigo «Casulo». Mas agora alindadas, com as ombreiras, peitoris e vergas marcadas em massa clara, contrastando com o revestimento almagre da fachada. O mesmo no tratamento dos cunhais, entablamento e soco, remetendo para a linguagem da nova ampliação, unificando todo o conjunto.
Note-se que o atelier continuou térreo, com o piso numa cota intermédia entre a da loja da nova construção (semi-enterrada pelo tardoz) e a do andar principal. Mas ganhou pé-direito - toda a altura do novo entablamento. 
A nova cobertura, ainda essencialmente de duas águas mas com uma maior inclinação, era cruzada no seu eixo transverso por um outro sistema também de duas águas. Esta outra cobertura transversal era telhada do lado da frente, terminando sobre um tímpano triangular de alvenaria na continuidade do plano da fachada, e onde se abria uma pequena lucarna rectangular. Do lado do tardoz era inteiramente vidrada, suportada por uma estrutura metálica, possibilitando assim a entrada a jorros da luz zenital. 
Os panos de tardoz e de empena mantinham-se cegos, tal como na antiga casinha.

(Pronto: lá tive eu de me armar em arquitecto… mas dos bons. Também, se quero um ninho bem feito lá no alto dum pinheiro, tenho de ser eu a fazê-lo. E são muitos anos disso...)



quinta-feira, 28 de abril de 2016

Salve, o 28 de Abril !

(ou pode ser lá mais p’ra Maio…)

Passa hoje mais um aniversário do nascimento de José Malhoa.
Em todos os lugares onde se segue o calendário gregoriano é hoje que se assinala a data do nascimento do Pintor, 28 de Abril de 1855.

Em todos? Bem, em todos não! Há um pequeno local meio ignorado (qual aldeia de Astérix) que teima em assinalar de modo diferente… ou, pelo menos, assim parece. E desde 1955, ano do 1º Centenário do Artista.
Na verdade, numa pequena rua, a antiga Travessa de S. Sebastião, rebaptizada posteriormente Rua da Nazaré, na parede da casa onde Malhoa terá nascido, até há pouco uma pensão-restaurante, nas Caldas da Rainha, está uma placa que reza singelamente: «1855 – 1955 | 15 de Maio | 1º Centenário». Assim, tal qual!

Acima desta placa, uma outra, de semelhante desenho mas orlada de azulejos, é mais explícita: «Casa onde nasceu | o Grande Pintor | José Malhôa | Homenagem dos Caldenses».

Perante isto, qualquer menos avisado que pensará? Que a data da placa do dito «Centenário» se refere ao nascimento do Artista - como parece evidente. Ou então que, por algum sortilégio, ali na Rua da Nazaré nas Caldas da Rainha, nos regeremos por um outro calendário… (assim, a modos como quando se assinala a Revolução de Outubro a 7 de Novembro)

A placa superior é mais antiga. Foi lá posta ainda em vida de Malhoa, e disso dá conta a Gazeta das Caldas [1]: «Nascido na R. da Nazaré, próximo da egreja de S. Sebastião, foi colocada ha anos, na casa onde nasceu, uma lapide com os seguintes dizeres: “Casa onde nasceu o Grande Pintôr José Malhôa. Homenagem dos caldenses”». E prossegue: «Muito antes d’isso já a Camara Municipal das Caldas, tinha dado o nome do ilustre pintor a uma das suas ruas, e ao largo que fica em frente daquela egreja. (…)».

Ficamos sem saber exactamente quanto significa «há anos» ou quando foi «muito antes d’isso». Mas não duvidamos que tal tenha sucedido, afinal, não muito antes desta mesma notícia, aí pelo período em que se promoveu a reaproximação entre Malhoa e a terra que o viu nascer. No fundo, entre «o pedido (…) dirigido a José Malhoa em Dezembro de 1924, para que pintasse uma tela para ser colocada na Sala das Sessões da Associação [Comercial e Industrial]» [2] e a oferta do quadro da «Rainha D. Leonor», 1926, «ao Povo das Caldas», em sessão realizada com a presença do Pintor em 12 de Julho de 1926 [3]. Algures por esta altura ou um pouco antes, a alteração toponímica das artérias e a placa localizando o berço malhoesco terão feito parte do justo reconhecimento e demais apaparicos da praxe…

Certo, certo, é que em 10 de Setembro de 1928, na Homenagem caldense sequencial à grande Homenagem nacional de Junho, Malhoa se deixa fotografar frente à casa onde nasceu. Na foto, publicada na Gazeta das Caldas [4], é visível a tal placa inicial, ainda sem a orla azulejar. 


