sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Do «lentel» à «betomilha»,

e o «Giz barbeiro» na cura das «almorródias»


(Carteira d’um trolha) [1]


Três décadas a acompanhar obras deram-me um certo entendimento. Acho eu.
No estaleiro, sempre procurei boas relações com todos os intervenientes, fossem engenheiros de obra, fiscais, empreiteiros, encarregados, mestres pedreiros, carpinteiros, pintores e estucadores ou serralheiros, canalizadores e electricistas, oficiais e aprendizes, destes e doutros ofícios, seus ajudantes. Sempre (ou quase), com todos, o respeito foi mútuo. Com alguns, fossem o que fossem, estabeleci amizade.
Mas era preciso percebê-los. Nas pausas, virar uma ou duas minis, chegar um cigarrito…
E logo no linguajar. Com os angolanos, perceber que a resposta «aiiinda…» é sinónimo do trabalho aprazado continuar por fazer e vê-lo-íamos… Com os brasileiros, para além do problema «concrêto» vs. betão ou argamassa, fazê-los perceber que uma placa de esferovite é o que conhecem por «isopor» sempre foi tarefa que nenhum acordo ortográfico resolveu… Com todos, fossem “tugas”, “zucas”, “palopes” ou “ucrânias”, trolhas ou engenheiros, arrear um ou dois palavrões na altura certa, a melhor forma de fazer compreender…
 
Júlio Pomar. O almoço do trolha, c.1946/50. óleo s/ aglomerado de madeira, 120x150 cm.

Em contrapartida, tive eu de aprender muita coisa.
Desde logo que um «lentel» é aquela peça estrutural horizontal que suporta os panos de alvenaria acima de qualquer vão. Com um ou outro velho mestre pedreiro, ainda lhe podia tentar chamar lintel, dintel, verga ou padieira, que era percebido. Mas com a malta mais nova (mesmo certos engenhêros) era imediatamente corrigido – Ah! o sôr quer aqui um lentel, é isso?! não lhe chega um tijolinho armado?! Pois a gente mete aqui umas verguinhas de 6 e fazemos um lentel jeitoso! – Que a coisa é «lentel», e pronto! [se da família da lente, das lentilhas ou da lentidão, nunca consegui perceber…].
[Mas não se admire, caro leitor: rápida busca na net e logo encontra uma empresa dos Pousos que pré-fabrica «blocos de lentel», ou uma sociedade de construções em Odivelas que orgulhosamente exibe a palavra «Lentel» na sua designação corporativa!? Por este andar e com a rapaziada do acordo ortográfico, o termo «lentel» tem grandes probabilidades de vir a ser uma próxima entrada no dicionário da Academia…]


Depois, tive de aprender que é a «batoneira» a máquina que desenrasca quase tudo. Conforme os inertes e respectivos traços, faz argamassas de cimento que podem ter diversos fins: betões estruturais ou de enchimento, leves e celulares, massas de assentamento, massa de emboço ou de reboco (na maioria das vezes para «arrebocar») e, ainda, massas para fazer «batomilha» ou, em forma ligeiramente mais erudita mas mais comum, a inefável «betomilha» [termo, aliás e a maioria das vezes, usado no diminutivo – Não se preocupe, que a gente faz aqui uma «betomilhazinha» e isto fica impecável! – talvez por ser coisa muito querida em qualquer obra, pois disfarça todas as misérias que lá ficam por debaixo.]
[E não, «betomilha» não quer dizer que se estenda por milhas e milhas de superfície. Normalmente uma betonilha não vai além da dezena ou duas de metros quadrados de um quarto ou sala. E, se a sua superfície for maior, tem de ser esquartelada convenientemente para não ficar toda rachada com as normais contracções e dilatações do material… Estão a ver aquelas juntas de latão nos pavimentos dos hipermercados? Não é feitio, é isso, precisamente.]
Uma «betomilha» (ou «batomilha») bem feita, seja para ficar à vista ou para lhe assentar qualquer pavimento, tem, antes de a argamassa ganhar presa, de ser devidamente desempenada e garantida a horizontalidade da sua superfície. Para tal, usam-se réguas ou sarrafos para a alisar e retirar os excessos de material. E, para verificar a horizontalidade, o mais imediato é o uso da régua de nível. [Hoje em dia já existem massas de acabamento ditas auto-nivelantes e níveis electrónicos a laser, mas os métodos anteriores continuam a ser muito utilizados].
Ora, quanto à régua de nível, o que começou por ser brincadeira, boutade da malta das obras, mormente ao tempo do Cavaco – Eh, pá! passa aí o «abal» a ver se isto não fica torto… - passou a ser uso comum. E, agora, algum pessoal mais novo começa a achar que «abal» é mesmo o nome da régua metálica com aquele vidrinho meio de água e a bolha de ar a bailar lá dentro… E é assim que elas se vão criando.

Chega de léxico das obras! Passemos à botânica. E a um outro nível koltural.

A gilbardeira, também dito «gilbardeiro» [embora, nestas coisas agrícolas, a igualdade de género tenha que se lhe diga – a «pêra» e o «pêro», por exemplo, frutos da mesma família, são, quanto ao género e à espécie, coisas bem diferentes…]. Pois a gilbardeira, dizia, é uma humilde planta dos campos, arbustiva, perene, vivaz, e espontânea em quase todo o território (e em boa parte da Europa, Ásia Ocidental e Norte de África). De caule verde, erecto, glabro, densamente provido de ramos que, por sua vez, apresentam caules florais coriáceos, semelhantes a folhas, com uma espinha terminal. As verdadeiras folhas estão praticamente ausentes na planta adulta, reduzidas ao espinho no ápice dos referidos cladódios. As flores (masculinas e femininas) são branco-esverdeadas e violáceas, muito pequenas, nascendo nos tais caules florais em forma de falsas folhas. O fruto é uma baga vermelha, brilhante, de cheiro pouco intenso a terebintina, sabor adocicado, depois amargo.


