quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Esperança, saudade e o D. Sebastião…



Poderá parecer algo pessoano, pelo menos de algum dos seus heterónimos; ou algum discurso serôdio, dos de convencer a populaça que assim é qu’é caminho, e aos quais já ninguém liga nenhuma… - mas não!
Trata-se de dois títulos de José Simões d’Almeida júnior (1844-1926) - um por agora exposto em Figueiró dos Vinhos, terra natal do Escultor, o outro talvez uma das suas mais celebradas Obras.


D. Sebastião, 1877, ou imprópria mas “eruditamente” também chamado «D. Sebastião lendo Os Lusíadas», é uma escultura de vulto pleno, em mármore, com 1,36 m de altura, em depósito no Museu do Chiado, agora e ainda bem, mostrada na sua exposição permanente.
Esta versão em mármore de Carrara fez parte das colecções Reais [1], integrando por isso o acervo do Palácio da Ajuda. A passagem do gesso original ao mármore foi encomenda do rei D. Luís a Simões d’Almeida, após o êxito da sua apresentação na 10ª Exposição da Sociedade Promotora das Bellas Artes em Portugal, 1874, e que valeu ao autor a medalha de prata, dois anos após o regresso de Simões dos seus estudos genoveses e romanos.

Em 1878, a nova versão em mármore, já pertença do Rei, estará presente na Exposição Universal de Paris. E disso nos dá conta O Occidente [2], dizendo-nos «é uma obra de arte notabilissima, capaz de figurar honrosamente em todos os certamens artisticos do mundo civilisado», mas ilustrando-a através desta gravura de Caetano Alberto que regista a versão original em gesso e não o mármore que viajou até Paris. Também nesta mostra Simões será premiado, agora com uma terceira medalha, provavelmente com outra Obra [3].

Como não é difícil de perceber, o gesso, o original de D. Sebastião, em tempos no acervo da Academia Real das Bellas Artes e ao que ouvi dizer agora em mau estado, terá de ser datado cerca de três anos antes, o ano da sua primeira mostra.
E sobre esse D. Sebastião, c.1874 – o original – poderemos constatar, consultando o catálogo da 10ª Exposição da Promotora, que a velha estória de «… lendo Os Lusíadas» é uma real treta! Mais uma daquelas alarvidades que alguém diz ou escreve, do alto de pretensa sabedoria, todo contentinho, neste caso atacado talvez de camoenite aguda, e logo é aplaudida e repetida por uns tantos espíritos mais crédulos… E a coisa fica.

Ora, o nosso amigo Simões, que não era burro e para realizar tal obra se deve ter bem documentado [4], sabia o que fazia. Sabia a diferença entre uma «Cruz de Avis» e uma Cruz de Cristo, sabia que insígnia o rei-menino deveria ostentar enquanto Rei e Grão-Mestre da respectiva Ordem, e sabia que livro poderia colocar na mão do ainda muito jovem monarca. Sabia isto tudo - coisa que muitos, pelo visto, não souberam ou fizeram por esquecer.



Por saber e saber bem, Simões d’Almeida modela – e depois cinzela – o menino Rei com as insígnias da Ordem de Cristo, tendo na mão um exemplar da História de Portugal. E, tal como o fez, assim o escreveu, para todos sabermos: «D. Sebastião lendo na História de Portugal os feitos heroicos dos seus antepassados, pensa na conquista d’Africa». Assim, simples mas rigoroso, como sempre se pôde ler no respectivo catálogo. A formulação e a ideia até podem ter algum espírito lusíada ou camoniano - mas não é a mesma coisa!

Porque, sejamos sérios, El-rei D. Sebastião (1554-1578), enquanto menino ou jovem adolescente, com um exemplar de Os Lusíadas na mão, é uma impossibilidade espácio-temporal. Por muito que se queira ou seja conveniente, é daquelas coisas só possíveis em filmes de ficção com carros esquisitos que ficaram para a história apenas por isso mesmo [5].

Embora alguns digam que Luís de Camões possa ter finalizado o poema épico cerca de 1556 (teria D. Sebastião dois anos), o certo é que o Vate se manteria pelos Orientes ainda muitos anos – da Índia a Macau e à costa de África, com naufrágios pelo meio e dramáticos salvamentos do precioso manuscrito - sem fax, mail ou ipad… Só em 1570 (teria o rei dezasseis anos), e aqui parece haver consenso, o Poeta maior volta à pátria e desembarca em Cascais, sempre agarrado à sua querida obra. Depois disso, dar-se-á o episódio da leitura do poema ao rei [6], alegadamente em Sintra, e o empenho do monarca na publicação da Obra. A primeira edição de Os Lusíadas verá a luz do dia no ano de 1572 (teria o rei já dezoito anos).

Estamos, portanto, conversados – «D. Sebastião lendo Os Lusíadas», ainda de “bibe e calção”, nem por grande favor… só mesmo «cantando e rindo»! E como o próprio autor teve o cuidado de nos avisar.