O dito jornal refere: «Mestre Malhôa, sempre alegre e sorridente, vendo-se bem vincada na sua pessoa a alegria que sentia com esta sincera manifestação, dirigindo-se junto da casa onde nasceu, na Travessa da Nazareth [anteriormente também referida como Rua], onde numa das paredes existe uma lapide comemorativa do seu nascimento; e recordando o tempo da sua infancia, por ali andou de recordação em recordação, acolhido sempre com o maior dos carinhos e atenções

Portanto, até aqui, tudo normal.

Depois, não se sabe por que carga de água, em 1955, o ano do Centenário do nascimento de Malhoa, terá surdido a tal outra placa assinalando a suposta efeméride. Alguma alma atenta, veneradora e obrigada – como eram então todas as boas almas – e, além disso, aspergida de muita água-benta da pia baptismal da Senhora do Pópulo, assim determinou.
E a placa lá está proclamando aos passantes, não o suposto centenário do nascimento do Pintor, mas, caso raro e nunca visto, o centenário do seu baptismo. No fundo, o do seu nascimento para a Santa Madre Igreja Católica Apostólica e Romana.
Como diria o saudoso (e que saudades, Jesus!, por lá terá deixado…) José Maria Pedroto: «Assim, também está certo!».


Na verdade, foi a 15 de Maio de 1855 que o pequeno José foi baptizado na igreja da sua freguesia. A crónica da função é-nos dada pelo Revº. Prior, escrita logo na altura:


Mas nada disto é novidade! Como o não era em 1955.
Já antes, aqui mesmo, citámos quem o também escreveu. Como, em 1950, mais ou menos nos mesmos termos, já Montez o havia feito [5]. E tal como o próprio Malhoa o subescrevera no preâmbulo do seu testamento, firmado em Figueiró, em 1930:


Como, ainda, a Cédula Pessoal de Malhoa, emitida em 1924, o confirma. Apenas na parte civil, obviamente:



Assim, e está visto, é mesmo hoje, 28 de Abril, o dia de aniversário de Malhoa.
Por isso, como hoje ele é menino, e era bom um pândego, um folgazão, ei-lo aqui, a cavalo num pau! Em alegre brincadeira, todo contente! [6]


Quem sabe se zombando de toda esta gente que teima em levar a coisa demasiado a sério… e, volta e meia, lá asneira… 
Pois muitos Parabéns!

28 Abr. 2016. LBG

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[1]. Gazeta das Caldas, nº 126, de 17 Jun. 1928.
[2]. Doris Santos, in Liga dos Amigos do Museu José Malhoa. Como nasce um museu. Caldas da Rainha, 2013. p.28.
[3]. A crer na Gazeta das Caldas, nº 41, de 18 Jul. 1926. A escritura seria lavrada no dia seguinte, 13 Jul. 1926.
[4]. Gazeta das Caldas, nº 140, de 23 Set. 1928.
[5]. António Montez, in Malhoa Íntimo. Caldas da Rainha, 1950. p.20 (o nº de pág. refere-se à 2ª edição, 1983). No seu escrito Montez omite a data do nascimento, usando genericamente «na Primavera de 1855», o resto é mais ou menos referido.
[6]. A foto, inédita, tudo indica será anterior a 1910. E o gordinho, o que segura o guarda-sol, não faço a mínima ideia quem seja…