Ruscus aculeatus, de Linnaeus, é nomenclatura científica.
Gilbardeira, gibaldeira ou gilbarbeira [este último com a indicação «Prov. minh.» – provincianismo minhoto] são os termos registados por Cândido de Figueiredo [2].
Popularmente é também conhecida por «erva-dos-vasculhos» [por óbvia razão, tal como, em inglês, «butcher’s broom» quer dizer «vassoura de açougueiro», e em galego lhe chamam «esbarda», «escudeijo» ou «escovas» - para além, claro, de «gilbarbeira», ou não fossem eles meio minhotos… que em castelhano é «rusco», directamente da forma latina]. É igualmente chamada de «falso azevinho» ou «azevinho-menor» [as razões de parecença, tal como no francês «petit-houx», são o motivo]. Ou ainda de «pica-rato» [e, em galego, «açouta-cristos», «picaceira», «rasca-cu» e «silvarda», por razões de aspereza evidente].

O que nunca lhe ouvira chamar era «Giz barbeiro», «Giz-barbeiro» ou «Gizbarbeiro»!? [em separado, com “tracinho” ou tudo pegado, há para todos os gostos]. Corruptela de corruptela, evidente e tola, sobre o provincianismo minhoto atrás referido. [E ainda mais desprovida de sentido que «lentel», «batoneira» ou «batomilha»]. Fica-se obstúpido a tentar perceber que raio um pedaço de carbonato de cálcio terá a ver com a plantinha dos valados ou com o fígaro da tesoura e da navalha?!
[Dir-me-ão – vai ver à net que logo encontras! – Pois, eu sei, tal como encontrei «lenteis» a rodos… Em sítios meio manhosos, talvez mais “armados ao fino”, a arremedar ao “cosmopolita”, encenados de “sustentáveis” (como gosto da palavra!), mas tão ignaros como os outros, os de terceira ordem da construção civil. É por aí que se encontra.]

Ao que consta, o rizoma da gilbardeira e as falsas folhas ou cladódios são utilizados sob várias formas na medicina tradicional e ervanária. Diz-se que na melhoria da circulação sanguínea para o cérebro, pernas e mãos, no alívio da obstipação, e que será ainda eficaz no tratamento de varizes e hemorróidas. [Assim sendo, aliando o espírito da nova erudição lexical ao empreendedorismo criativo, que tal um slogan infalível – «Giz-barbeiro sara-te as almorródias num instante!» – era sucesso garantido?!...]

Ora, se o «gizbarbeiro» se mantivesse lá escondido nuns sítios a que ninguém liga, onde uns sujeitos mostram as hortaliças que lhes crescem no quintal ou umas fotos pífias como se fossem a derradeira novidade da National Geographic, eu ficava caladinho. Pois era lá com eles... 
Mas não. A coisa alastra, começa a virar praga.


E, pelo visto, já chegou à arte [ou ao que dizem que o é]. Pretensiosa, treco-lareca, pouca sustância e muita conversa, mas que agrada. Que é notícia, dá na tevê, alegra a malta. E augura (como na estória do «chinês» do Futre) - «vão vir charters…!». E tudo isso é bom, dir-se-á.
Mas, vai-se a ver, pespegam-nos com o «gizbarbeiro» nas paredes!? Sem pingo de vergonha, umas alegadas pesquisas, meia conversa da treta, e tomem lá «gizbarbeiro»!

Antes, dizia-se do vinho e do fado.
Agora, ao que parece, a dita arte urbana é que induca, a cultura moderninha é que instrói. E assim estamos.
Linguisticamente, ao nível do trolha.

Com todo o respeito pelos trolhas, evidentemente.
[Sincera e evidentemente, como julgo ser claro]


11 Set.2020. LBG.

_______________________
[1]. Tomo de empréstimo a Beldemónio [Eduardo de Barros Lobo, ou Eduardo Lobo Correia de Barros (Gouveia, 10 Dez.1857 — Lisboa, 18 Dez.1893)] o subtítulo das quatro crónicas a que chamou O salão de pintura, publicadas no Diario Illustrado entre 19 Dez.1881 e 2 Jan.1882, apresentando ao mundo a 1ª exposição de quadros modernos (do Grupo do Leão).
[2]. FIGUEIREDO, Cândido. Grande Dicionário da Língua Portuguesa. 10ª edição. Livraria Bertrand, Lisboa, 1949. 

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Por caminhos do Cabril (II)

A ponte seiscentista

Onde se fala da Ponte do Cabril, do rio Zêzere, suas barragens e outras pontes. De antigas estradas e vários caminhos. Dos dois Pedrógãos e outras vilas e lugares. De Silva Magalhães, Alfredo Keil e Nª Srª dos Milagres. Da água e de rios, de peixes e fontes. E também da Estrada da Beira, da beira da estrada e da Srª da Asneira.


Eis a velha ponte sobre o Zêzere, entre os dois Pedrógãos, a jusante da garganta do Cabril. Dizem que erguida ao tempo dos Filipes, entre as altas escarpas graníticas que ali comprimem o curso do rio.
Com os seus imponentes «talha-mares». Que, deste lado, “talharam” coisa nenhuma, mas servem de contrafortes aos dispostos a montante. Esses, sim, feitos para resistir às fortes enchentes do rebelde Zêzere, então longe de ser domado pelas barragens.
Em contraponto, no estio, e como se vê, o rio corria bem lá no fundo, uns trinta metros abaixo do tabuleiro da ponte, diz-se, qualquer coisa como a altura de um prédio de dez andares… Muito abaixo do nível que nos habituámos a ver. Pois hoje, com a albufeira e por norma, a ponte jaz grande parte submersa, e a água anda, coisa menos coisa, acima do arranque dos três arcos de volta perfeita. O maior destes, o central, apresenta um vão com cerca de vinte e dois metros de abertura. E o tabuleiro lançado sobre os arcos terá, entre margens, uns bons setenta e dois metros de comprido. É obra! E é magnífica!


