sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O «Retrato do Sr. P. D. A. C.»

ou, em linguagem malhoesca,
como “elas” se criam…


Podia vir pra’qui mostrar-me surpreendido por, segundo o próprio autor, aquilo-que-era-para-ser-afinal-já-não-é-bem-assim-mas-continua-a-chamar-se-como-era–para-ser-e-afinal-não-foi. Chamemos-lhe, pois, a coisa. Ficamos também a saber – valha-nos isso – que fazer ou não parte da coisa, tanto faz. Que, diz-nos o autor – por uma vez modesto – não põe as mãos no fogo pelo que deixou de fora quer, mesmo, pelo que lá meteu dentro. Ainda bem. E, nisto, totalmente de acordo.
Podia vir pra’qui chorar a minha tristeza por, logo um dos que respondeu à chamada do Poeta - «…Qu’é dos Pintores do meu país estranho | Onde estão eles que não vêm pintar?» - logo um dos que antecipa um outro poeta - «…Aromas de urze e de lama | Dormi com eles na cama | Tive a mesma condição…» -, um Pintor assim, tão ligado à terra e suas gentes, continuar tão mal entendido. Confundir A morte do porco – Que grande calamidade! – Uma desgraça [1] – o registo duro de uma das maiores tragédias que pairam sobre a dura vida camponesa, com uma eventual «A Matança do Porco» - a ocasião de festa, de partilha, mais não seja a de tirar barriga da miséria quotidiana – é confundir tudo! É não olhar, não ver, não entender, nada querer saber do que Malhoa pinta. Bem podem depois vir com um alqueire de erudição, dois almudes de literatura estética… o mosto morreu, dali já não brota espírito! Maleita usual quando almofadinhas pipis falam d’alto do que não sabem, nem querem saber, porque lhes cheira demasiado a suor ou a estrume.
Podia vir pra’qui alardear a minha incredulidade por quem há um par de anos desfraldava a baeta vermelha da saia da Adelaide com definitiva consigna, venha agora pespegar a “outra”, a ex-bastarda, na capa do novo manifesto. E sem uma palavra, sequer um postalinho – como diria o outro - revisionismo e pim! Perdão, há por lá uma justificativa, argumento pífio, próprio de sargento lateiro - «a antiguidade é um posto!». Quanto ao resto, disse nada. Noblesse oblige, pum!
J.Malhoa fotografado por Carlos Relvas.
C. 1880/1885
Podia vir pra’qui exasperar-me por causa daqueles Nus [2] que continuam desgraçadamente atirados para o ano dos prodígios de 1918 – pura e sómente à custa de fofoca mal lida em correspondência alheia… Já os olhou? já os viu? já entendeu alguma vez tais quadros? «Não vale a pena! – diria Relvas, o velho Carlos, que disto percebia ele – quando ganham a crença nas cartas, digo, nas tábuas, de nada vale citá-los de largo…».
Podia vir pra’qui tentar resolver o paradoxo do quadro [3] comprado pelo R. Bernardelli ao Guilherme Rosa em 1902, só vir a ser pintado três anos depois. O meu amigo A. B. bem que explicou, o autismo não deixou.
Podia vir pra´qui estranhar a colecção de batatas da Dona Amélia - ele são paisagem com batatas, ele são batatas de género… - Sua Magestade era grande mas não comeria, por certo, tanto puré. Não será, afinal e mais uma vez, um só e o mesmo quadro? Crepúsculo, c.1891 [4]. Aquele que Fialho dizia, com a pilhéria do costume, ser um «Angelus de Millet com menos unção e mais batatas» [5]. O milagre da multiplicação dos quadros continua vivo. Aleluia!
Podia vir pra´qui com mais uma data de coisas [6], que a coisa é mesmo assim. Anunciam-nos uma espécie de Mercedes catita, de capa dura, daqueles para durar umas dezenas de anos, e um tipo, ainda não chegou ao fim da rodagem, já a cada meia dúzia de páginas tem as luzinhas encarnadas do tablier a piscar… se fosse mesmo da casa de Estugarda, andavam era a recolher os exemplares todos de volta.