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

O António Carlos

e depois, podem chamar-lhe (ou a mim) 
o que quiserem…

          Novembro quase passado. Há muito que lá iam as vindimas. Já eram as broas mais o tempo das castanhas. Nos lagares moíam-se as derradeiras azeitonas.  Aquele ano de 1902 estava a chegar ao fim, e Malhoa ainda se demorava por Figueiró.
Pudera! o «Casulo» aumentado, finalmente com um atelier como devia ser, tudo ainda com as madeiras a cheirar a novo. Houve que aproveitar e trabalhar até mais não. E, para Malhoa, a “colheita” desse ano foi bem boa!
Estava quase «a retirar para Lisboa» levando consigo o produto da sua “safra”. Mas, antes, tinha que satisfazer a curiosidade de alguma daquela gente que andava mortinha por meter o bedelho no «chalet novo do sr. Malhoa» e não havia meio… Malhoa não podia passar mais um ano sem o fazer, ou “o cortar-lhe na casaca” seria ocupação certa nas longas noites do inverno figueiroense…
Assim, numa terça-feira, 25 de Novembro (ora cá está uma boa razão para se evocar a data) mas de 1902, lá se resolveu a convidar «as pessoas de suas relações» a visitarem o atelier «para verem os seus bonecos».
Por certo não estiveram os mais íntimos, os amigos da casa: o Pinto e o Simões há muito que haviam abalado para Tomar e Lisboa, logo que o tempo das aulas a isso os obrigara (embora o «Manel» ainda lá permanecesse em retrato); e o Quaresma, outro grande amigo que conhecia o «Casulo» de trás para a frente, pois havia sido o grande apoio na condução das obras, andava já atrapalhado, coitado, com os achaques que o iriam levar em breve “desta para melhor” - até o jornal falava disso. Terão ido outros e outras, não interessa agora quem. Parece que ficaram todos satisfeitos. E, quatro dias depois, a "vernissage campestre" foi notícia n’ O Figueiroense.

Podemos, agora e aqui, voltar a ler e ficar a saber tudo:





























         E, da mesma página do jornal, a nota sobre a doença do Quaresma. Com a particularidade, pelo menos para mim que sou um pedaço distraído, de ser a primeira vez que o vejo nomeado como presidente da Câmara Municipal. Que este Manuel Quaresma d’Oliveira, quer-me parecer um homem bom, é mais um desgraçado que não caiu em graça da historiografia figueiroense…




















O relato do escriba do jornal é saboroso. Através dele ficamos a saber um pouco mais sobre alguns dos quadros que Malhoa pintou nesse ano em Figueiró: «A procissão», o retrato d’«O António Carlos», «O phosphoro de enxofre», «A apanha das castanhas», a «Descamisada», «Cabeça d’estudo» (o tal retrato do Pinto de que já aqui falámos) e «Ultimos raios de sol». De alguns destes ficamos a conhecer os protagonistas – e de fonte bem mais segura que algumas inquinações posteriores, porque nos é dito em primeira mão e por quem os conheceu realmente. E, sem escusadas erudições, modestamente reconhecido - «que por incompetência nos abstemos» - ali temos também uma descrição sucinta e objectiva de algumas das pinturas de Malhoa.
Deixemos as outras para depois. Detenhamo-nos no intrigante «O António Carlos». 
           O «retrato de um velho d’aquelle nome» - chamava-se António Carlos, está visto - «de 88 annos» - uma provecta idade para esses tempos - «com chapeu na cabeça, capote aos hombros e mãos sobre um apoio» – só faltou dizer mesmo que o «apoio» era um grande guarda-sol azul - «tudo o mais natural que pôde imaginar-se»… Delicioso. Conciso. Sem lugar a dúvidas.

Fica, assim, apresentada a «Cabeça do António Carlos», 1903. Um grande Malhoa! Ei-lo:

José Malhoa. Cabeça do António Carlos / Cabeça de velho / O Regedor, 1903.
ost. 56x46. Casa dos Patudos - Museu de Alpiarça.





































E se dúvidas ainda houver, o próprio Malhoa se irá encarregar de no-las tirar. Prossigamos a nossa história.

Finalmente acabada a longuíssima saison figueiroense, Malhoa retira-se para Lisboa e traz os quadros. É natural que ainda trabalhe um e outro no atelier de Campo d’Ourique, os mande emoldurar, os vá assinando e datando. Por isso não estranhemos se, daquela meia dúzia vista em Novembro de 1902 no «Casulo», uns nos apareçam datados de 1902, outros de 1903 ou mesmo 1906… Alguns serão destinados à Exposição da Sociedade Nacional de Belas Artes, outros, os que Malhoa considera mesmo bons, são-no ao Salon de Paris. A bela Cabeça do António Carlos, 1903, tinha todas as razões para o sucesso, e Malhoa sabia-o.