Foi, durante mais de três séculos e muitas milhas em redor, a única passagem “a pé enxuto” entre a Beira-Baixa e o Litoral. Tal como antes havia sido a velha ponte romana que terá existido uns metros ao lado desta…
Apesar da sua grande altura, para se chegar até lá, muitos metros de íngreme e sinuoso caminho são precisos percorrer, boa parte ainda sobre a velha calçada romana, descendo muito, outro tanto subindo, de um ao outro dos Pedrógãos.
Mesmo já ao tempo do trânsito automóvel e até ao início da década de 30 do século XX, era descendo e subindo o velho caminho até à ponte que grande parte das mercadorias e passageiros circulavam entre a Beira-Baixa e o centro litoral. Era isso, ou atravessar as altas serras mais ao norte – a Estrela, a Gardunha, o Açor – por caminhos ainda mais íngremes e perigosos. Impraticáveis no inverno.


Só então [1], já por 1930 ou 31, uns doze quilómetros a jusante, seria finalmente acabada a ligação entre Figueiró dos Vinhos e Cernache do Bonjardim através da nova ponte das Bairradas, à Bouçã. Caminho novo, mais moderno, por onde passou a ser feito quase todo o tráfego que antes atravessava a velha ponte filipina. Mudança fundamental para o desenvolvimento de Cernache e de Figueiró. A vila sertanense, que já tinha ligação pelo Vale da Ursa [2] com Ferreira e Tomar, passou também a ser ponto de passagem para Coimbra e todo o litoral centro. E Figueiró viu reforçada em definitivo a sua importância como entreposto distribuidor dos lanifícios vindos da Covilhã, do Teixoso, do Tortosendo, e prosperidade pelas quatro décadas sequentes.
Nem a construção da barragem do Cabril, finalizada em 1954, e que possibilitou a passagem automóvel pelo seu coroamento, a uma cota já elevada, perto do nível das vilas do Pedrógão Grande e do Pedrógão Pequeno, reverteu a importância da rota por Cernache…
Em 1983, a construção da ponte d’Álvaro, benefício fundamental para as gentes da Beira-Baixa na sua ligação a Coimbra, retirou boa parte do tráfego à Bouçã. Mas só em 1995, com a entrada em funções da nova ponte do Pedrógão, integrada no novo troço do IC8, é que definitivamente a ponte das Bairradas perdeu a importância que mantivera por mais de seis décadas de bons serviços.
Esta nova ponte, lançada a cota elevada, ligeiramente a jusante e muito acima da velha obra filipina, eleva-se uns bons 150 metros acima das águas do Zêzere. Com cerca de 480 metros de comprimento, assenta em quatro pilares, o maior dos quais apresenta uma altura da ordem da centena de metros. O tramo central do tabuleiro vence um vão de 180 metros, os laterais 110 metros cada um, existindo ainda mais dois pequenos tramos do lado de cada arranque.

Voltando às barragens e à velha Ponte.
Quase simultânea à do Cabril, a barragem da Bouçã, construída uns seiscentos metros a montante da ponte das Bairradas, entrou ao serviço um ano depois da anterior, em 1955. A sua albufeira estende-se, pois, ao longo da dúzia de quilómetros que medeiam até ao Cabril. É o enchimento da albufeira da Bouçã a causa da submersão de grande parte da velha ponte do Cabril, que se apresenta agora, quase sempre, com água pelos colarinhos.


Monumento Nacional classificado desde 16 Jun.1910 (ainda ao tempo da Monarquia) [3], a velha ponte seiscentista tornou-se assim, à conta da electricidade que nos alumia as noites, uma espécie de património anfíbio. Parte é apenas visitável pelos peixinhos. Mas quem não for boga ou achigã pode sempre admirar-lhe o coroamento e mesmo passá-la a pé de uma à outra margem.
E a caminhada entre os dois Pedrógãos, usando o velho caminho e atravessando a ponte, é tempo e esforço bem empregues. Pela diversidade da paisagem e penedias, pelo ar e cheiros que se respiram, pelos caminhos… E pela Ponte, claro!
[Talvez seja aconselhável começar do lado da Beira-Baixa e acabar à capelinha de Nª Srª dos Milagres do outro lado - a primeira rampa é a mais acentuada, e sempre será a descer… No tempo quente, convém não fazer o percurso com o sol a pino. E, seja a hora que for, não deve ser esquecida água para beber, sabendo que pode sempre reabastecer junto à ponte: há uma fonte, logo à direita, já em território do Pedrógão Grande]


As ilustrações antigas que acompanham o escrito são, por tudo isto, imagens raras aos dias de hoje. Dificilmente repetíveis - a não ser que aconteça alguma desgraça…

Por ordem cronológica aproximada (que, nestas coisas, nunca se sabe) e não pela ordem em que são mostradas, temos:
Uma gravura de 1875, sobre fotografia do tomarense António da Silva Magalhães (1834-1897), publicada no «Diario Illustrado» de 13 de Agosto desse ano [e já antes aqui mostrada].
A reprodução em postal de um quadro de Alfredo Keil (1850-1907) pintado, por certo, numa passagem pela região pelo final do século. Numa das voltas maiores que as habituais, bem longe do Beco, do Carril, de Dornes, da Frazoeira e Paio Mendes - o seu poiso de vilegiatura serrana. E quando não era em veraneio à Praia das Maçãs, na sua Villa Guida, bem entendido… [O quadro de Keil é este logo acima]
Ainda um velho postal ilustrado figueiroense [5] dos primeiros anos do séc.XX, e uma outra fotografia panorâmica muito provavelmente também da primeira década de novecentos ou final da anterior.

Finalmente, e só para ajudar a perceber, duas fotografias tomadas da margem direita, já no verão de 2011.
Uma sobre a velha ponte pouco menos que submersa - dos «talha-mares» emergem apenas os remates piramidais. Na margem oposta vê-se boa parte do sinuoso caminho que sobe até ao Pedrógão Pequeno. E a montante, além da curva do rio, divisa-se o imenso paraboloide em betão da barragem do Cabril.
A outra foto [esta logo aqui abaixo] mostra mais em pormenor parte da ladeira e uma curiosa obra de arte, um pequeno viaduto em cotovelo que dá continuidade ao caminho. 


Visto tudo isto, não haverá como confundir a belíssima Ponte do Cabril, a de seiscentos, Monumento Nacional, com uma outra qualquer…
Tal como a Estrada da Beira [4] não é a mesma coisa que a beira de qualquer estrada.
É bom que se pense nisso. Ou, simplesmente, que se pense.

