Poderá parecer algo pessoano, pelo menos de
algum dos seus heterónimos; ou algum discurso serôdio, dos de convencer a populaça
que assim é qu’é caminho, e aos quais já ninguém liga nenhuma… - mas não!
Trata-se de dois títulos de José Simões d’Almeida júnior (1844-1926)
- um por agora exposto em Figueiró dos Vinhos, terra natal do Escultor, o outro
talvez uma das suas mais celebradas Obras.
D. Sebastião, 1877, ou imprópria mas
“eruditamente” também chamado «D.
Sebastião lendo Os Lusíadas», é uma escultura de vulto pleno, em mármore,
com 1,36 m de altura, em depósito no Museu do Chiado, agora e ainda bem, mostrada
na sua exposição permanente.
Esta versão em mármore de Carrara fez parte
das colecções Reais [1], integrando por isso o
acervo do Palácio da Ajuda. A passagem do gesso original ao mármore foi
encomenda do rei D. Luís a Simões d’Almeida, após o êxito da sua apresentação
na 10ª Exposição da Sociedade Promotora
das Bellas Artes em Portugal, 1874, e que valeu ao autor a medalha de
prata, dois anos após o regresso de Simões dos seus estudos genoveses e romanos.
Em 1878, a nova versão em mármore, já pertença
do Rei, estará presente na Exposição Universal de Paris. E disso nos dá conta O
Occidente [2],
dizendo-nos «é uma obra de arte notabilissima, capaz de figurar honrosamente em
todos os certamens artisticos do mundo civilisado», mas ilustrando-a através
desta gravura de Caetano Alberto que regista a versão original em gesso e não o
mármore que viajou até Paris. Também nesta mostra Simões será premiado, agora
com uma terceira medalha, provavelmente com outra Obra [3].
Como não é difícil de perceber, o gesso, o
original de D. Sebastião, em tempos
no acervo da Academia Real das Bellas
Artes e ao que ouvi dizer agora em mau estado, terá de ser datado cerca de três
anos antes, o ano da sua primeira mostra.
E sobre esse D. Sebastião, c.1874 – o original – poderemos constatar,
consultando o catálogo da 10ª Exposição da Promotora, que a velha estória de «…
lendo Os Lusíadas» é uma real treta!
Mais uma daquelas alarvidades que alguém diz ou escreve, do alto de pretensa
sabedoria, todo contentinho, neste caso atacado talvez de camoenite aguda, e logo é aplaudida e repetida por uns tantos
espíritos mais crédulos… E a coisa fica.
Ora, o nosso amigo Simões, que não era burro
e para realizar tal obra se deve ter bem documentado [4], sabia o que fazia. Sabia
a diferença entre uma «Cruz de Avis» e uma Cruz de Cristo, sabia que insígnia o
rei-menino deveria ostentar enquanto Rei e Grão-Mestre da respectiva Ordem, e
sabia que livro poderia colocar na mão do ainda muito jovem monarca. Sabia isto
tudo - coisa que muitos, pelo visto, não souberam ou fizeram por esquecer.
Por saber e saber bem, Simões d’Almeida
modela – e depois cinzela – o menino Rei com as insígnias da Ordem de Cristo,
tendo na mão um exemplar da História de Portugal. E, tal como o fez, assim o escreveu,
para todos sabermos: «D. Sebastião lendo
na História de Portugal os feitos
heroicos dos seus antepassados, pensa na conquista d’Africa». Assim, simples
mas rigoroso, como sempre se pôde ler no respectivo catálogo. A formulação e a
ideia até podem ter algum espírito lusíada
ou camoniano - mas não é a mesma
coisa!
Porque, sejamos sérios, El-rei D. Sebastião
(1554-1578), enquanto menino ou jovem adolescente, com um exemplar de Os Lusíadas na mão, é uma
impossibilidade espácio-temporal. Por muito que se queira ou seja conveniente,
é daquelas coisas só possíveis em filmes de ficção com carros esquisitos que
ficaram para a história apenas por isso mesmo [5].
Estamos, portanto, conversados – «D.
Sebastião lendo Os Lusíadas», ainda de
“bibe e calção”, nem por grande favor… só mesmo «cantando e rindo»! E como o
próprio autor teve o cuidado de nos avisar.
Esperança e saudade, 1887, é para aqui chamada
porque é também uma belíssima escultura e porque tem estória para contar.
A primeira referência que se encontra a esta
obra é no catálogo da 14ª Exposição da Sociedade
Promotora das Bellas Artes em Portugal, 1887 [7], onde se pode ler: «340 – Esperança e saudade – busto em mármore |
Pertencente ao sr. W. J. Garland Junior.» [8]. Por isto, o gesso
original deverá ser um pouco anterior. Acontece que o gesso conhecido não estará
datado e ficamos sem saber [9].