A 30 de Março de 1903, Malhoa assenta no seu livro «Receita | Despeza» - o tal que era mesmo só para si: «Recebi do José Relvas por conta da cabeça do Antº Carlos, pintada em Figueiró dos Vinhos, em Novembro 1902, e agora exposta no “Salon” – 300$000».

Não sabia ainda Malhoa, como o sabemos agora nós, que a sua (e afinal já do Relvas) querida Cabeça do António Carlos havia de ficar às portas do Salon
    Como se confirma pelo Catalogue Illustré, apenas «La procession» (assim, e simplesmente!) - a bem conhecida A Procissão, 1903 - teve direito de acesso.

           Para Malhoa, foi um desgosto!


Como vimos, o quadro da Cabeça do António Carlos foi pago enquanto foi a França e voltou. Voltou e foi direito aos «Patudos», a casa de José Relvas, de cuja colecção ainda hoje faz parte.
Mudou logo de nome – sabe-se lá se por fazer alguma confusão ter a cabeça de um velho aldeão chamado António Carlos na casa afidalgada do filho e pai de outros dois Carlos, e não se querer "certas misturas"… E «Cabeça de velho» simplesmente ficou.

     Este postal ilustrado, enviado pelo Veríssimo ao Malhoa (e é daqueles que eu gosto, onde se tratam por tu, direito ao assunto, sem conversas de circunstância, das que dão aso a interpretações duvidosas a quem pouco jeito tem para ler as cartas embora leia muitas…Eu, um dia destes e a outro propósito,  mostro o resto). O postal, dizia, circulou em 1907, mas é natural que tenha sido editado uns anos antes, e como se vê já lhe chama «Cabeça de velho».

Depois, logo, logo em 1906, no Catálogo da Exposição do Rio de Janeiro, o António Carlos lá aparece, mas desta vez como «O regedor».
Mas não, a Cabeça do António Carlos não foi ao Brasil ! Apenas a sua fotografia, que é uma das que ilustram o catálogo. E tal pode enganar muito boa gente. A escritora brasileira Carmen Dolores foi a primeira – durante a vernissage deve ter estado mais interessada em “tomar um vinho”, “bater um papo gostoso”, e nem olhou os quadros como devia ser… chegada a casa, fez a crónica para O Paiz a olhar os bonecos do catálogo. O resultado até é surpreendente, fala de algumas das obras expostas e doutras que nem sequer pode ter visto, e escreveu sobre a Cabeça do António Carlos 
«Vejam em seguida outro estudo de velho, e que lindo velho também, Regedor , de ásperas sobrancelhas revoltas cujos fios duros como piaçavas tem todavia a sua utilidade: velam um pouco a esperteza aguda dos olhinhos matreiros, de emboscada atrás dessas sarças brancas. | No alto das faces enrugadas, sente-se o belo tom sadio de uma maçã camoesa. As mãos são um prodígio de realidade, com as suas juntas encarquilhadas, toda a rede de grossas veias em relevo sob a pele franzida e lismada.»[1]

Mais tarde, na grande Exposição de Homenagem a José Malhoa, 1928, voltou «O Regedor». Desta vez não só no catálogo, ilustrado com aquela foto do postal ilustrado, mas de tela e moldura dependuradas na parede e tudo.
Terá, alguma vez, o nosso amigo António Carlos sido «Regedor» lá da freguesia? fosse ela qual fosse? ou é como o outro, que é «Juiz» sem nunca o ter sido? Eu disso não sei, e duvido que alguém verdadeiramente o saiba…

Mas chamem-lhe «O Regedor», «Cabeça de Velho», chamem-lhe o que quiserem, aqui o velho António Carlos, menino de mais de duzentos anos, não se deve importar grandemente com isso…

Agora escrever, e com o ar mais sério deste mundo, «o retratado é Joaquim Gabriel, do lugar da Lavandeira» é que já é o …….! com Vossa licença, era mas era a prima!

E quem copia a asneira | fica também ali à beira» – ditado popular que eu inventei há um bocadinho).

Recorte de uma  fotografia do Museu e Centro de Artes de Figueiró dos Vinhos.



           
          Entretanto, por estes dias e até 21 de Maio de 2016, a Cabeça do António Carlos está de novo em Figueiró dos Vinhos. E muito bem acompanhada!