30 Jul.2020. LBG.

____________________________

[1]. Ainda a 20 Abr.1929, A Regeneração noticiava o começo dos «trabalhos de terraplanagem do troço de estrada das Bairradas». A estrada que, do lado de Figueiró dos Vinhos, iria fazer a ligação à nova ponte.
E pouco depois, a 10 de Agosto, dava-nos conta da normalidade laboral no andamento dos trabalhos, à sua peculiar maneira, em pungente e ternurenta prosa que não resisto a transcrever:
«Tambem lá para as bandas do Zezere, a Bairrada deu que falar. Alguns operarios empregados na obra de construção da estrada que nos ha de ligar a Castelo Branco, viram a semana passada os seus salarios reduzidos. Á noite, em assembleia magna, reuniram, à luz mortiça do céu estrelado e deliberaram: não abandonarem o serviço, exigirem ao sabado o mesmo salario e se tanto fosse preciso apelar para a sua força muscular, para fazer valer, as suas pretensões.
«Mestre André, que é ali o representante do patrão empreiteiro, quando viu a integridade do seu físico em perigo, filosofou: - Não! Morrer, por morrer, morra o patrão que é mais velho!
«E mandou vir o Patrão. Este veio e se Deus Nosso Senhor lhe não acode… o caso podia complicar-se. Mas, a G.N.R., numa força de 20 praças, vindas directamente de Lisboa, entrou em função, expulsou os operarios em revolta e tudo voltou à normalidade.
«Àqueles montes e penedias voltou a paz. De quando em vez o dinamite, num trabalho quasi santo, estoira com a rocha, a picareta rebrilhando ao sol, abre novos caminhos, emquanto as águas do Zezere, gargantearam pelos pedregosos vales, como em pleno mez de Maio, a balada eterna e enganadora: ”Trabalhai, meus irmãos, trabalhai. Que o trabalho dá saude e dá vigor”.»
Tudo a bem da Nação, evidentemente!

[2]. Ao Vale da Ursa existia, desde 1885, uma das então raras pontes sobre o curso do Zêzere. Obra do final do fontismo, veio resolver a passagem "a vau" (ou através da «barca de passagem» referida nesta crónica de 1875) da estrada real que ligava a Sertã a Tomar, passando por Cernache e Ferreira. Era uma ponte com tabuleiro metálico treliçado, em três tramos assentes sobre grossos pilares de alvenaria de pedra. Manteve-se ao serviço até inícios de 1951.
Tal como a Ponte do Cabril, encontra-se submersa. Mas totalmente e a boa profundidade, fruto do elevado nível da água na albufeira do Castelo do Bode (1951). Apenas em situações de seca extrema e drástico abaixamento da quantidade de água retida, é possível ver, emergindo no meio do vasto lago, parte da velha estrutura metálica (tal visão já a presenciei uma vez…).
Aquando da edificação da barragem, procedeu-se à construção, ligeiramente a montante, de uma nova ponte que veio substituir a anterior. A imagem abaixo (c.1950) regista a situação: no plano longínquo, a nova ponte ainda está em construção; mais a jusante, a velha ponte cumpre as últimas funções; enquanto parte das margens são já alagadas pelo início do enchimento da albufeira.


[3]. O decreto de 16 Jun.1910, por evidente gralha tipográfica, designa-a como «Fonte do Cabril», embora, claramente, fizesse parte da lista das «Pontes».
Em 26 Fev.1982, o decreto 28/82 veio esclarecer definitivamente que a designação é «Ponte do Cabril».

[4]. A Estrada da Beira, correspondendo em grande parte à actual EN17, foi um dos eixos principais de ligação entre o litoral-centro e o interior, de Coimbra a toda a Beira-Alta, e porta para Castela por Ciudad Rodrigo. Referida desde os tempos medievais [ver o interessante trabalho de: MONTEIRO, Helena Patrícia Romão. A estrada de Beira: reconstituição de um traçado medieval. UNL/FCSH/DH, dissertação de Mestrado. Jun.2012], a Estrada da Beira viu variar alguns troços ao longo dos tempos. No essencial, o seu traçado acompanha o curso do rio Mondego desde a Serra da Estrela, pela sua margem esquerda, entre este e o Alva, evitando as faldas mais altas, pelo lado norte do sistema montanhoso que divide transversalmente a meio o território português.
No texto acima, o sistema montanhoso referido é o mesmo, mas pelo seu lado sul. Também o Zêzere é rio nascido na Estrela, mas rodeando-a por leste, apresenta boa parte do seu curso junto às encostas sul do dito sistema.

Ainda sobre Estrada da Beira, vale a pena transcrever Sant'Anna Dionísio, no Guia de Portugal, 3º vol., referente às Beira, Beira Litoral I, e editado já pela F.C.Gulbenkian em 1945, p.426:
«Estrada da Beira
«Assim é ainda hoje por muitos conhecida a Estrada Nacional n.º 9-1.ª desde Coimbra a Celorico da Beira (135 km.). Antes da existência dos caminhos de ferro, as duas vias de acesso mais frequentadas da Beira Alta, partindo de Coimbra, eram, consoante se demandavam terras da margem direita ou esquerda do Mondego, a estrada do Buçaco-Mortágua-Viseu ou a estrada da Foz de Arouce-Poiares-Ponte da Mucela. A esta última reservou-se tradicionalmente a designação de Estrada da Beira. Por ela faziam, outrora, suas jornadas os estudantes que vinham das bandas da Estrela, em azémolas ajoujadas com roupas e carnes de fumeiro para a Lusa-Atenas e por ela regressavam, nas férias grandes, aos pátrios lares, da beira-serra. Històricamente, essa estrada velha, em muitos pontos decalcada pela ampla e macia estrada actual, está ligada para cima da Foz de Arouce, à memoràvel retirada da terceira invasão napoleónica, na primavera de 1811. Alguns dos seus pontos de vistas não esquecem. Nêsse caso está o panorama que se desvenda do alto da Mucela, ao deparar-se com o vale do Alva. (...)»