Que se conheça, de Esperança e saudade existe um gesso no acervo do Museu José Malhoa – o tal por estes dias exposto no museu de Figueiró dos Vinhos e que pode ou não ser o original – e um mármore – muito provavelmente o que foi do citado sr. Garland – actualmente na posse da Sociedade Nacional de Belas Artes [10].
O mármore é magnífico, de uma serenidade
ímpar. Assente sobre uma base de fundo circular, em brecha polida de tons
castanhos, encimada por um curto fuste octogonal que recebe a base do busto com
semelhante geometria, forma um belo conjunto. Na base de mármore do busto, sob
a direita do observador, a assinatura e a data - «Simões fez. 1887.» -
coincidente com a 14ª Exposição da SPBA.
Mas voltemos ao gesso.
Pois parece ser do gesso – deste ou de outro
– uma interessante fotografia tipo postal que Simões d’Almeida ofertou a Malhoa
- «Ao Ex.mº amigo, o distincto pintor J.e Vital Branco Malhoa off.ce José
Simões d’Almeida J.or» - lê-se na dedicatória. Sem data, não sabemos
exactamente quando a oferta foi feita, mas tudo indica pelos meados da década
de oitenta.
Foi
por esta altura, recordemos, que os antigos Mestre e discípulo(s) estreitam
relações de amizade – o convite para a primeira ida até Figueiró dos Vinhos, a JMalhoa
e MHPinto, em 1883; o quadro de Malhoa Atelier
de esculptura, hoje no MASP intitulado O
atelier do estatuário Simões d'Almeida, 1883; a galvanoplastia de Simões retratando
o perfil de Malhoa, no acervo do MJM, pomposamente apelidada Mestre Malhoa, 1883, («Mestre»?! em
1883?! – há reverências que são como «as cartas de amor» - ridículas) - eis algumas das marcas desse estreitar de amizades [11]. A oferta da foto de Esperança e saudade deverá ter sido mais
uma - mais ano, menos ano, por essa mesma altura. E, pelas marcas dos pioneses
que a devem ter mantido presa nalguma parede do atelier, bastante estimada por
Malhoa…
A foto é bastante curiosa. Para lá de nos
revelar o gesso ainda imaculado – a patine bronzeada que agora apresenta, no
caso de se tratar da mesma peça, foi tratamento muito posterior – mostra-nos
também as íris dos olhos escurecidas, acentuando o olhar ausente e meio vesgo, note-se,
da jovem rapariga. Talvez o maior encanto da Obra.
Ao certo, pouco mais se sabe.
Mas o facto deste gesso, agora mostrado em
Figueiró, haver sido oferta de D. Mª José Malhoa e Silva (ou de alguém por ela,
ou de ela por outrem) ao Museu das Caldas, pouco depois da morte do irmão [12], parece indicar que, para
além da estimada foto, Malhoa também teria consigo o gesso de Esperança e saudade. Se o mesmo da
fotografia, se original ou cópia, desde quando e em que circunstâncias – são
perguntas para as quais não há resposta.
Mas sinal que Malhoa muito apreciaria esta
bela Obra do seu antigo Mestre Simões d’Almeida. E com toda a razão.
1 Ago. 2013. LBG
[1] Querendo saber mais sobre este
assunto, ver: XAVIER, Hugo - Galeria de
Pintura no Real Paço da Ajuda. Lisboa: IN-CM, 2013.
[2] O
Occidente, 1º ano, nº 15, 1 Ago.1878, p.116, 118 e 119.
[3] Em Paris, 1878, estiveram presentes Puberdade e D. Sebastião e J. Simões d’Almeida recebeu uma 3ª medalha, isto é
certo. Agora, a qual das obras o prémio foi concedido é que já não há absoluta certeza, embora tudo indique que foi a Puberdade.
Logo no ano seguinte, O Occidente (nº30,
15 Mar.1879, p.41 e 46) noticia, com gravura na primeira página, que Puberdade «figurou na exposição
universal de Paris, aonde foi premiada com a medalha de bronze». Sete anos
depois, a mesma publicação (nº266, 11 Mai.1886, p.107), numa nota biográfica a
propósito do Monumento aos Restauradores, confirma-o «A Poberdade, estatueta em gesso, premiada na exposição de Paris de
1878».
Mas vinte anos depois, o mesmo Caetano
Alberto que terá escrito os artigos anteriores, de novo em O Occidente (nº 948, 30 Abr.1905, p.91) escreve de forma dúbia –
não diz que Puberdade foi premiada,
embora a cite logo depois de referir o prémio, e mais adiante diz de D. Sebastião «tambem premiada na
exposição de Paris de 1878»… Mas vamos acreditar nas notícias mais frescas.
