quarta-feira, 27 de maio de 2020

DA PINTVRA ANTIGVA [em paredes]

e

Da Fabrica que faleçe ha [Villa de Figueiró] [1]


Auto-retrato de Francisco d’Olanda, dando o seu livro à malícia do tempo, in De Aetatibus Mundi Imagines











.
Eu, se calhar, fazia melhor em estar calado.
Mas acabo de pagar o IMI. E fi-lo de uma só vez!
[Que me lembro sempre de uma conversa com a Senhora Vereadora, e minha querida amiga Marta, em que ela se lamentava desta coisa das prestações atrasar os recebimentos do Município. Faço-o em Figueiró, com outras Câmaras aproveito a benesse.]
Assim, porque contribuindo, ainda que com umas centenas de euros, para a coisa, sinto-me no direito de também aqui mandar uns bitaites.

Diz que a «Câmara Municipal [de Figueiró dos Vinhos] recupera as cores originais do edifício e das janelas». Depois, tanto se fala em «recuperar o tom original das paredes», como na «retoma da cor específica original» [coisas, tom e cor, bem distintas]. Diz também que tal «mereceu demorada pesquisa». E pespega-nos com uma foto dos velhos Paços do Concelho (creio que c.1905).
Nessa foto, apesar de ser a p&b (ou sépia, no original), percebem-se os paramentos exteriores pintados num tom fortíssimo, e pode-se entender a cor como uma caiação à base de uma terra escura – provavelmente não um ocre (que na foto seria por certo mais claro), mas possivelmente um almagre (oxidum rubrum ferri) [2] ou outra terra vermelha.



Para que todos percebam, sem ser preciso «demorada pesquisa» ou deitarmo-nos a adivinhar, e porque foi uso generalizado por todo o séc.XIX em palácios, conventos e outros edifícios públicos, em linguagem corrente, falo de “amarelo quase torrado” (o que, parece, não seria) ou “vermelho sangue de boi”… [Também se usou, embora menos, o azul e, mesmo, o verde, variando muito, então sim, a intensidade do tom].
É, pelo menos, o que a foto nos mostra.

E isto, a ser assim, assusta! Assusta, e muito!

Mas pode ser que não seja… pode a foto ser apenas uma ilustração de circunstância…
[Isto pensava eu! até voz amiga me chamar a atenção de ali, na outra foto, por debaixo dos panos (os dos andaimes), já se ver a fachada posterior enrubescida de vergonha. A coisa vai mesmo de vento em pôpa!?… Mas prossigamos, como se ignorantes fossemos]

Afinal, qual seria «a cor específica original»? E de qual «edifício dos Paços do Concelho» estaremos a falar?




A mais antiga imagem que conheço [mas isto sou eu, um não conhecedor] do edifício da Câmara é uma gravura a p&b, publicada na Illustração Portugueza em 12 Jul.1886.
Não sabendo se por fantasia do artista ou por ter sido mesmo assim, vemos um edifício simples mas digno, bem de finais de XIX. Aparentemente com belas cantarias trabalhadas: nos cunhais, nas pilastras que enquadram o módulo central de entrada, no soco do embasamento. Aparentemente também em cantaria seria o listel que marcava a separação do andar nobre e do piso térreo. [Ora, nada disto veremos nas fotos posteriores?!]. Também as cantarias que emolduram os vãos aparentam, na gravura, uma bem maior imponência face ao que veremos depois em fotografias…. Igualmente a caixilharia apresenta-se aqui bem mais rica do que a veremos fotografada. [Sobre tudo isto, não é crível que tenha havido mudanças tão radicais ente 1886 e 1897 ou 1905…].
Olhando a gravura, e face à profusão de cantaria, pensaremos imediatamente que o revestimento do paramento não fosse outro que caiado a branco…
[Mas, lá está, tudo isto pode não passar da fantasia do artista… e a realidade ter sido outra bem diversa...]