Como já se percebeu, a Estrada da Beira não era propriamente para aqui chamada. Apenas e a propósito da volta à Srª da Asneira

[5]. Em tempo: Originalmente havia escrito «pedroguense», referindo-me à origem da imagem que abre este artigo. Errei, que já não lembro de tudo... 
Trata-se na realidade de um postal editado em Figueiró dos Vinhos, pela Casa Godinho, por volta do ano de 1905. E o exemplar que possuo circulou entre 29 e 30 de Jul.1909, enviado pelo filho Luiz a Manuel Henrique Pinto. A foto foi posteriormente reenquadrada e tratada, mas a origem é esta. Fica, pois, a emenda e a chamada de atenção. 
31 Ago.2020. LBG.



segunda-feira, 1 de junho de 2020

Os “sacaninhas” dos “putos”

(mais uma crónica de “M. Henrique Pinto”)


Como já foi dito e redito, de 1890 a 1896, “eu” e o “meu” amigo Malhoa passámos em revista a vida dos cachopos que, entre a Fonte do Cordeiro e o Chão da Amoreira, em Figueiró dos Vinhos, por ali cresciam, por aquelas terras, entre matos e bosques, brincavam e labutavam. 
Sobre essas pinturas Malhoa deixaria mesmo escrito: «pintados em Figueiró dos Vinhos, na Fonte do Cordeiro, servindo de modelo para os […] quadros o[s] filho[s] do Eduardo, então rendeiro da Fonte do Cordeiro, propriedade da família Serra».


A primeira vez que os trouxemos a Lisboa, à Exposição inaugural do Grémio (1891), eram apenas o Noé e a Preciosa os protagonistas. Os dois manos retratados pelo Malhoa em Noé e Preciosa, 1891, precisamente. O rapaz por “mim” apanhado n’A caça dos taralhões, 1891. Ambos colheita do fim de verão anterior, como é evidente.


Agradaram. Ao público e à generalidade da crítica. Particularmente o “meu” amigo Noé n’A caça dos taralhões.
E tanto agradou, que até aconteceram umas coisas meio estranhas. Contrariando os famigerados estatutos acabadinhos de aprovar, nessa primeira exposição não seriam atribuídos quaisquer prémios.


A talhe de foice, já que vem a propósito, respiguemos alguma da crítica, a então “mais consensual”, digamos assim. [1]
Depois de muitos elogios ao “meu” quadro, à figura, à paisagem, lá se desencanta «um leve senão, um defeito de desenho; aquela perna esquerda é por demais comprida. No que diz respeito à paisagem só lastimamos que sendo tão bem feita, se recinta immenso da falta de côr local.» [sempre «a côr local»!? como se a esperta criatura alguma vez houvesse posto pé em Figueiró… e da «côr local» conhecesse mais que a do Jardim da Estrela…]. Conclui dizendo: «E é sobre este ponto que desejamos chamar a attenção do sr. Pinto que na verdade nos authorisa a esperarmos muito da sua bôa vontade e manifesto talento, e a quem por esse motivo colocamos em primeiro logar» [o sublinhado é meu, para se perceber bem].
Logo depois, seguem-se os habituais [e merecidos] elogios ao Silva Porto. Mas, hélas!, às tantas diz-se isto: «De todas as 15 telas d’este artista, a que mais chama as attenções do publico pelas suas dimensões e mesmo pela scena que reproduz, é, com franqueza, a que menos nos encanta (…) À porta da venda” é uma tela de dimensões avantajadas, figurando um desses carros de recoveiro de Torres, que todos os que tem percorrido as estradas dos arredores de Lisboa conhecem bem». E prossegue: «O quadro é bem pintado, nem outra cousa era de esperar; a scena é verdadeira, mas tudo aquillo é tão arranjado, a carroça tão limpinha de mais, tão nova que concorre para tornar a tela pouco interessante». 
E lá ficou o caldo entornado: o que era para ser, já o (não) era!


O “meu” quadro A caça dos taralhões acabou comprado pelo rei, o Senhor D. Carlos. [Ainda foi à Exposição de Berlin (1896), depois disso não há meio de se saber dele…]. O quadro do Porto, À porta da venda, foi-o pela rainha Senhora Dona Amélia. E, assim, ficaríamos ambos contentes. Mas os prémios, nicles!

Só no ano seguinte, só na 2ª exposição, é que prémios do Grémio Artístico seriam finalmente atribuídos. A Primeira medalha a Silva Porto «como iniciador da pintura moderna em Portugal» [e não exactamente pela Barca de passagem em Serreleis (Minho), 1892, como usualmente se diz]; Segundas medalhas a J. Malhoa e V. Salgado; Terceiras medalhas a Marques de Oliveira, L. Freire, A. Mello, Henrique Pinto, João Vaz e D. Emília Santos Braga; e mais umas Menções honrosas e umas Terceiras medalhas noutras categorias.

O Malhoa haveria de recusar o seu prémio, atribuído a O último interrogatório do Marquês de Pombal, 1891. Também a crítica de então consideraria o quadro uma boa duma pintura, «magnífica» mesmo. Mas logo centrou defeitos quanto a um certo “achincalhamento” “jesuítico” da figura do Marquês [como se a “culpa” fora do Malhoa, ou do Pinheiro Chagas que descrevera a cena que Malhoa pintou (ou talvez por isso mesmo), em vez de ser fruto da Viradeira e dos esbirros da D. Maria I… Pontos de vista!?].


























“Eu” lá me contentei com uma Terceira medalha, atribuída ao “meu” Adormecido, 1891. Mais uma vez com o Noé, ainda pelo Chão da Amoreira, desta vez com o pastorinho tirando uma sesta depois do almoço, enquanto as cabras pastavam. [Malhoa também o pintou, mas acordado e Gritando ao rebanho].
[E, já nem “me lembro” se por toda esta cega-rega, certo é que não pus os pés na exposição seguinte - a única, entre Leão, Grémio e Sociedade, a que faltei.]


Deixemos isto. Voltemos à criançada. Afinal, hoje é o dia deles.