[4] A Escultura
e Pintura de História eram encaradas com a maior seriedade e rigor –
deveriam ser, para além de perfeitas Obras de Arte, uma Lição de História. Para
tal, o estudo e a documentação quanto à época, trajes, personalidades, acontecimentos
do episódio a registar ou personagem a retratar, eram normalmente exaustivos.
Veja-se, no caso de JMalhoa, a
completa Memória Descritiva impressa que acompanhou a concurso a Partida de Vasco da Gama para a Índia,
1888, (valeu o primeiro prémio). Veja-se o texto, citando Pinheiro Chagas, no
catálogo do Grémio Artístico (1892), justificativo do Último Interrogatório do Marquês de Pombal, 1891, (de nada serviu,
antes pelo contrário…). Entenda-se que Camões,
1907, o do Museu Militar, é como é (independentemente de quem alegadamente haja
ou não servido de modelo) porque, entre outras coisas, Malhoa deverá ter lido
um texto de 1550 que o refere assim: «Luís
de Camões, filho de Simão Vaz e Ana de Sá, moradores em Lisboa, na Mouraria;
escudeiro, de 25 anos, barbirruivo…». Veja-se, por fim e numa obra mais
tardia, Raínha Dona Leonor, 1926, um apontamento colorido a guache feito por consulta
do «Livro dos brazões | Torre do Tombo», o estudo do brasão que encima o trono da
«molher» de D. João II. (Curiosamente, a versão final acabou bem diferente do
estudo e do que parece ser o verdadeiro brasão da Raínha – Malhoa, que tinha na
mão a chave certa, não se sabe porquê, resolveu pespegar-lhe com a Cruz de Avis
e fez asneira.)
[6] Este episódio foi fixado por
variadíssimos artistas. Aqui numa litografia, «Brinde da Empreza do jornal “O
Seculo” aos assignantes do “Romance d’uma Rapariga Pobre”», sob desenho de
António Ramalho (1859-1916) - Camões
lendo os Lusiadas a D. Sebastião - disponível na BNP. A. Ramalho júnior -
algumas vezes acusado de «preguiçoso», nunca de «burro» - mostra-nos Camões
declamando o poema épico , ainda em manuscrito, com a serra de Sintra ao fundo,
a um jovem mas já meio barbado monarca… Como reza a História.
[7] O catálogo dá-nos informação preciosa
quanto aos galardões de Simões até aquela altura: «SIMÕES D’ALMEIDA JUNIOR
(José) | Medalhas de 2ª classe da Sociedade Promotora das Bellas-Artes em 1866
[?], 1872 [O orphão] e 1874 [D. Sebastião]. Medalha de 3ª classe na exposição
Universal de Pariz 1878 [Puberdade - ver nota 3].»
[8] No mesmo catálogo, ainda nas obras de
Simões d’Almeida, podemos ler: «347 - Retratos
da familia Garland – seis medalhões reproduzidos em galvanoplastica por
Francisco Baptista dos Santos.» Sinal que a venda do mármore de Esperança e saudade e a modelação dos seis
originais em gesso para a feitura das galvanoplastias foi negócio por atacado
com o sr. Garland.
[9] Nestas coisas das esculturas, nunca
se sabe muito bem se «primeiro foi o ovo ou a galinha»… Normalmente - e esqueçamos
aqui esboços, estudos e maquetas – o gesso ou o barro antecedem sempre a pedra
ou o metal. Mas nada nos diz que não haja novos gessos (ou barros) posteriores,
e em mais que uma reprodução. Por outo lado, se a obra foi datada no modelo
original, assim aparece na reprodução por fundição (às vezes acompanhada
discretamente de nova data e marca do fundidor); já na passagem à pedra, se
feita sob as mãos ou direcção do autor, este assina e data por norma no final
do esculpir. (Embora também possa ser de outro modo qualquer…)
[10] Assinalado por Cristina Azevedo
Tavares in A Escola Naturalista de
Figueiró: Exposição de Escultura e Pintura. Figueiró dos Vinhos: Câmara
Municipal. 2004.
[11] Assunto já referido por Matilde Tomaz
do Couto in A Escola Naturalista de
Figueiró: Exposição de Escultura e Pintura. Figueiró dos Vinhos: Câmara
Municipal. 2004.
Referido também por Luís Borges da Gama in A Duas Mãos | Desenhos Inéditos: Manuel
Henrique Pinto (1853-1912) e José Malhoa (1855-1933): Pelo Centenário da morte
de Manuel Henrique Pinto. Figueiró do Vinhos: Clube Figueiroense: Município
de FV. 2012. p.15.
Ou ainda aqui.
[12] Ver: SANTOS, Doris; COUTO, Matilde
Tomaz do - Liga dos Amigos do Museu José
Malhoa: Como nasce um museu. Caldas da Raínha: Liga dos Amigos do Museu
José Malhoa. 2013.
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