De 1897, publicada n’O Século a 18 Jul., há uma outra. Mais próxima das fotos que virão a seguir, pelo que as considerações serão as mesmas.
Quanto à cor, esta gravura deixa-nos completamente em branco!





Posteriores àquelas gravuras, existem imagens da antiga Casa da Câmara já em fotografia [suporte onde a fantasia tende a ser mais comedida]. Eis duas [e aqui já as paredes são escuras]. Um postal editado pela «Casa Godinho» c.1905, e um outro já bem posterior, finais da década de 20, salvo erro.
As diferenças principais estão na iluminação pública – a primeira mostra lampiões baixos para serem acesos a lume e manualmente, a segunda mostra candeeiros inacessíveis, possivelmente já eléctricos [e ainda um poste eléctrico ou telefónico à esquina do sr. Joãozinho da Praça]. Na primeira foto ainda lá está a coroa sobre o escudo nacional, na outra o símbolo monárquico desapareceu.
Depois de vermos a primeira gravura, surpreendemo-nos com estas duas fotografias. Até parece que são de uma outra coisa!? A riqueza aparente das cantarias desapareceu quase por completo. Parecem resumir-se às molduras dos vãos [e mais pobrezitas, por sinal] e ao soco [pouco maior que um rodapé]. Cunhais, pilastras, cornijas, empenas do frontão, tudo parece agora feito em massa ou, quando muito e nalgumas partes, num mísero forro de pedra serrada… [ou nem isso].
[Percebe-se agora que a gravura de 1886 não passou mesmo da fantasia do artista e não deverá ter alguma vez correspondido à verdade. Ou, quem sabe, corresponda a um esboço do projecto idealizado…?! Portanto, nunca saberemos se alguma vez os velhos Paços do Concelho foram caiados a branco…]
Por outro lado, nestas duas fotografias, vê-se perfeitamente que os panos de reboco eram pintados numa cor forte, que as escorrências da água sob os peitoris lá iam marcando a pintura ou, vinte anos depois, que esta se encontrava toda manchada a descolorir… [o que é perfeitamente normal e expectável].
Fosse como fosse, fácil é perceber a razão da Casa da Câmara ter sido caiada a almagre [ou outra coisa parecida]. Confrontada então pela massa imponente dos três pisos de elevado pé direito da que fora a antiga Torre dos Souza, tendo quase às ilhargas o Solar, de um lado, e a Matriz do outro, à pobre Casa da Câmara só a força de um forte colorido podia emprestar presença e dignidade inerentes ao seu lugar central no Largo mais importante da Vila.

A velha Casa da Câmara, entre o Solar e a Matriz, tendo pela frente o que restava da Torre 
dos Vasconcellos e Souza. Só mesmo aquela corzinha a safava…



O truque da cor nos edifícios sempre fez milagres [ou antes pelo contrário] e é coisa sabida há muito, muito tempo. [Os nossos bisavós sabiam-no, e não eram assim burros de todo…]

Ficamos é sem saber se sempre assim foi, ou se e quando terá mudado de cor… E, finalmente, qual seria exactamente essa cor e qual o tom? [mas, isto, deixamos para quem sabe…].

Passando trinta e poucos anos em Monarquia e toda a primeira República, aquela fachada simples mas de escorreito desenho, aquele rectângulo ao baixo coroado por um pequeno frontão aberto no centro, aquele volume modesto mas de forte colorido lá foi cumprindo funções - quer enquanto edifício público quer como fecho urbano do nascente da Praça. Meio século passado em tais serviços, vieram tempos novos. E logo tomou a Câmara o dr. Barreiros.
«Simbolisa o desleixo, o abandono dos povos, o atrazo do país» - assim se referirá ele ao velho edifício.