Só a falar francês, daquele do Salon, encontramos logo dois: L’homme au capuchon / O homem do gorro / Retrato do fotógrafo António Novais (Salon, 1901) e Portrait de Mme C…… / Retrato da Ex.mª Sr.ª P. da C. (Teresa Pereira da Costa) (Salon, 1902). Esta última já havia hablado español, na verdade no ano anterior e com assinalado sucesso (Madrid, 1901). A juntar a estes dois, a Cabeça do António Carlos / Cabeça de Velho / O Regedor que, como foi e veio de Paris sem entrar no Salon (1903) e é campónio, acaba por ser apenas «avec». Não obstante, nada fica a dever aos precedentes.
De um pouco conhecido mas de muito boa qualidade Retrato do Senhor D. Luiz I, 1884, a carvão, ao pastel de O Ventura, 1933; do Retrato de Dona Júlia Malhoa, 1883, à serigaita atrevida de A Provocante, 1914; o Museu e Centro de Artes de Figueiró dos Vinhos exibe por esta altura um excelente conjunto de retratos da mão de Malhoa. Do melhor que se pode reunir. 
           É uma imperdível mostra. Merece a vossa visita.
           O António Carlos fica à espera, com «as mãos sobre um apoio»...


16 Dez. 2015. LBG

____________________________
[1] Carmen Dolores. Impressão de luz. in O Paiz, Rio de Janeiro, 26 Jul. 1906, p.3. 
Pode ler a transcrição integral do artigo, bem como outros do referido periódico sobre a Exposição de Malhoa no Rio, 1906, aqui.

...e só mais uma coisinha

Vimos já, através de duas boas fontes - O Figueiroense e o próprio Malhoa - que, inequivocamente, o modelo dCabeça do António Carlos / Cabeça de Velho / O Regedor foi «o Antonio Carlos (...) um velho d’aquelle nome, de 88 annoscom chapeu na cabeça, capote aos hombros e mãos sobre um apoio». 
        Sem tanta certeza, mas com grande probabilidade de ser também verdade, sabemos agora, segundo o tabelião da terra e de "papel passado", que o dito António Carlos era «solteiro, maior, proprietário... morador nesta villa de Figueiró dos Vinhos» e que, pelo menos por duas ocasiões, em 1892 e 1899, compareceu perante o referido tabelião para efectivar a venda de «terras de semeadura» de que era proprietário, situadas em «São Pedro, nos suburbios desta villa». E, pelo original dos assentos, ficamos a saber que era capaz de assinar o nome.
Fica, pois, o autógrafo do nosso amigo António Carlos: 



           O Zilo Alves da Silva, um outro a quem Malhoa também fará o retrato (hoje no acervo do MJM, Caldas da Rainha), assina «A rogo» do comprador. E António d'Azevedo Lopes Serra, o «Serra da farmácia», mais um amigo figueiroense do Pintor, assina como testemunha.
           Isto é coisa que interessa pouco, claro! Mas tem piada. E fica... que não estamos aqui para inventar nada.

23 Jan. 2017. LBG

Breve retrato de Olavo Bilac

num crayon de António Carneiro



Olavo Bilac (Rio de Janeiro, 16 Dez. 1865 - 28 Dez. 1918) foi um grande e respeitável cultor da Língua Portuguesa. Poeta, contista, cronista e jornalista. «A Pátria não é a raça, não é o meio, não é o conjunto dos aparelhos econômicos e políticos: é o idioma criado ou herdado pelo povo» - teria escrito, talvez ainda antes do outro que todos conhecemos…
Membro fundador da Academia Brasileira de Letras, colaborou em diversos jornais e revistas, entre eles o Diário de Notícias e a Gazeta de Notícias, do Rio. E também nos sucessivos periódicos luso-brasileiros do tempo: A Imprensa (1885-1891), A Leitura (1894-1896), Branco e Negro (1896-1898), Brasil-Portugal (1899-1914) e Atlântida (1915-1920).
 Activo republicano e nacionalista, é o autor da letra do Hino à Bandeira brasileira. Foi inspector de instrução da escola pública e membro do Conselho Superior do Departamento Federal; foi também secretário do Congresso Pan-Americano realizado em Buenos Aires. Entre uma multifacetada intervenção cívica e literária, granjeou o reconhecimento geral e a simpatia popular.
Em Lisboa, em sua homenagem, o jardim frente ao Palácio das Necessidades tomou o nome de «Jardim Olavo Bilac».