Depois do Noé e da Preciosa [ao Noé, também "eu" já fizera antes rápido retrato], veio o resto da ranchada de filhos do Eduardo Dias Coelho e da Tereza da Silva, os rendeiros da quinta da Fonte do Cordeiro. Vieram o amigo António [também teve "por mim" retrato alinhavado], o Venâncio, o Maximino, todos em múltiplos e variados preparos, por "mim" ou pelo Malhoa registados para a posteridade. Talvez ainda o Adelino ou o Zé. Quem sabe se a Aida ou o Saúl numas outras sestas, numas outras ceifas…


Estas são histórias já aqui contadas e recontadas ou apenas referidas, mas que podeis sempre ler de novo (carregando nas ligações coloridas) .

De novo, mesmo de novo, apenas uma coisinha, da qual só me “relembrei” faz algum tempo e está ainda por contar.
É que o “malandrote” do Noé, nascido a 26 Abr.1883, foi baptizado na Igreja de S. João Baptista a 14 de Maio desse mesmo ano. Teve por Madrinha uma tal de Maria da Conceição, solteira, a única que, para além do padre «coadjuctor» Diogo Baetta e Vasconcellos, sabia assinar o registo. Assinou «Maria da Conceição Almeida».


Passados uns meses, quando “eu” e o Malhoa arribámos pela primeira vez a Figueiró, haveríamos de a conhecer. Era a filha da Tia do Simões d’Almeida. a Senhora que nos deu abrigo. E foi fogo que arde sem se ver! Dois anos depois, na mesma igreja, a 3 Ago.1885, lá nos casámos.

Entretanto o petiz, o pequeno Noé foi crescendo… e juntando mais irmãos.

Percebem agora quem é que tinha de abrir os cordões à bolsa, lá pela Páscoa, à conta do folar para o afilhado?!
E percebem também quem foi, afinal, o mecenas daquela treta da «Escola Naturalista de Figueiró do Vinhos» [a «escola» cujos Mestres foram o sr. Pinto e o sr. Malhoa, e onde os discípulos não eram mais que o Manel e o Zé]. Perceberam?!
Ainda bem.

Que foi com gosto. 
E com muita amizade por todos aqueles putos reguilas.

1 Jun.2020. MHP (por interposta pessoa)

_____________________________________
[1]. Refiro, obviamente a crítica publicada n’O Occidente, nº441, de 21 Mar.1891, a p.67. E dessa vez assinada «A.A.», muito provavelmente o sr. Abel Acácio.

Todavia, quanto ao particular da «côr local» [recorrentemente tão cara ao sr. Abel Acácio e a mais uns tantos, cujos gostos pessoais iam mais para a hortaliça com rama…], é justo recordar o que outros críticos, porque devotos de Stº Humberto e habituados a calcorrear matos e montes atrás de uma lebre ou de uma perdiz, disseram a tal propósito. Refiro-me particularmente ao sr. Fialho d’Almeida e ao sr. Zacharias d’Aça que, embora nunca hajam estado pelo Chão da Amoreira, sentiram imediatamente tal paisagem como vera e realista pintura. Fica o texto do sr. d’Aça:



quarta-feira, 27 de maio de 2020

DA PINTVRA ANTIGVA [em paredes]

e

Da Fabrica que faleçe ha [Villa de Figueiró] [1]


Auto-retrato de Francisco d’Olanda, dando o seu livro à malícia do tempo, in De Aetatibus Mundi Imagines











.
Eu, se calhar, fazia melhor em estar calado.
Mas acabo de pagar o IMI. E fi-lo de uma só vez!
[Que me lembro sempre de uma conversa com a Senhora Vereadora, e minha querida amiga Marta, em que ela se lamentava desta coisa das prestações atrasar os recebimentos do Município. Faço-o em Figueiró, com outras Câmaras aproveito a benesse.]
Assim, porque contribuindo, ainda que com umas centenas de euros, para a coisa, sinto-me no direito de também aqui mandar uns bitaites.

Diz que a «Câmara Municipal [de Figueiró dos Vinhos] recupera as cores originais do edifício e das janelas». Depois, tanto se fala em «recuperar o tom original das paredes», como na «retoma da cor específica original» [coisas, tom e cor, bem distintas]. Diz também que tal «mereceu demorada pesquisa». E pespega-nos com uma foto dos velhos Paços do Concelho (creio que c.1905).
Nessa foto, apesar de ser a p&b (ou sépia, no original), percebem-se os paramentos exteriores pintados num tom fortíssimo, e pode-se entender a cor como uma caiação à base de uma terra escura – provavelmente não um ocre (que na foto seria por certo mais claro), mas possivelmente um almagre (oxidum rubrum ferri) [2] ou outra terra vermelha.



Para que todos percebam, sem ser preciso «demorada pesquisa» ou deitarmo-nos a adivinhar, e porque foi uso generalizado por todo o séc.XIX em palácios, conventos e outros edifícios públicos, em linguagem corrente, falo de “amarelo quase torrado” (o que, parece, não seria) ou “vermelho sangue de boi”… [Também se usou, embora menos, o azul e, mesmo, o verde, variando muito, então sim, a intensidade do tom].
É, pelo menos, o que a foto nos mostra.

E isto, a ser assim, assusta! Assusta, e muito!

Mas pode ser que não seja… pode a foto ser apenas uma ilustração de circunstância…
[Isto pensava eu! até voz amiga me chamar a atenção de ali, na outra foto, por debaixo dos panos (os dos andaimes), já se ver a fachada posterior enrubescida de vergonha. A coisa vai mesmo de vento em pôpa!?… Mas prossigamos, como se ignorantes fossemos]

Afinal, qual seria «a cor específica original»? E de qual «edifício dos Paços do Concelho» estaremos a falar?