Podia tudo isto, mas não. Que, afinal de contas, era coisa previsível. E o júbilo pelo que vem a seguir, tudo relativiza. Animemo-nos com a boa nova.


Podemos, finalmente, deitar fora os velhos catálogos desirmanados da Promotora, todos os do Leão com as dedicatórias do Alberto meias roídas pelos ratos, os do Grémio esbandalhados e de folhas soltas, os da Sociedade mais ou menos na mesma, os de Paris traçados e mal cheirosos, os de Madrid, do Rio, de Buenos Aires… tudo lixo! A coisa nasceu para nos salvar! Daqui em diante «cesse tudo o que a Musa antígua canta» pois, com quatro letrinhas apenas e mais outros tantos algarismos, temos a Obra ao alcance duma mão! Estudiosos, historiadores, doutores ou aprendizes, coleccionadores, antiquários e leiloeiros, conservadores ou progressistas, técnicos, profissionais ou amadores, todos confiaremos na coisa, que a coisa nos elucidará.


Quase ao acaso, tomemos este belo exemplo que nos revela uma obra quase desconhecida de Malhoa: o «Retrato do Sr. P. D. A. C.», 1902. Com a devida vénia, reproduz-se (à má fila) a ficha impressa. Admiremos.
Um grande retrato de Malhoa! Há dois anos [7] deram-lhe o nome, agora, finalmente, mostram-lhe a cara – e que cara!

Comecemos pelo retratado. Quem é o distinto cavalheiro? Quem será este «Sr. P. D. A. C.»? Com direito a retrato, nome, sobrenome e duplo apelido de família?

Colaboremos então, alegres e contentes, em tão grada descoberta. Numa aturada pesquisa, que me levou para mais de onze minutos, cheguei à conclusão que estaremos perante um destacado membro da família Andar Calado – família de grande respeito, possivelmente com brasão num dos tectos de Sintra ou, pelo menos, no do O’Neill, em Cascais (logo que me lembre tenho de perguntar ao Z. A.). Depois, também descobri que o sobrenome será Deveria, que advém de homenagem a antepassado de exemplar correcção cívica. Por fim, e aqui é que hesito, não sei se se trata do primeiro da linhagem – Comendador do Chico-Espertismo – ou do seu primogénito – Barão d’Aldrabice – e cujos nomes de baptismo serão Parvô e Pallerma, ambos de origem itálica. De qualquer modo estaremos, muito provavelmente, perante o «Retrato do Sr. Parvo Deveria Andar Calado». Um quadro novo na fecunda obra malhoesca. E só agora, em definitiva publicação, revelado ao povo e explicado às criancinhas.
Surpresos com o meu descaramento? Estou a ser injusto? A besta do costume? Já sei.

Vejamos então como a coisa surge, «como “elas” (as parvoeiras) se criam…» - parafraseando um título mais tardio de Malhoa.

Antes que vão para a reciclagem azul, recuperemos umas folhinhas do Catalogo Illustrado | Sociedade Nacional Bellas Artes | 3ª Exposição 1903 - Sociedade então encabeçada por Columbano, que também presidiu ao Júri de Admissão da referida mostra. Ei-las: a página 26 do catálogo, referente às obras de «Pintura a óleo» de Malhoa (expôs então ainda uma outra na secção «Pastel»), e uma das gravuras que ilustram a publicação, a que apresenta a fronha do presumível «Sr. P. D. A. C.». Olhai, vede e entendei!


Comecemos pela escrita. Encontram ali alguma obra com tal título? Não. O mais parecido com o que a coisa diz, será o «106 – Retrato do Exmº Sr. P. da C.». Que se passou? ‘Tá-se mesmo a ver: como é gente fina e P. da C. é simplérrimo demais, vá de desconstruir e recompor a coisa - nome, sobrenome e duplo apelido de família, é bem mais consentâneo. E pronto, a contracção da preposição com o artigo definido ganhou asas e voou, o simples «da» passa a «D. A.». A isto chama-se rigor e estudo metódico. Não é bem a verdade, mas que importa? Assim é que é bonito.