Certo é, dez anos passados do 28 de Maio [está agora a fazer 84 anos], o dr. Barreiros e a sua Comissão Administrativa apresentavam aos figueiroenses os novos Paços do Concelho. «Símbolo de dura luta (…) que a comissão administrativa da Câmara Municipal tinha reconstruido e ampliado, e que um incêndio devorou na noite de 28 para 29 de Maio de 1936» - dirá a propósito.
Não durou muito, portanto. Nas vésperas da sua inauguração, já com grande parte do recheio e dos arquivos públicos instalados, boa parte do novo edifício ardeu. Assim foi.

Na verdade e simplificando, tratava-se do velho edifício com mais um andar em cima. Ocupava exactamente a mesma superfície de terreno, a frente apresentava os mesmos sete vãos, as ilhargas os mesmos quatro. Em vez de dois, tinha três pisos. Talvez mais uns aproveitamentos sob o telhado. E possivelmente bastantes alterações interiores.
A única fotografia que se conhece [quero dizer, que eu conheço] é esta, publicada no livro Doze Anos de Administração Municipal (1930-1942), escrito por [ou para] o dr. Manuel Simões Barreiros. E mostra o edifício logo após o incêndio.



[Como qualquer um já percebeu, Barreiros reconstruiu e ampliou o velho edifício; este, praticamente pronto, ardeu; depois, como veremos adiante, o dr. Barreiros voltará a reconstruí-lo de novo, ali por 1940/42. Uma história dramática, de perseverança, como era apanágio de Barreiros, mas simples e clara – ou não?!
Pois esta não é a história que se pode ler na placa que lá está à porta?! Mistérios de profundidade conhecedora - é o que é.]

Olhemos a fotografia.
Aparentemente o edifício estaria pintado de branco.
As janelas do piso térreo parecem ter ainda as mesmas cantarias. A entrada faz-se agora sob um pórtico abobadado e ligeiramente projectado para o exterior, sobre o qual assenta o varandim do Salão Nobre. O pórtico, tal como o arranque dos cunhais, parecem ser feitos em aparelho de pedras almofadadas – na verdade, serão em massa fingindo tal aparelho.
No andar nobre, os vãos parecem ser ainda os mesmos, mas com algumas alterações. Em cada corpo lateral, a janela do meio foi rasgada em sacada. Todos os vãos deste andar aparecem agora rematados superiormente por arremedos de frontões, meio neo-joaninos, e que parecem ligar-se ou prolongar a cantaria das molduras [as partes ardidas, mostram que também aqui era a fingir].
No segundo andar, afinal o novo piso, os vãos aparentam ter menos altura [um pouco à maneira dos palácios de setecentos].
As pilastras do corpo central e as dos cunhais parecem ser, ao longo dos andares, em massa e pintadas de escuro.

Logo, logo após o incêndio dos novos Paços do Concelho, ainda o borralho fumegava, já se discutia nos jornais sobre a bondade da reconstrução do edifício sinistrado ou, pelo contrário, as vantagens de construir noutro local.
[Houve mesmo «Projecto de Urbanização do Local Escolhido para o Novo Edifício dos Paços do Concelho de Figueiró dos Vinhos», tal como uns estudos para o próprio e dito cujo. Tudo muito Deus, muita Pátria e ainda mais Autoridade, como era de função. Para além dos novíssimos Paços do Concelho, o plano previa uma nova Igreja, tão grande como a Matriz, Escolas e outros equipamentos. Fora a Escola e a Casa do Povo, tudo não passou do papel, e ainda bem.]
No entanto, paralela e avisadamente, lá se iam fazendo as reparações no edifício ardido. No relatório «A gerência municipal de 1940», datado de 2 Nov. desse ano, Barreiros diz às tantas «reconstruíram-se, em parte, os antigos Paços do Concelho, onde já funcionam tôdas as repartições públicas» (BARREIROS, op.cit. p.106). Três anos depois, ao publicar no livro esta fotografia, dirá «é um símbolo de perseverança, da vontade de vencer e um sinal de vitória – representa os Paços do Concelho, reconstruídos de novo e tal qual se encontram em 1943».



