sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Hoje, vamos à Praia!… (II)

uma volta mais pela Praia das Maçãs


     Ora vamos lá pegar de novo na sacola e vamos dar mais um salto até à praia… À ida, à boleia do amigo Macieira e do seu Rio das Maçãs.

Para se entender melhor tudo isto nada melhor que começar pelo princípio. E, como «no princípio era o verbo», damos a palavra a quem sabe… (os sublinhados, notas e comentários são, obviamente, meus).


5. A Praia do Keil…

«Foi esta linda praia fundada por alturas de 1886, tendo uma comissão constituída pelos Snrs. Drs. Luís de Almeida Albuquerque, Joaquim  de Vasconcelos Gusmão, António Maria Mazziotti e engenheiros Joaquim de Sousa Gomes e Frederico Ressano Garcia levado a efeito por meio de subscrição pública e com a cooperação da câmara o projecto de uma estrada de ligação entre ela e a verdejante região de Colares.» [6]

É bom que se entenda que ainda antes da abertura da estrada já se desenvolveria sazonalmente alguma actividade piscatória, e há notícia de gente da região a ali ir a banhos.

«Uma vez aberta a estrada, logo algumas casas se construíram, as primeiras das quais foram a do padre de origem espanhola D. Matias del Campo, coadjutor em Colares, a de Manuel Dias Prego, onde hoje está instalado com muitas modificações o Hotel Royal, e logo a seguir a de Alfredo Keil que ali buscava frequentemente o sossego necessário para a concepção de algumas das suas notáveis composições musicais e picturais.» [6]

Alfredo Keil (Lisboa, 1850 – Hamburgo, 1907), poeta, escritor, fotógrafo, coleccionador, mas sobretudo pintor e compositor, autor de «A Portuguesa» e da primeira ópera na nossa língua, «A Serrana», tinha casa de veraneio na região de Colares, na Eugaria, o «Casal da Serrana». Fazia parte do círculo intelectual e mundano colarense que se reunia no Eden Hotel e na Villa Costa. E é considerado o terceiro edificador do novo lugar de Villa Nova da Praia das Maçãs, como foi então conhecida.

«O seu elegante chalet, cuja construcção principiou em Janeiro de 1889 e estava terminada em 1890, é, ainda hoje, a mais bella construcção ali feita. Junto d´elle fez o sr. Keil erigir uma pequena capella, sob invocação da Nossa Senhora da Praia, que um anno depois fazia sagrar, e onde o Padre D. Matias del Campo resou a primeira missa, que o sr. Keil mandou celebrar por alma de seu pae. Desde 1893, e quasi sempre no ultimo domingo de Setembro, alli se tem realizado uma festa, á que concorrem muitos devotos dos logares limitrophes, vendendo-se, como recordação d’essa festividade, um registo com a imagem de Nossa Senhora da Praia.
«Em 1897, todas as familias que no mez de Setembro se encontravam na Praia das Maçãs, combinaram dar aquella festa um maior brilho, e auxiliadas por alguns cavalheiros de Collares, realizaram esses festejos com grandiosidade tal que conseguiram attrahir alli para cima de cinco mil pessoas. 
«Dessa festa o que mais se admirou foi o imponentissimo cirio de Collares á Praia. Sem o aspecto dos antigos cirios religiosos, mas com um cunho moderno, nélle se encorporaram approximadamente duzentos cavalleiros e mais de cem carros artisticamente enfeitados.» [7]


O chalet de Keil, a «Villa Guida», ainda hoje existe, mas já noutras mãos e com naturais alterações. Ei-la aqui, num belo desenho do próprio Keil, acabada de construir, cerca de 1893, a «Vila Guida» e a Ermida de Nª Sª da Praia ainda isoladas, no morro da Praia, vistas do lado Norte.

A mesma «Villa Guida» numa foto da época e com a legenda: «Vista da nossa casa na Praia. Offerecido pelo sr. Alfredo Braga».





E ainda, um postal da própria Guida [8], datado de 1903 mas editado ainda em 1901, onde esta assinala o local exacto da casa de praia da família.


