domingo, 11 de novembro de 2012

O mistério do homem do gorro

Epístola aos crédulos


Anda a Igreja Católica, muito antes de Santo Agostinho, a tentar explicar o Mistério da Santíssima Trindade: a consubstanciação das Três Pessoas – Pai, Filho e Espírito Santo - n’Uma só.

Eu, bem mais modesto em meus propósitos, ando há quase um ano a tentar explicar que L’homme au capuchon, o Retrato do Exmº Sr. António Novais, e O Homem do gorro, 1901 – títulos segundo os catálogos do Salon 1901 (nºc.1369), SNBA 1902 (nºc.60), e Exposição Malhoa 1928 (nºc.33) – são uma e a mesma coisa. Mas parece que não há meio…!?
Com paciência de santo, tentemos de novo. Que uma publicação «razoável» teima em contrariar…


Comecemos pelo princípio – e no princípio era o verbo.

Escreve Malhoa, pelo seu próprio punho, no seu livro de «Receita e Despeza»: «Março de 1901- Despeza com a ida [refere-se, obviamente, ao Salon] dos dois quadros, “Volta da Romaria”, e “L’homme au Capuchon”, retrato do Antonio Novaes; e do retrato da D. Thereza Pereira da Costa, e retrato do D. Emilio Godinez pª a exposição de Madrid – 124$500» (sublinhado meu).
Pelo próprio Autor da obra, ficamos a saber do que se trata.

Chega? Não? Continuemos.

Diz-nos um célebre artigo, muito referido mas que parece ninguém leu, publicado logo em 1905, em The Studio [1]: «…The Man in the Hood, also of 1901, is one of the most striking of the master’s works; to prevent its leaving the country it was acquired by a group of artists and amateurs, who presented it to the nation for the National Museum...» (vai no inglês original, por causa de alguma falha na tradução, e a parte citada é de um dos últimos parágrafos, sobre as participações de Malhoa nos Salons internacionais entre 1897 e 1902). Note-se a referência à movimentação de artistas e amadores para a sua oferta ao Museu Nacional – episódio conhecido no que toca ao Retrato de Novais… Mais uma vez e para quem queira ver, confirma que se trata do mesmo quadro.

Ainda não chega? Vamos às Imagens – que não somos iconoclastas. E as imagens, quando não manipuladas, não mentem.

Mais abaixo podemos ver duas fotos da Grande Exposição de Homenagem a José Malhoa, realizada no salão da SNBA em 1928.
Contrariamente ao que muitas vezes é levianamente escrito, no Catálogo da Exposição [2] nunca é mencionada a presença do Retrato do Novais – nunca! Nem entre os 132 «Óleos», nem nos sequentes 14 «Retratos», tão pouco nos restantes 5 «Pasteis» ou entre 10 «Retratos» a pastel - o total das 161 obras catalogadas. Retrato do Novais, enquanto tal, não consta!
Como não consta em nenhuma das 98 estampas numeradas ou nas duas que abrem e fecham o livro!

            Aliás, é bom que se esclareça que muitas destas estampas nada têm que ver com as obras presentes na Exposição – são fotos, algumas únicas e portanto preciosas, que Malhoa guardara ao longo da vida, de muitas das suas obras. E, sem ser exaustivo e olhando só as primeiras vinte, logo notamos que À Missa das seis, Os Ouriços, Cócegas 1894, A Sesta (dos ceifeiros), A Olinda do lagar, com direito a belas fotos, são obras que não constam no catálogo, e que as fotos de Os Oleiros e de À passagem do combóio são as dos quadros que jaziam no fundo do Mediterrâneo ia para três décadas… Bom será, portanto, que se não confundam os bonecos com o conteúdo da Exposição.


O que encontramos registado no Catálogo da Exposição, com o nº 33, é «O Homem do gorro, T. [tela] 63x50 - 1901. Museu de Arte Contemporanea».
Alguém já se interrogou sobre que quadro seria este e como, se por hipótese fosse outra coisa qualquer, pode haver desaparecido do Museu? Não? Pois não, porque o quadro é este – este que aqui vemos na dita Exposição, ao lado de Dar de beber a quem tem sêde, (nºc.103) – o Retrato do fotógrafo António Novais, sem tirar nem pôr, sempre foi O Homem do gorro (nºc.33).