Esperança e saudade, 1887, é para aqui chamada porque é também uma belíssima escultura e porque tem estória para contar.

A primeira referência que se encontra a esta obra é no catálogo da 14ª Exposição da Sociedade Promotora das Bellas Artes em Portugal, 1887 [7], onde se pode ler: «340 – Esperança e saudade – busto em mármore | Pertencente ao sr. W. J. Garland Junior.» [8]. Por isto, o gesso original deverá ser um pouco anterior. Acontece que o gesso conhecido não estará datado e ficamos sem saber [9].


    Que se conheça, de Esperança e saudade existe um gesso no acervo do Museu José Malhoa – o tal por estes dias exposto no museu de Figueiró dos Vinhos e que pode ou não ser o original – e um mármore – muito provavelmente o que foi do citado sr. Garland – actualmente na posse da Sociedade Nacional de Belas Artes [10].








O mármore é magnífico, de uma serenidade ímpar. Assente sobre uma base de fundo circular, em brecha polida de tons castanhos, encimada por um curto fuste octogonal que recebe a base do busto com semelhante geometria, forma um belo conjunto. Na base de mármore do busto, sob a direita do observador, a assinatura e a data - «Simões fez. 1887.» - coincidente com a 14ª Exposição da SPBA.

Mas voltemos ao gesso.



Pois parece ser do gesso – deste ou de outro – uma interessante fotografia tipo postal que Simões d’Almeida ofertou a Malhoa - «Ao Ex.mº amigo, o distincto pintor J.e Vital Branco Malhoa off.ce José Simões d’Almeida J.or» - lê-se na dedicatória. Sem data, não sabemos exactamente quando a oferta foi feita, mas tudo indica pelos meados da década de oitenta.

 Foi por esta altura, recordemos, que os antigos Mestre e discípulo(s) estreitam relações de amizade – o convite para a primeira ida até Figueiró dos Vinhos, a JMalhoa e MHPinto, em 1883; o quadro de Malhoa Atelier de esculptura, hoje no MASP intitulado O atelier do estatuário Simões d'Almeida, 1883; a galvanoplastia de Simões retratando o perfil de Malhoa, no acervo do MJM, pomposamente apelidada Mestre Malhoa, 1883, («Mestre»?! em 1883?! – há reverências que são como «as cartas de amor» - ridículas) - eis algumas das marcas desse estreitar de amizades [11]. A oferta da foto de Esperança e saudade deverá ter sido mais uma - mais ano, menos ano, por essa mesma altura. E, pelas marcas dos pioneses que a devem ter mantido presa nalguma parede do atelier, bastante estimada por Malhoa…
A foto é bastante curiosa. Para lá de nos revelar o gesso ainda imaculado – a patine bronzeada que agora apresenta, no caso de se tratar da mesma peça, foi tratamento muito posterior – mostra-nos também as íris dos olhos escurecidas, acentuando o olhar ausente e meio vesgo, note-se, da jovem rapariga. Talvez o maior encanto da Obra.


Ao certo, pouco mais se sabe.
Mas o facto deste gesso, agora mostrado em Figueiró, haver sido oferta de D. Mª José Malhoa e Silva (ou de alguém por ela, ou de ela por outrem) ao Museu das Caldas, pouco depois da morte do irmão [12], parece indicar que, para além da estimada foto, Malhoa também teria consigo o gesso de Esperança e saudade. Se o mesmo da fotografia, se original ou cópia, desde quando e em que circunstâncias – são perguntas para as quais não há resposta.

Mas sinal que Malhoa muito apreciaria esta bela Obra do seu antigo Mestre Simões d’Almeida. E com toda a razão.




1 Ago. 2013. LBG




[1] Querendo saber mais sobre este assunto, ver: XAVIER, Hugo - Galeria de Pintura no Real Paço da Ajuda. Lisboa: IN-CM, 2013.

[2] O Occidente, 1º ano, nº 15, 1 Ago.1878, p.116, 118 e 119.

[3] Em Paris, 1878, estiveram presentes Puberdade e D. Sebastião e J. Simões d’Almeida recebeu uma 3ª medalha, isto é certo. Agora, a qual das obras o prémio foi concedido é que já não há absoluta certeza, embora tudo indique que foi a Puberdade.
Logo no ano seguinte, O Occidente (nº30, 15 Mar.1879, p.41 e 46) noticia, com gravura na primeira página, que Puberdade «figurou na exposição universal de Paris, aonde foi premiada com a medalha de bronze». Sete anos depois, a mesma publicação (nº266, 11 Mai.1886, p.107), numa nota biográfica a propósito do Monumento aos Restauradores, confirma-o «A Poberdade, estatueta em gesso, premiada na exposição de Paris de 1878».
Mas vinte anos depois, o mesmo Caetano Alberto que terá escrito os artigos anteriores, de novo em O Occidente (nº 948, 30 Abr.1905, p.91) escreve de forma dúbia – não diz que Puberdade foi premiada, embora a cite logo depois de referir o prémio, e mais adiante diz de D. Sebastião «tambem premiada na exposição de Paris de 1878»… Mas vamos acreditar nas notícias mais frescas.