Se olharmos com mais atenção para esta foto (é de Júlio Novaes), veremos que, por volta de 1900, as construções na Praia das Maçãs ainda se podiam contar pelos dedos das mãos. Mais junto à arriba, no plano mais próximo, vemos um edifício de dois pisos sobre o que parece ser um embasamento, e mais adiante o que parecem ser os «caramanchões do Prego» (a mancha horizontal negra e baixa) com umas casas logo por de trás (já lá iremos); ainda junto ao mar, lá mais acima, já na zona da falésia, um ou dois edifícios de maior porte. O caminho para as Azenhas do Mar é perceptível. À sua esquerda estarão mais algumas casas pouco nítidas na foto; e à direita, um primeiro chalet do qual vemos a empena com três vãos. E só mais ao fundo, no alto, vislumbramos o bico de uma das fachadas da «Villa Guida» assertivamente assinalada pela mão da Guida Keil.


Numa outra tomada de vistas, ainda a Praia das Maçãs na primeira década de novecentos. O reenquadramento de uma foto publicada em 1906, da autoria de Francisco Braga [9] (desconheço se este Braga teria alguma coisa a ver com o da outra foto).


6. …a do «Prego» e a do «Grego»,

Já tivemos notícia do Manuel Dias Prego como um dos edificadores iniciais da Praia. Parece que era de ali perto e ter-se-á estabelecido na Praia com uma taberna, casa de pasto e mais tarde serviço de banheiro. Ainda antes de construir este edifício em tijolo, onde o vemos todo pimpão e de tabuletas sobre a porta - «Prego | Villa Nova da Praia das Maçãs | 1889» e «Banheiro & Cª» -, já num outro estabelecimento abarracado teria iniciado o seu negócio.
E, como parece que o negócio prosperava, logo surgiu concorrência.

«O semanário Correio de Sintra, de 6 de Junho de 1897, dizia que era de lamentar o facto de ser a Praia das Maçãs muito visitada e não existir um estabelecimento conveniente (o do Prego era uma taberna, embora com esplanada), onde os visitantes pudessem tomar  as suas refeições e “descansarem um bocado”. E sugeria que, para isso, serviria uma casa do Padre Matias que, nessa altura, já tinha aumentado o seu património rústico e urbano, o qual, certamente, pediria pouca renda.
«E a coisa resultou.
«O mesmo jornal, em 2 de Abril de 1899, noticiava:
«O sr. Júlio Grego, laborioso e activo proprietário do novo Restaurant Flôr da Praia das Maçãs, instalado na casa que pertence ao nosso amigo Sr. Matias del Campo, vai dotá-lo com novos melhoramentos e já concluiu uns frescos e aprazíveis caramanchões, donde se disfruta vista sobre o mar.»
«Já um mês antes desta notícia se anunciava que o estabelecimento do Grego tinha «bons terraços, abrigo para carros e gado, aceio e boa cozinha».
«Foi neste restaurante que se serviu o primeiro banquete que houve na Praia das Maçãs - um almoço de homenagem ao Visconde de Tojal (…)
«O interior da esplanada do Grego, debruçada sobre a praia, plena de mesas sempre cheia de clientes, foi motivo para uma tela do grande pintor José Malhoa.» [10]


O «Restaurant Flôr da Praia» de «Julio R. L. Grego».
Na «casa que pertence ao (...) sr. Matias del Campo» já com os  seus «aprazíveis caramanchões».
Há diferentes versões sobre a data desta fotografia, mas tudo indica que seja ainda dos finais do séc. XIX.
 À entrada da «Varanda do Grego» teremos Júlio Grego e sua Mulher e, ao colo desta, supõe-se, a sua filha,
a que veremos (ou será outra?) já bem crescidinha na foto de 1912, mostrada aqui anteriormente.

Entretanto, «o negócio do Prego [também] progrediu a ponto de ocupar com mesas um terreno adjacente à taberna, cobrindo-o com um caramanchão, apresentando na Câmara um pedido para o fechar. A Câmara em reunião de 1 de Fevereiro de 1899 reconhecendo que o terreno era municipal, indeferiu o pedido» [10]. Contudo, mais tarde (e resta saber quando...?) [11] tal pedido acabou por ser deferido e Manuel Prego obrigado a requerer uma licença. 