Sobre Bilac, as suas relações e viagens com e a Portugal vale muito a pena ler um interessante texto, intitulado «Bilac em Lisboa» [1], acessível neste PDF.
            Será, por certo, da sua última das viagens a Lisboa, a realizada em 1916, este retrato de Olavo Bilac, um belo desenho da autoria de António Carneiro (Amarante, 16 Set. 1872 - Porto, 31 Mar. 1930).

            Recordemos que já aqui e aqui vimos algumas fotos onde Olavo Bilac está presente. São fotografias tiradas por ocasião da estada de Malhoa no Rio, em 1906, durante a visita social ao Sumaré de 29 de Julho. Oferecidas e legendadas pelo seu autor, Luiz Canêdo, foram trazidas do Rio e bem guardadas por Malhoa. Publicam-se de novo agora. 
               Cento e cinquenta anos após o nascimento de Olavo Bilac.


«Este bloc sinthetiza a Poesia e a Arte - nas suas mais bellas e extraordinarias creações». 
«29 Julho 1906 - Sumaré».                                                      «Luiz Canêdo».
Olavo Bilac será o primeiro da esquerda, seguem-se Joaquim e José Malhoa, Rodolfo Bernardelli, e Gonzaga Duque.


«Lembrança do almoço que o grande industrial Casimiro Alberto da Costa, 
offereceu ao distincto pintor José Malhôa no alto do Sumaré, em 29 de Julho de 1906»  (fotografia: Luiz Canêdo).
Dos cinco sentados na segunda fila, Olavo Bilac será o último mais à direita.























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16 Dez. 2015. LBG.


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[1] Dimas, Antonio. «Bilac em Lisboa», in Via Atlântica, nº2, pp.174-189. USP-Universidade de São Paulo, 1999.


sábado, 17 de outubro de 2015

O Ventura

ou 
o modelo e o “curador”

       Fica, sem muitos comentários, um artigo publicado em A Regeneração, jornal de Figueiró dos Vinhos, nº406, 11 de Julho de 1936, e assinado por um tal «Sobe e Desce». Trata-se de uma reportagem sobre o «Museu Regional do Ventura». 
       O Ventura foi um personagem de se lhe tirar o chapéu! um dos derradeiros modelos figueiroenses de Malhoa. Obviamente já o não conheci, mas tive ainda relatos desta sua "obra memorável". Relatos que, no essencial e do que recordo, coincidem ao escrito no artigo, quer quanto ao "acervo" do seu «Museu» quer quanto às patuscas características deste fantástico e bom homem.
            Mas, só lendo, para ficarmos todos a conhecê-lo melhor.
Como se percebe, o escrito é posterior ao desaparecimento de Malhoa, falecido a 26 de Outubro de 1933.
Começamos por uma foto do entrevistado retirada do site da Biblioteca Municipal Simões d’Almeida (tio) e, com quase toda a certeza, posterior àquela data. É uma imagem que existe também reproduzida em postal ilustrado, editado ao tempo pela comissão municipal do turismo.


     Para o fim «O Ventura», 1933, tal como foi retratado por Malhoa. Num dos últimos trabalhos do Pintor, um pastel sobre papel, 33x25, actualmente no acervo do Museu José Malhoa, nas Caldas da Rainha. 
Faria pendant com um outro, igualmente no MJM, deixado inacabado à morte do Artista, designado por «Desalento», e retratando a mulher do Ventura
Os tracinhos na margem superior do papel indicarão o número das sessões de trabalho. É um registo comum em vários trabalhos de Malhoa, talvez para calcular a quantia a pagar ao modelo...


































Lisboa, 17 Out. 2015. LBG.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

«O Fado» e os «bilontras»

segundo Aquilino Ribeiro



            Sem mais conversa, que aqui não faz falta alguma, fica um texto do grande Aquilino Ribeiro, publicado em Julho de 1917 [in Atlântida, nº21, 15 Jul. 1917, pp.789, 790], a propósito da controvérsia originada pela compra, pela Câmara Municipal de Lisboa, do quadro «O Fado», 1910, de Malhoa.

            Vale a pena ler. Mas devagar, que a prosa de Aquilino dá gosto.










 E pronto! É tudo por hoje.


Lisboa, 5 Out. 2015
LBG