[4] A Escultura e Pintura de História eram encaradas com a maior seriedade e rigor – deveriam ser, para além de perfeitas Obras de Arte, uma Lição de História. Para tal, o estudo e a documentação quanto à época, trajes, personalidades, acontecimentos do episódio a registar ou personagem a retratar, eram normalmente exaustivos.

  Veja-se, no caso de JMalhoa, a completa Memória Descritiva impressa que acompanhou a concurso a Partida de Vasco da Gama para a Índia, 1888, (valeu o primeiro prémio). Veja-se o texto, citando Pinheiro Chagas, no catálogo do Grémio Artístico (1892), justificativo do Último Interrogatório do Marquês de Pombal, 1891, (de nada serviu, antes pelo contrário…). Entenda-se que Camões, 1907, o do Museu Militar, é como é (independentemente de quem alegadamente haja ou não servido de modelo) porque, entre outras coisas, Malhoa deverá ter lido um texto de 1550 que o refere assim: «Luís de Camões, filho de Simão Vaz e Ana de Sá, moradores em Lisboa, na Mouraria; escudeiro, de 25 anos, barbirruivo…». Veja-se, por fim e numa obra mais tardia, Raínha Dona Leonor, 1926, um apontamento colorido a guache feito por consulta do «Livro dos brazões | Torre do Tombo», o estudo do brasão que encima o trono da «molher» de D. João II. (Curiosamente, a versão final acabou bem diferente do estudo e do que parece ser o verdadeiro brasão da Raínha – Malhoa, que tinha na mão a chave certa, não se sabe porquê, resolveu pespegar-lhe com a Cruz de Avis e fez asneira.)

[5] DeLorean DMC-12, sobre o qual pode ver mais aqui.

[6] Este episódio foi fixado por variadíssimos artistas. Aqui numa litografia, «Brinde da Empreza do jornal “O Seculo” aos assignantes do “Romance d’uma Rapariga Pobre”», sob desenho de António Ramalho (1859-1916) - Camões lendo os Lusiadas a D. Sebastião - disponível na BNP. A. Ramalho júnior - algumas vezes acusado de «preguiçoso», nunca de «burro» - mostra-nos Camões declamando o poema épico , ainda em manuscrito, com a serra de Sintra ao fundo, a um jovem mas já meio barbado monarca… Como reza a História.

[7] O catálogo dá-nos informação preciosa quanto aos galardões de Simões até aquela altura: «SIMÕES D’ALMEIDA JUNIOR (José) | Medalhas de 2ª classe da Sociedade Promotora das Bellas-Artes em 1866 [?], 1872 [O orphão] e 1874 [D. Sebastião]. Medalha de 3ª classe na exposição Universal de Pariz 1878 [Puberdade - ver nota 3].»

[8] No mesmo catálogo, ainda nas obras de Simões d’Almeida, podemos ler: «347 - Retratos da familia Garland – seis medalhões reproduzidos em galvanoplastica por Francisco Baptista dos Santos.» Sinal que a venda do mármore de Esperança e saudade e a modelação dos seis originais em gesso para a feitura das galvanoplastias foi negócio por atacado com o sr. Garland.

[9] Nestas coisas das esculturas, nunca se sabe muito bem se «primeiro foi o ovo ou a galinha»… Normalmente - e esqueçamos aqui esboços, estudos e maquetas – o gesso ou o barro antecedem sempre a pedra ou o metal. Mas nada nos diz que não haja novos gessos (ou barros) posteriores, e em mais que uma reprodução. Por outo lado, se a obra foi datada no modelo original, assim aparece na reprodução por fundição (às vezes acompanhada discretamente de nova data e marca do fundidor); já na passagem à pedra, se feita sob as mãos ou direcção do autor, este assina e data por norma no final do esculpir. (Embora também possa ser de outro modo qualquer…)

[10] Assinalado por Cristina Azevedo Tavares in A Escola Naturalista de Figueiró: Exposição de Escultura e Pintura. Figueiró dos Vinhos: Câmara Municipal. 2004.

[11] Assunto já referido por Matilde Tomaz do Couto in A Escola Naturalista de Figueiró: Exposição de Escultura e Pintura. Figueiró dos Vinhos: Câmara Municipal. 2004.
Referido também por Luís Borges da Gama in A Duas Mãos | Desenhos Inéditos: Manuel Henrique Pinto (1853-1912) e José Malhoa (1855-1933): Pelo Centenário da morte de Manuel Henrique Pinto. Figueiró do Vinhos: Clube Figueiroense: Município de FV. 2012. p.15.
Ou ainda aqui.

[12] Ver: SANTOS, Doris; COUTO, Matilde Tomaz do - Liga dos Amigos do Museu José Malhoa: Como nasce um museu. Caldas da Raínha: Liga dos Amigos do Museu José Malhoa. 2013.

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