A «Casa de Pasto - Prego» aqui com a esplanada coberta. 
Numa fotografia, muito provavelmente, ainda do séc. XIX ou dos primeiros anos de novecentos. No terreiro logo abaixo vemos uma série de carros e carroças estacionados. Será muito possivelmente este o terreiro que veremos em 
«A Retardatária», 1924.
 E, lá ao cimo na curva, meio encoberta pelos homens a cavalo, a «Varanda do Grego». Reparemos nas diferenças entre o desenho da fachada (digamos assim) que aqui vemos e o que mostra a foto anterior. E recordemos ainda uma outra versão, a que Malhoa registará em 
«O Caminho do Grego (Praia das Maçãs)», 1922.








Um outro registo fotográfico que mostra a casa do «Prego» (em segundo plano), mas agora sem o caramanchão da esplanada. Vemos a escada de acesso ao andar, possivelmente aos quartos.
Logo atrás, ao fundo, à esquerda, meio cortado pelo enquadramento, vemos ainda parte das letras pintadas na fachada do «Grego»: «...STAURANT FLÔR...»

Não sabemos se por causa das licenças se por efeitos das invernias, a referida esplanada coberta parece não ter sido coisa permanente. Em registos fotográficos que pela evolução do tecido edificado parecem ser sequênciais a dita esplanada ora aparece ora deixa de aparecer… [11]
Por outro lado, seja também pelas invernias ou pela evolução natural das coisas, quer «a esplanada do Prego», quer «a varanda do Grego» parecem sofrer algumas modificações de aspecto ao longo dos anos…
Supostamente, quer um quer outro dos estabelecimentos, para além do serviço de «restaurant» e bebidas, forneceria também serviço de alojamento, «abrigo para carros e gado, aceio e boa cozinha». Daí a designação de «hotel» usada na crónica de Manoel de Sousa Pinto que aqui vimos antes.

A Praia das Maçãs cerca de 1908 (com o Hotel Royal Belle-Vue ainda em construção).
 O «Grego» e o «Prego», neste ângulo vistos logo abaixo do novo hotel, parecem ambos ter as esplanadas cobertas.


Cerca de 1909, com o novo Hotel Royal Belle-Vue já acabado. Claramente o «Prego» apresenta-se sem a esplanada.



















        7. …e como a Praia da moda.

Entretanto outros hotéis e restaurantes haveriam de surgir na Praia das Maçãs, como o da madame «Tapie» e o «Hotel Royal Belle-Vue». Este, mais finaço, lá no alto da falésia, para além de outras histórias [12] que para a nossa interessam nada, tem importância porque ajuda grandemente a datar os registos fotográficos: foi construído por volta de 1908, inaugurado em 1909 e ardeu completamente em Novembro de 1921.

A Praia das Maçãs poucos anos depois (registam-se alguns novos edifícios), talvez cerca de 1910 ou 1911. 
O «Prego» ainda não voltou a construir a sua esplanada coberta...

«A propósito da inauguração do novo Hotel Royal Belle Vue, tiveram eco na imprensa os trabalhos de reforma, organização e modernização levados a cabo na região da Praia das Maçãs.
«O projecto e iniciativa estiveram a cargo de Eugène Levy. Traçaram-se novas ruas, macadamizaram-se estradas, regulamentaram-se as construções, organizaram-se os espaços, e, segundo um projecto do arquitecto Ventura Terra, proveu-se à construção do Hotel Royal Belle Vue, construído por Francisco dos Santos. Esperava-se que o referido Hotel impulsionasse o turismo balnear, tendo-se apostado, por isso, na higiene, elegância e conforto. O Hotel Royal possuía água potável, directamente canalizada para o restaurante, e iluminação eléctrica em todos os quartos.
«Por seu lado, a estação telégrafo-postal, instalada em frente ao Hotel, o telefone Praia-Sintra-Lisboa e o serviço médico permanente existente na região, completavam este empreendimento da Praia das Maçãs.» [13]

Ainda antes destes grandes e inegáveis melhoramentos, um outro grande contributo para a modernização e desenvolvimento da Praia das Maçãs foi a construção da linha do Eléctrico entre Sintra e a Praia. Era uma ideia que, parece, já vinha de 1886, teve avanços em 1898, mas só seria concretizada já nos primeiros anos de novecentos [14]. O último troço, o que de Colares chegou até à Praia, foi inaugurado em 10 de Julho de 1904.

