e o «Giz barbeiro»
na cura das «almorródias»
(Carteira
d’um trolha) [1]
Três décadas
a acompanhar obras deram-me um certo entendimento. Acho eu.
No estaleiro,
sempre procurei boas relações com todos os intervenientes, fossem engenheiros
de obra, fiscais, empreiteiros, encarregados, mestres pedreiros, carpinteiros,
pintores e estucadores ou serralheiros, canalizadores e electricistas, oficiais
e aprendizes, destes e doutros ofícios, seus ajudantes. Sempre (ou quase), com
todos, o respeito foi mútuo. Com alguns, fossem o que fossem, estabeleci
amizade.
Mas era
preciso percebê-los. Nas pausas, virar uma ou duas minis, chegar um
cigarrito…
E logo no
linguajar. Com os angolanos, perceber que a resposta «aiiinda…» é sinónimo do
trabalho aprazado continuar por fazer e vê-lo-íamos… Com os brasileiros, para
além do problema «concrêto» vs. betão ou argamassa, fazê-los perceber que uma
placa de esferovite é o que conhecem por «isopor» sempre foi tarefa que nenhum
acordo ortográfico resolveu… Com todos, fossem “tugas”, “zucas”, “palopes” ou
“ucrânias”, trolhas ou engenheiros, arrear um ou dois palavrões na altura certa,
a melhor forma de fazer compreender…
Júlio Pomar. O
almoço do trolha, c.1946/50. óleo s/ aglomerado de madeira, 120x150 cm.
Em
contrapartida, tive eu de aprender muita coisa.
Desde logo
que um «lentel» é aquela peça estrutural horizontal que suporta os panos
de alvenaria acima de qualquer vão. Com um ou outro velho mestre pedreiro,
ainda lhe podia tentar chamar lintel, dintel, verga ou padieira, que era percebido.
Mas com a malta mais nova (mesmo certos engenhêros) era imediatamente corrigido
– Ah! o sôr quer aqui um lentel, é isso?! não lhe chega um tijolinho
armado?! Pois a gente mete aqui umas verguinhas de 6 e fazemos um lentel
jeitoso! – Que a coisa é «lentel», e pronto! [se da família da lente,
das lentilhas ou da lentidão, nunca consegui perceber…].
[Mas não se
admire, caro leitor: rápida busca na net e logo encontra uma empresa dos
Pousos que pré-fabrica «blocos de lentel», ou uma sociedade de
construções em Odivelas que orgulhosamente exibe a palavra «Lentel» na
sua designação corporativa!? Por este andar e com a rapaziada do acordo
ortográfico, o termo «lentel» tem grandes probabilidades de vir a ser
uma próxima entrada no dicionário da Academia…]
Depois, tive
de aprender que é a «batoneira» a máquina que desenrasca quase tudo. Conforme
os inertes e respectivos traços, faz argamassas de cimento que podem ter
diversos fins: betões estruturais ou de enchimento, leves e celulares, massas de
assentamento, massa de emboço ou de reboco (na maioria das vezes para «arrebocar»)
e, ainda, massas para fazer «batomilha» ou, em forma ligeiramente
mais erudita mas mais comum, a inefável «betomilha» [termo, aliás e a maioria
das vezes, usado no diminutivo – Não se preocupe, que a gente faz aqui uma «betomilhazinha»
e isto fica impecável! – talvez por ser coisa muito querida em qualquer
obra, pois disfarça todas as misérias que lá ficam por debaixo.]
[E não, «betomilha»
não quer dizer que se estenda por milhas e milhas de superfície. Normalmente
uma betonilha não vai além da dezena ou duas de metros quadrados de um quarto
ou sala. E, se a sua superfície for maior, tem de ser esquartelada
convenientemente para não ficar toda rachada com as normais contracções e dilatações
do material… Estão a ver aquelas juntas de latão nos pavimentos dos hipermercados?
Não é feitio, é isso, precisamente.]
Uma «betomilha»
(ou «batomilha») bem feita, seja para ficar à vista ou para lhe
assentar qualquer pavimento, tem, antes de a argamassa ganhar presa, de ser
devidamente desempenada e garantida a horizontalidade da sua superfície. Para
tal, usam-se réguas ou sarrafos para a alisar e retirar os excessos de
material. E, para verificar a horizontalidade, o mais imediato é o uso da régua
de nível. [Hoje em dia já existem massas de acabamento ditas auto-nivelantes e
níveis electrónicos a laser, mas os métodos anteriores continuam a ser
muito utilizados].
Ora, quanto
à régua de nível, o que começou por ser brincadeira, boutade da malta das
obras, mormente ao tempo do Cavaco – Eh, pá! passa aí o «aníbal»
a ver se isto não fica torto… - passou a ser uso comum. E, agora, algum
pessoal mais novo começa a achar que «aníbal» é mesmo o nome da
régua metálica com aquele vidrinho meio de água e a bolha de ar a bailar lá
dentro… E é assim que elas se vão criando.
Chega de
léxico das obras! Passemos à botânica. E a um outro nível koltural.