É por isto que a historiografia “oficial” do Retrato de Novais refere sempre, e bem, entre as exposições em que esteve presente, esta de 1928 – no meio da confusão… algo acaba por estar certo - nunca lhe consegue é atribuir um nº de catálogo - porque será? Falta-lhe sempre é o Salon de 1901 - falta importante, pois é aquele onde Malhoa recebe a Mention honorable, se bem que atribuída a Le retour de la fête. A dita historiografia “oficial” também nos descreve o Retrato de Novais deste modo: «Retrato de um amigo do pintor em busto de frente, de barba e bigode aloirados, vestido de negro sobre um fundo escuro, envergando uma capa nos ombros e um gorro de recorte renascentista na cabeça...» (o sublinhado é meu).

Porque - e esta é a verdade - L’homme au capuchon, o Retrato do Exmº Sr. António Novais, e O Homem do gorro, 1901, são uma e a mesma coisa. Diz o Malhoa, digo eu e dirá quem pense duas vezes.
Está bem e recomenda-se. No Museu de José Malhoa, nas Caldas da Rainha.



Já agora, que aqui estamos com estas fotos na frente, aproveitemos para confirmar uma outra história. História já antes explicada aqui e que, num momento de caridade cristã, tentei pessoalmente explicar a determinada criatura. Como, pela segunda vez, ao que lhe digo, faz precisamente o contrário, e o Senhor só nos ensina a dar por duas vezes a face, fica cumprido o preceito.

Vamos aos factos.
No mesmo Catálogo de 1928, lá aparece, com o nº 74, «Provocando. T. 70x80 – 1914. Ex.mº Snr. Cruz Magalhães».
Entre as estampas, encontramos com o nº XXXIV, Provocando, e com o nº XLI, A Provocante.



E qual destes quadros - como antes explicado, atreitos a trapalhação - esteve na dita Exposição de 1928? Qual? – Ó para ela ali, entre a segunda versão de Basta, meu pai! 1910 (nºc.55), mais dois outros quadrinhos difíceis de identificar, e À sombra da parreira (nºc.121), a serigaita atrevida de A Provocante, 1914 - afinal, o nºc.74, esta e não o outro - toda contentinha a olhar para nós!

Como é evidente! E como tudo indicava: a propriedade de Cruz Magalhães; as mediadas, então usadas ao invés, mais não seja a diferença de proporções entre uma coisa quase quadrada ou um rectângulo franco; a data e a confusão do título, que “oficialmente” ainda hoje continua trocado! Para quem quisesse pensar só um bocadinho…

Mas não! Uma "razoável" inteligência lucubrou durante uma década e permite-se agora afirmar quanto a esta tela, apesar de reconhecer as trocas de títulos - «Embora venha reproduzido no Catálogo de 1928, não fez parte da exposição» - e, quanto ao outro pequenino retrato vendido no Rio de Janeiro e por terras de Vera Cruz ainda perdido - «Esteve na Exposição de Homenagem, em 1928…», e tem o desplante de o "dar" de barato ao Cruz Magalhães!!!
Francamente! Dá para acreditar? Vale a pena um tipo perder tempo com coisas destas?

Concluindo, e em verdade vos digo: será bem mais fácil uma cabeça de cavalo, ainda que velha e rasgada, entrar no reino do Mestre que, mesmo só em espírito, o de certas cavalgaduras.
E duvidai, duvidai sempre de algo que d'ali venha.


11 Nov. 2012. LBG.

Adenda:

          E, já agora, fica também uma foto de uma das salas do Museu d'Arte Contemporânea, publicada ainda em 1916, onde lá vemos «O Homem do gorro», 1901, a espreitar por detrás dos jarrões...





5 Out. 2015. LBG.



[1] The Studio. London, Aug. 15, 1905, vol.35. nº149. p.246
[2] Que integra o Livro de Homenagem ao Grande Pintor José Malhoa – Realizada, com a exposição das suas obras, na Sociedade Nacional de Belas-Artes em Junho de 1928 – Com 100 reproduções de obras do Mestre e mais 3 ilustrações. Lisboa, 1928

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