Salvo eventuais alterações interiores [que, agora e para o caso, nada interessam], o que vemos é o mesmíssimo edifício de 1936. Talvez sejam outras a urnas que, sobre a cornija, rematam as pilastras e os cunhais. E parece terem desparecido, ao nível do andar nobre, seja lá o que fosse que unia visualmente as vergas de cantaria aos frisos arremedando frontões joaninos. Os frisos, em massa percebe-se agora, por lá ficaram, desasados e meio ridículos…

E é este edifício [ou melhor, o ampliado em 1936] que chegou aos nossos dias.



Chegados nós aqui, é tempo de repetir a pergunta: de qual «edifício dos Paços do Concelho» estaremos a falar?
Porque, como toda a gente perceberá, o edifício não é o mesmo. Houve um, com dois pisos, que durou perto de 60 anos. E há outro [se bem que acrescentado sobre o primeiro] que assim existe há longos 84 anos.
Houve um com determinada volumetria. Há um outro cuja volumetria é, grosso modo, 50% maior.
[Eu sei que a matemática não é bem o forte, mas vejam lá se os números, os do tempo e os do espaço, lhes entram nas cabeças…]

Tentemos visualmente. 
[Já nem digo para irem experimentar aquele vestidinho larocas que levaram ao primeiro baile do liceu… agora, uns bons aninhos depois e aqueles quilinhos a mais, percebem como ficariam ridículas/os?]
Passa-se o mesmo com os edifícios. De melhor ou menos bom desenho [e, francamente, o outro era bem melhor que o actual], merecem também respeito e consideração. E ataviam-se de acordo com as suas características e circunstâncias.
Lembram-se de, lá atrás, explicar as razões para a velha Casa da Câmara ter sido pintada com o tal almagre forte? Por ser modesta em altura, confrontada pelo enorme volume da desaparecida Torre, pelas fortes presenças do Solar e da Matriz, e que só o peso de um forte colorido lhe pode dar a presença e dignidade inerentes ao seu importante lugar no Largo central da Vila. E de, em comentário, dizer que os nossos bisavós não eram assim burros de todo… Lembram?
Pois é. Agora será precisamente ao contrário. O novo grande volume do edifício da Câmara, pintado a “sangue de boi” (ou coisa que o valha), irá esmagar tudo o que em volta se implanta. [E nós, bisnetos e trinetos dos velhos sabidos, somos, pelo visto, meio burros. Percebemos pouco da poda, e gostamos de nos armar em parvos.]

Nem vou perder tempo com muitas considerações técnicas sobre o comportamento das actuais tintas, em especial as de forte colorido, quanto às escorrências e às manchas da água das chuvas, sequer sobre o comportamento dos pigmentos vermelhos sob os raios ultra-violetas do Sol… Não vale a pena. Logo se verá.

O que está feito, está feito! E seja o que Deus, nosso Senhor, quiser
Lhe peço que não haja muitos a virem ali da dos Passarões, rua da Torre acima, já bem aviados, imbuídos ainda de alguma afición, que marrem com a coisa e resolvam citar lá do meio da praça: - Ó voi! Ó ba… Eh, bicho lindo! Era dispensável. 
E não havia necessidade.


27 Mai.2020. LBG.
__________________________
[1]. Glosa a dois títulos de Francisco d’Olanda (1517/8-1584/5):
Da Pintura Antigua. Lisboa, 1548.
Da Fabrica que faleçe ha Çidade de Lysboa. Por frãçisco dolãda, Anno de 1571.
[2]. ASSIS RODRIGUES, Francisco de - Diccionario Technico e Historico de Pintura, Esculptura, Architectura e Gravura. Lisboa, Imprensa Nacional, 1876.

Sem comentários:

Enviar um comentário

O seu comentário, contributo ou discordância é sempre benvindo. Será publicado logo que possível, depois de moderado pelo administrador. Como compreenderá, não publicaremos parvoíces... Muito obrigado.