Vamos agora à imagem - a original de 1903. Conseguem ler a legenda? Que diz? «Cabeça de estudo | José Malhôa». Então? Não será que o tal «retrato em busto de cavaleiro antigo com pescoço “afogado” em gola de caça,… e “barba Henrique IV”» é, afinal de contas, o «99 – Cabeça d’estudo – 0,37x0,44 – 180$000 réis»? Poderia parecer, mas o rigor e o método apontaram para que assim não fosse: ou porque munido de novas e rigorosas medidas, «455x385 mm», o rigor imperou - aquele centímetro e meio a mais deverá ter sido fatal – ou, simplesmente, porque sim. Deu-se nova epifania.


            Vejamos mais uma imagem. Eis a reprodução de parte das páginas centrais de o Occidente, nº878, de 20 de Maio de 1903, revista de referência na época, dirigida por Caetano Alberto, e a que junto mais um pequeno recorte retirado da mesma.
Como se pode concluir: eu, o Columbano - afinal o responsável pelo catálogo da SNBA - e o Caetano Alberto, somos umas grandessíssimas bestas. Fico em muito boa companhia, reconheço.


 Vejamos, por fim, o que nos diz António de Lemos em Notas d’Arte – citado pelo autor da coisa a propósito de Que grande calamidade! (Lemos, 1906). Se o autor da coisa tivesse lido umas páginas mais à frente, p.50, onde A. Lemos escreve a propósito desta 3ªSNBA e do tal quadro de Malhoa, leria isto: «E, deixei para o fim o nº 106, que, embora eu esteja em erro, é para mim um dos trabalhos mais fulgurantes do grande artista.| Aquelle retrato de mulher, com elegancia finissima de palmeira, desenhada com uma distincta correcção de linhas e colorida com um mimo especial de carnação, que palpita, fez-me sentir o grande desejo de me curvar n’uma postura palaciana e beijar respeitosamente as pontas d’aquelles dedos, que tão despreocupadamente pousam no teclado do piano.| Este quadro é para mim d’um encanto inexcedivel. E que me perdôe o artista se eu não soube dizer d’elle o que elle merecia».
Afinal sempre há um erro no catálogo da 3ªSNBA. O quadro nº 106, conforme nos descreve o embevecido Lemos, será por certo o Retrato de Maria Bravo, que tocava piano e falava francês…. E se trocas houve, elas são entre o nº 107 - Retrato de M.me M. B. e o nº 106 – (no final das contas) Retrato da Ex.mª Sr.ª P. da C. (Dona Teresa Pereira da Costa), o «premiado na exposição de Madrid» e o que aparece nas gravuras e no texto de o Occidente identificado como «M.me M. B.». Fica entendido?

Confusões, só aquelas. Que o nº 99 - Cabeça d’estudo - nada tem a ver com isso. É, definitivamente, o «retrato em busto de cavaleiro antigo…». Como sempre disse eu, o catálogo e o Occidente. Está bem e recomenda-se.

Bom, o que nos revela este estudo de caso? – Ah! e tal… coitado, a coisa era confusa, enganou-se… - dir-me-ão umas boas almas. Não, minhas queridas, nada disso! Tanta asneira numa só é mais que isso: ou grande desleixo e muita bandalheira, ou chico-espertismo do mais rasca – baseado no velho princípio «o esperto sou eu, o resto uma cambada de estúpidos; se não sei, inventa-se uma merda qualquer (é este o termo exacto) que a turba ignara logo há-de engolir…». O costume.
Apetece dizer «A mim não me enganas tu» - citando o velho e respeitado jornalista, escritor e poeta Guilherme de Melo. Que aqui saúdo.