A mais antiga imagem que conheço [mas isto sou eu, um não conhecedor] do edifício da Câmara é uma gravura a p&b, publicada na Illustração Portugueza em 12 Jul.1886.
Não sabendo se por fantasia do artista ou por ter sido mesmo assim, vemos um edifício simples mas digno, bem de finais de XIX. Aparentemente com belas cantarias trabalhadas: nos cunhais, nas pilastras que enquadram o módulo central de entrada, no soco do embasamento. Aparentemente também em cantaria seria o listel que marcava a separação do andar nobre e do piso térreo. [Ora, nada disto veremos nas fotos posteriores?!]. Também as cantarias que emolduram os vãos aparentam, na gravura, uma bem maior imponência face ao que veremos depois em fotografias…. Igualmente a caixilharia apresenta-se aqui bem mais rica do que a veremos fotografada. [Sobre tudo isto, não é crível que tenha havido mudanças tão radicais ente 1886 e 1897 ou 1905…].
Olhando a gravura, e face à profusão de cantaria, pensaremos imediatamente que o revestimento do paramento não fosse outro que caiado a branco…
[Mas, lá está, tudo isto pode não passar da fantasia do artista… e a realidade ter sido outra bem diversa...]



De 1897, publicada n’O Século a 18 Jul., há uma outra. Mais próxima das fotos que virão a seguir, pelo que as considerações serão as mesmas.
Quanto à cor, esta gravura deixa-nos completamente em branco!





Posteriores àquelas gravuras, existem imagens da antiga Casa da Câmara já em fotografia [suporte onde a fantasia tende a ser mais comedida]. Eis duas [e aqui já as paredes são escuras]. Um postal editado pela «Casa Godinho» c.1905, e um outro já bem posterior, finais da década de 20, salvo erro.
As diferenças principais estão na iluminação pública – a primeira mostra lampiões baixos para serem acesos a lume e manualmente, a segunda mostra candeeiros inacessíveis, possivelmente já eléctricos [e ainda um poste eléctrico ou telefónico à esquina do sr. Joãozinho da Praça]. Na primeira foto ainda lá está a coroa sobre o escudo nacional, na outra o símbolo monárquico desapareceu.
Depois de vermos a primeira gravura, surpreendemo-nos com estas duas fotografias. Até parece que são de uma outra coisa!? A riqueza aparente das cantarias desapareceu quase por completo. Parecem resumir-se às molduras dos vãos [e mais pobrezitas, por sinal] e ao soco [pouco maior que um rodapé]. Cunhais, pilastras, cornijas, empenas do frontão, tudo parece agora feito em massa ou, quando muito e nalgumas partes, num mísero forro de pedra serrada… [ou nem isso].
[Percebe-se agora que a gravura de 1886 não passou mesmo da fantasia do artista e não deverá ter alguma vez correspondido à verdade. Ou, quem sabe, corresponda a um esboço do projecto idealizado…?! Portanto, nunca saberemos se alguma vez os velhos Paços do Concelho foram caiados a branco…]
Por outro lado, nestas duas fotografias, vê-se perfeitamente que os panos de reboco eram pintados numa cor forte, que as escorrências da água sob os peitoris lá iam marcando a pintura ou, vinte anos depois, que esta se encontrava toda manchada a descolorir… [o que é perfeitamente normal e expectável].
Fosse como fosse, fácil é perceber a razão da Casa da Câmara ter sido caiada a almagre [ou outra coisa parecida]. Confrontada então pela massa imponente dos três pisos de elevado pé direito da que fora a antiga Torre dos Souza, tendo quase às ilhargas o Solar, de um lado, e a Matriz do outro, à pobre Casa da Câmara só a força de um forte colorido podia emprestar presença e dignidade inerentes ao seu lugar central no Largo mais importante da Vila.

A velha Casa da Câmara, entre o Solar e a Matriz, tendo pela frente o que restava da Torre 
dos Vasconcellos e Souza. Só mesmo aquela corzinha a safava…



O truque da cor nos edifícios sempre fez milagres [ou antes pelo contrário] e é coisa sabida há muito, muito tempo. [Os nossos bisavós sabiam-no, e não eram assim burros de todo…]

Ficamos é sem saber se sempre assim foi, ou se e quando terá mudado de cor… E, finalmente, qual seria exactamente essa cor e qual o tom? [mas, isto, deixamos para quem sabe…].

Passando trinta e poucos anos em Monarquia e toda a primeira República, aquela fachada simples mas de escorreito desenho, aquele rectângulo ao baixo coroado por um pequeno frontão aberto no centro, aquele volume modesto mas de forte colorido lá foi cumprindo funções - quer enquanto edifício público quer como fecho urbano do nascente da Praça. Meio século passado em tais serviços, vieram tempos novos. E logo tomou a Câmara o dr. Barreiros.
«Simbolisa o desleixo, o abandono dos povos, o atrazo do país» - assim se referirá ele ao velho edifício.

Certo é, dez anos passados do 28 de Maio [está agora a fazer 84 anos], o dr. Barreiros e a sua Comissão Administrativa apresentavam aos figueiroenses os novos Paços do Concelho. «Símbolo de dura luta (…) que a comissão administrativa da Câmara Municipal tinha reconstruido e ampliado, e que um incêndio devorou na noite de 28 para 29 de Maio de 1936» - dirá a propósito.
Não durou muito, portanto. Nas vésperas da sua inauguração, já com grande parte do recheio e dos arquivos públicos instalados, boa parte do novo edifício ardeu. Assim foi.

Na verdade e simplificando, tratava-se do velho edifício com mais um andar em cima. Ocupava exactamente a mesma superfície de terreno, a frente apresentava os mesmos sete vãos, as ilhargas os mesmos quatro. Em vez de dois, tinha três pisos. Talvez mais uns aproveitamentos sob o telhado. E possivelmente bastantes alterações interiores.
A única fotografia que se conhece [quero dizer, que eu conheço] é esta, publicada no livro Doze Anos de Administração Municipal (1930-1942), escrito por [ou para] o dr. Manuel Simões Barreiros. E mostra o edifício logo após o incêndio.



[Como qualquer um já percebeu, Barreiros reconstruiu e ampliou o velho edifício; este, praticamente pronto, ardeu; depois, como veremos adiante, o dr. Barreiros voltará a reconstruí-lo de novo, ali por 1940/42. Uma história dramática, de perseverança, como era apanágio de Barreiros, mas simples e clara – ou não?!
Pois esta não é a história que se pode ler na placa que lá está à porta?! Mistérios de profundidade conhecedora - é o que é.]