A
gilbardeira, também dito «gilbardeiro» [embora, nestas coisas agrícolas, a
igualdade de género tenha que se lhe diga – a «pêra» e o «pêro», por exemplo, frutos
da mesma família, são, quanto ao género e à espécie, coisas
bem diferentes…]. Pois a gilbardeira, dizia, é uma humilde planta dos campos, arbustiva,
perene, vivaz, e espontânea em quase todo o território (e em boa parte da
Europa, Ásia Ocidental e Norte de África). De caule verde, erecto, glabro,
densamente provido de ramos que, por sua vez, apresentam caules florais
coriáceos, semelhantes a folhas, com uma espinha terminal. As verdadeiras folhas
estão praticamente ausentes na planta adulta, reduzidas ao espinho no ápice dos
referidos cladódios. As flores (masculinas e femininas) são branco-esverdeadas
e violáceas, muito pequenas, nascendo nos tais caules florais em forma de
falsas folhas. O fruto é uma baga vermelha, brilhante, de cheiro pouco intenso
a terebintina, sabor adocicado, depois amargo.
Ruscus
aculeatus, de Linnaeus,
é nomenclatura científica.
Gilbardeira, gibaldeira ou gilbarbeira
[este último com a indicação «Prov. minh.» – provincianismo minhoto] são
os termos registados por Cândido de Figueiredo [2].
Popularmente
é também conhecida por «erva-dos-vasculhos» [por óbvia razão, tal como, em
inglês, «butcher’s broom» quer dizer «vassoura de açougueiro», e em galego lhe
chamam «esbarda», «escudeijo»
ou «escovas» - para além, claro, de «gilbarbeira», ou não fossem eles meio minhotos…
que em castelhano é «rusco», directamente da forma latina]. É igualmente
chamada de «falso azevinho» ou «azevinho-menor» [as razões de parecença,
tal como no francês «petit-houx», são o motivo]. Ou ainda de «pica-rato» [e, em
galego, «açouta-cristos», «picaceira», «rasca-cu» e «silvarda», por razões de aspereza evidente].
O que nunca
lhe ouvira chamar era «Giz barbeiro», «Giz-barbeiro» ou
«Gizbarbeiro»!? [em separado, com “tracinho” ou tudo pegado, há para todos os gostos]. Corruptela de corruptela, evidente e tola, sobre o
provincianismo minhoto atrás referido. [E ainda mais desprovida de sentido que
«lentel», «batoneira» ou «batomilha»]. Fica-se obstúpido
a tentar perceber que raio um pedaço de carbonato de cálcio terá a ver com a
plantinha dos valados ou com o fígaro da tesoura e da navalha?!
[Dir-me-ão –
vai ver à net que logo encontras! – Pois, eu sei, tal como
encontrei «lenteis» a rodos… Em sítios meio manhosos, talvez mais “armados
ao fino”, a arremedar ao “cosmopolita”, encenados de “sustentáveis” (como gosto
da palavra!), mas tão ignaros como os outros, os de terceira ordem da
construção civil. É por aí que se encontra.]
Ao que consta,
o rizoma da gilbardeira e as falsas folhas ou cladódios são utilizados sob
várias formas na medicina tradicional e ervanária. Diz-se que na melhoria da
circulação sanguínea para o cérebro, pernas e mãos, no alívio da obstipação, e que será
ainda eficaz no tratamento de varizes e hemorróidas. [Assim sendo, aliando o
espírito da nova erudição lexical ao empreendedorismo criativo, que tal um
slogan infalível – «Giz-barbeiro sara-te as almorródias num instante!»
– era sucesso garantido?!...]
Ora, se o
«gizbarbeiro» se mantivesse lá escondido nuns sítios a que ninguém liga,
onde uns sujeitos mostram as hortaliças que lhes crescem no quintal ou umas
fotos pífias como se fossem a derradeira novidade da National Geographic,
eu ficava caladinho. Pois era lá com eles...
Mas não. A coisa alastra, começa a virar praga.
Mas não. A coisa alastra, começa a virar praga.
E, pelo
visto, já chegou à arte [ou ao que dizem que o é]. Pretensiosa, treco-lareca,
pouca sustância e muita conversa, mas que agrada. Que é notícia, dá na tevê,
alegra a malta. E augura (como na estória do «chinês» do Futre) - «vão vir charters…!».
E tudo isso é bom, dir-se-á.
Mas, vai-se
a ver, pespegam-nos com o «gizbarbeiro» nas paredes!? Sem pingo de
vergonha, umas alegadas pesquisas, meia conversa da treta, e tomem lá «gizbarbeiro»!
Antes,
dizia-se do vinho e do fado.
Agora, ao
que parece, a dita arte urbana é que induca, a cultura moderninha é que
instrói. E assim estamos.
Linguisticamente,
ao nível do trolha.
Com todo o respeito
pelos trolhas, evidentemente.
[Sincera e
evidentemente, como julgo ser claro]
11 Set.2020. LBG.
_______________________
[1]. Tomo de empréstimo a Beldemónio
[Eduardo de Barros Lobo, ou Eduardo Lobo Correia de Barros (Gouveia, 10 Dez.1857
— Lisboa, 18 Dez.1893)] o subtítulo das quatro crónicas a que chamou O salão
de pintura, publicadas no Diario Illustrado entre 19 Dez.1881 e 2
Jan.1882, apresentando ao mundo a 1ª exposição de quadros modernos (do Grupo
do Leão).
[2]. FIGUEIREDO, Cândido. Grande
Dicionário da Língua Portuguesa. 10ª edição. Livraria Bertrand, Lisboa,
1949.