O Hotel Restaurant Royal Belle-Vue, fotografado por Benoliel em 1913. 
Reparemos no grupo de veraneantes chiques que se dirigem para a praia; no carro de cavalos que descarrega umas malas à porta do Hotel;
 e no poste e fios telefónicos que se dirigem ao edifício.

Assim já podiam Duquesas e Marquesas deslocar-se comodamente a banhos e com local decente onde se hospedar. Logo depois, com a República, mudar Marqueses por Ministros, Condes por Conselheiros, foi fácil e natural. E a pequenina Praia das Maçãs entrava definitivamente na moda.


«Mas, e nesta visita quase nunca encontrámos o Malhoa?!» – admira-se o amigo leitor, já meio farto de tanta conversa fiada.
Pois não! – respondo eu. Nem no Hotel Royal Belle-Vue - se calhar porque aquela era «a burguesia que [não] lhe conv[inha]». Nem, por muito que a alguns custe, a comer uns percebes, um arroz de mexilhão ou a virar umas imperiais na companhia do Keil – porque, é bom lembrar, este fina-se em 1907, durante uma viagem à Alemanha, e o outro só aqui haveria de aparecer lá por 1911. E é assim a vida!...

Para essa e outras partes da nossa história aqui à Praia voltaremos mais umas vezes. Qu‘inda o Verão vai a meio.

(continua…)

14 Ago. 2015. LBG.

__________________________

[6] Oliva Guerra, in Roteiro Lírico de Sintra, Lisboa,1940. Apud Pedro Macieira, in Rio das Maçãs.
[7] António A. R. Cunha, in Cintra Pinturesca: Memoria descriptiva das villas de Cintra e Collares e seus arredores, 1905. Apud Pedro Macieira, in Rio das Maçãs.
[8] Trata-se de Guida Maria Josefina Cinatti Reis Keil, a segunda filha de Alfredo Keil. Por sua vez, a mãe do Arq. Francisco Keil do Amaral (1910-1975).
[9] In Brasil-Portugal, nº184, 16 Set. 1906, p.244.
[10] José Alfredo da Costa Azevedo, in Obras de José Alfredo da Costa Azevedo III: Litoral e Planície Saloia. C. M. Sintra, 1997. Apud Pedro Macieira, in Rio das Maçãs.
[11] O (ou os) período durante o qual o «Prego» se terá visto privado da sua esplanada coberta não é mencionado em qualquer das fontes consultadas. Contudo, pela análise cuidada dos documentos fotográficos, parece claro que ela aparenta existir nas fotos de finais de oitocentos, de c.1901, c.1906 e de c.1908. Depois, nas fotos supostamente subsequentes, c.1909 e c.1910/11, deixa de existir. E só volta a aparecer, já com uma mais cuidada construção, em registos dos anos 20, como iremos ver depois. Malhoa, por sua vez, parece registá-la no «Retrato de Roque Gameiro», c.1918, em «Praia das Maçãs (estudo)», 1919 (CMAG), etc.  
[12] No «Hotel Royal Belle-Vue» ou «Hotel do sr. Levy», o novo grande hotel da Praia, hospedar-se-ia em 1913 Afonso Costa. Pelo final de Setembro, início de Outubro, é notícia a descoberta de um complot para «assassinar o chefe do governo» durante a sua estadia de veraneio. Pode ler mais aqui.
[13] In Centenário da República,1910-2010. Tendo por fonte O Século, nº 9901, 10 Julho 1909, p.3.
[14] Sobre a história do Eléctrico da Praia das Maçãs pode ler ainda este excelente artigo no blog Alagamares; se procurar bem, no Rio das Maçãs, para lá deste encontra uma boa dezena de outros mais; e pode também ler este outro, que fala um pouco de tudo o que aqui dissemos, em Restos de Colecção (embora lá no fim, na estória do quadro de Malhoa, como é costume, a trapalhada seja para esquecer).



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