Olhemos a fotografia.
Aparentemente o edifício estaria pintado de branco.
As janelas do piso térreo parecem ter ainda as mesmas cantarias. A entrada faz-se agora sob um pórtico abobadado e ligeiramente projectado para o exterior, sobre o qual assenta o varandim do Salão Nobre. O pórtico, tal como o arranque dos cunhais, parecem ser feitos em aparelho de pedras almofadadas – na verdade, serão em massa fingindo tal aparelho.
No andar nobre, os vãos parecem ser ainda os mesmos, mas com algumas alterações. Em cada corpo lateral, a janela do meio foi rasgada em sacada. Todos os vãos deste andar aparecem agora rematados superiormente por arremedos de frontões, meio neo-joaninos, e que parecem ligar-se ou prolongar a cantaria das molduras [as partes ardidas, mostram que também aqui era a fingir].
No segundo andar, afinal o novo piso, os vãos aparentam ter menos altura [um pouco à maneira dos palácios de setecentos].
As pilastras do corpo central e as dos cunhais parecem ser, ao longo dos andares, em massa e pintadas de escuro.

Logo, logo após o incêndio dos novos Paços do Concelho, ainda o borralho fumegava, já se discutia nos jornais sobre a bondade da reconstrução do edifício sinistrado ou, pelo contrário, as vantagens de construir noutro local.
[Houve mesmo «Projecto de Urbanização do Local Escolhido para o Novo Edifício dos Paços do Concelho de Figueiró dos Vinhos», tal como uns estudos para o próprio e dito cujo. Tudo muito Deus, muita Pátria e ainda mais Autoridade, como era de função. Para além dos novíssimos Paços do Concelho, o plano previa uma nova Igreja, tão grande como a Matriz, Escolas e outros equipamentos. Fora a Escola e a Casa do Povo, tudo não passou do papel, e ainda bem.]
No entanto, paralela e avisadamente, lá se iam fazendo as reparações no edifício ardido. No relatório «A gerência municipal de 1940», datado de 2 Nov. desse ano, Barreiros diz às tantas «reconstruíram-se, em parte, os antigos Paços do Concelho, onde já funcionam tôdas as repartições públicas» (BARREIROS, op.cit. p.106). Três anos depois, ao publicar no livro esta fotografia, dirá «é um símbolo de perseverança, da vontade de vencer e um sinal de vitória – representa os Paços do Concelho, reconstruídos de novo e tal qual se encontram em 1943».



Salvo eventuais alterações interiores [que, agora e para o caso, nada interessam], o que vemos é o mesmíssimo edifício de 1936. Talvez sejam outras a urnas que, sobre a cornija, rematam as pilastras e os cunhais. E parece terem desparecido, ao nível do andar nobre, seja lá o que fosse que unia visualmente as vergas de cantaria aos frisos arremedando frontões joaninos. Os frisos, em massa percebe-se agora, por lá ficaram, desasados e meio ridículos…

E é este edifício [ou melhor, o ampliado em 1936] que chegou aos nossos dias.



Chegados nós aqui, é tempo de repetir a pergunta: de qual «edifício dos Paços do Concelho» estaremos a falar?
Porque, como toda a gente perceberá, o edifício não é o mesmo. Houve um, com dois pisos, que durou perto de 60 anos. E há outro [se bem que acrescentado sobre o primeiro] que assim existe há longos 84 anos.
Houve um com determinada volumetria. Há um outro cuja volumetria é, grosso modo, 50% maior.
[Eu sei que a matemática não é bem o forte, mas vejam lá se os números, os do tempo e os do espaço, lhes entram nas cabeças…]

Tentemos visualmente. 
[Já nem digo para irem experimentar aquele vestidinho larocas que levaram ao primeiro baile do liceu… agora, uns bons aninhos depois e aqueles quilinhos a mais, percebem como ficariam ridículas/os?]
Passa-se o mesmo com os edifícios. De melhor ou menos bom desenho [e, francamente, o outro era bem melhor que o actual], merecem também respeito e consideração. E ataviam-se de acordo com as suas características e circunstâncias.
Lembram-se de, lá atrás, explicar as razões para a velha Casa da Câmara ter sido pintada com o tal almagre forte? Por ser modesta em altura, confrontada pelo enorme volume da desaparecida Torre, pelas fortes presenças do Solar e da Matriz, e que só o peso de um forte colorido lhe pode dar a presença e dignidade inerentes ao seu importante lugar no Largo central da Vila. E de, em comentário, dizer que os nossos bisavós não eram assim burros de todo… Lembram?
Pois é. Agora será precisamente ao contrário. O novo grande volume do edifício da Câmara, pintado a “sangue de boi” (ou coisa que o valha), irá esmagar tudo o que em volta se implanta. [E nós, bisnetos e trinetos dos velhos sabidos, somos, pelo visto, meio burros. Percebemos pouco da poda, e gostamos de nos armar em parvos.]

Nem vou perder tempo com muitas considerações técnicas sobre o comportamento das actuais tintas, em especial as de forte colorido, quanto às escorrências e às manchas da água das chuvas, sequer sobre o comportamento dos pigmentos vermelhos sob os raios ultra-violetas do Sol… Não vale a pena. Logo se verá.

O que está feito, está feito! E seja o que Deus, nosso Senhor, quiser
Lhe peço que não haja muitos a virem ali da dos Passarões, rua da Torre acima, já bem aviados, imbuídos ainda de alguma afición, que marrem com a coisa e resolvam citar lá do meio da praça: - Ó voi! Ó ba… Eh, bicho lindo! Era dispensável. 
E não havia necessidade.


27 Mai.2020. LBG.
__________________________
[1]. Glosa a dois títulos de Francisco d’Olanda (1517/8-1584/5):
Da Pintura Antigua. Lisboa, 1548.
Da Fabrica que faleçe ha Çidade de Lysboa. Por frãçisco dolãda, Anno de 1571.
[2]. ASSIS RODRIGUES, Francisco de - Diccionario Technico e Historico de Pintura, Esculptura, Architectura e Gravura. Lisboa, Imprensa Nacional, 1876.