Voltando à Cabeça d’estudo, 1902, que não tem culpa alguma. Trata-se de mais um dos retratos que Malhoa executa tendo como modelo o amigo e colega Manuel Henrique Pinto. Como se pode ver e entender aqui e aqui e, se dúvidas houver, comparar com algumas fotos de Pinto.

Foi propriedade do Dr. V. C. [8]. Por morte deste, passou à família do Dr. A. A. (por mera coincidência, irmão do meu bisavô Joaquim – como quase toda a gente, tenho quatro). E se agora têm esta foto a cores para escrevinhar  umas tantas tolices, bem podem agradecer ao menino que há cinco anos telefonou à querida prima R. a pedir para o amigo P. A. lá o ir fotografar. Não lhe ponho a vista em cima há perto de meio século, mas, do que recordo e pelo que consigo ver numa foto de boa resolução, tenho cá na ideia que é uma tábua e não tela [9], ao contrário do que a fichazinha manhosa agora indica. Coisas.


Como vai sendo o tempo: saúde e um santo Natal...

JMalhoa. Que Frio! 1912.
Cartaz impresso.  «Brinde de O Commercio do Porto Illustrado | Natal de 1912»



23 Nov. 2012. LBG



[1] Sobre estes quadros Malhoa esclarece nos seus apontamentos pessoais: «Pintei n’este ano em Figueiró, o quadro “a córar a roupa” que vai figurar na exposição de Paris, e “Uma desgraça” (a morte do porco) […] José Malhôa, 31 Dezembro 1899.»
No Catálogo da 1ªSNBA, 1901, tal quadro aparece referido como «76 – Uma desgraça – 225$000 réis» e é reproduzido em gravura (sempre sem exclamação!)
Em Julho de 1901, Malhoa anota a sua venda: «[dia] 2 - Venda do quadro “A morte do porco” ao Lambertini – 150$000» (isto confirma as correspondências ali referidas, mas também a venda a preço de saldo)
Depois, passados cinco anos, no Catálogo da Exposição de Malhoa no Rio de Janeiro, 1906, aparece um título igual «21 – Uma desgraça» (ainda sem exclamação!)
Então, Malhoa anota a nova venda: «Agosto de 1906. Junho 29 – Exposição no Gabinete Português de Leitura no Rio de Janeiro – Preço porque vendi os quadros em moeda brazileira – […] 21 – Uma desgraça! - Dias Garcia – 2:000$000» (uma bela quantia, pois ao mesmo Dias Garcia a segunda versão de «19 - Amanhã os arranjarei!» custou apenas 800$000. E aqui já Malhoa acrescenta a exclamação!)
Não será difícil de perceber que, como aliás é habitual em Malhoa, estaremos perante duas versões do mesmo tema – Uma desgraça! (A morte do porco). Trazer para aqui uma qualquer «Matança…» é despropositado e revelador de ignorância quanto ao acto em si, à língua pátria e ao que Malhoa pintou…

[2]  Este e mais o outro, comentados aqui e aqui.

[3]  Um destes, nesta história aqui contada.

[4]  Prometo, um dia e quando para aí estiver virado, mostrá-lo aqui – a preto e branco - pois é outro das colecções reais que levou sumiço. E aqui está ele.

[5]  Preguiçoso que sou, cito de cor, mas é mais ou menos assim.
Em tempo, e na verdade, para ser preciso: «...e quanto ao Crepusculo, é um pot-pourri do Angelus de Millet, com menos uncção religiosa, e mais batatas.», in Os Gatos, 14 de Março de 1892.

[6]  Para além desta e mais estas.

[7]  Na verdade não foi há dois anos, sabemos isso. Mas «tão ladrão é o que vai à vinha como o que fica d’atalaia»...

[8]  Nesta mesma 3ªSNBA, Salgado pintou-lhe a mulher.

[9]  E não é que é mesmo?! Que a minha memória de bibe e calção acerta mais que uma década de aturado estudo?! (6 Dez. 2012)

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