qu’isto foi tudo uma grande
aldravice!”
Eu sabia que tinha.
Não sabia era aonde. Mas, um destes dias, lá me apareceu. Por isso aqui se
partilha. Não só de coisas boas, também da ranhosice se escrevem estas estórias.
Hoje servimos um prato frio, filho de pai (ou
mãe) incógnito, e falso como Judas! Ranhoso e rançoso. Manhoso. De quinta
categoria. Do qual não valeria muito falar, não fora começar a ser useiro e
vezeiro citá-lo, em todo ou em parte, como se fosse de primeira apanha.
Não é. E, antes que a moléstia alastre, o
melhor é cortar cerce, matar de vez, acabar com a peste.
Trata-se de um famigerado postal,
alegadamente de JMalhoa, supostamente dirigido à irmã – resta saber a qual
delas? – surdido não se sabe bem donde nem como, e que, convenientemente, tal
como surgiu, também desapareceu.
Desaparecido – ainda bem e já lá iremos –
continua, contudo, a dar-nos cabo da paciência. Porque, volta e meia, por
ignorância ou desleixo, lá temos uma frasezinha da fraudulenta missiva com
honras de citação nalgum trabalho de mérito aparente. O que cheira logo a esturro
e estraga tudo!
Ao que parece, o postalito fatela era tesourinho
- «deprimente», pois claro! - do antigo CCFV [1]. Tal como outras coisas
que nunca vi, mas ouvi falar - e refiro um dos alçados originais do projecto da
ampliação do «Casulo», 1898, do Arq. Luiz Ernesto Reynaud [2] – ter-se-á, entretanto, sumido!
Resta, do dito postal, a reprodução fac-similada publicada em 1995 [3] que aqui se mostra.
E, graças às novas tecnologias, em melhor tamanho, para tirar todas as dúvidas.
Já agora, também se transcreve na íntegra. Para
não haver desculpa e não mais alguma destas frases torpes e apócrifas voltar a
ser citada como se da pena malhoesca proviesse.
«Figueiró dos Vinhos
21 Agosto
1898
Caríssima irmã, desculpa a
demora das minhas noticias mas, o clima e a beleza desta magnifica região
têm-me prendido, como sempre.
A riqueza paisagística, a luz,
as cores e a autenticidade desta gente constituem a fonte de inspiração ideal
para o meu pincel. Sinto que vou passar aqui a fase mais importante da minha
vida, por isso, decidi construir um Atelier e uma casa para me radicar
futuramente.
Recebe um grande abraço
o teu irmão
José Malhoa.»
Ora, tudo isto é triste, tudo isto é falso!
Basta olhar e ver - não engana ninguém, sequer
algum parvo.
A caligrafia não é de Malhoa - e não é
preciso um grande grafologista para o afirmar. A conversa e os termos, simpaticamente
convenientes para peculiares modos de fazer, estão longe do léxico e cânones
malhoescos. Quanto à ortografia, o(a) autor(a) [4] da macacada nem se
preocupou em arremedar algo mais de acordo com a época da putativa datação. E a
pontuação é de anedota, não fora triste.
É tudo fraude, da mais reles, irreproduzível
e irrepetível…
Quanto à assinatura, um pouquinho mais cuidada,
até pode ser que seja - não direi terminantemente que não… Em tal mas pouco
provável caso, seria interessante ver o outro lado do postal – esta a única
razão para lamentar o sumiço do original – pois apostaria que, no verso (ou de
caras), o mais provável seria encontrar o nosso amigo Malhoa bem maduro, numa qualquer foto dos
anos 20…
No meio de tanta baixeza, o suporte, o impresso
da «Union Postale Universelle» deve ter sido a única coisa verdadeira. E nada
mais há a dizer.
Aniquilado o estropício, enterre-se bem fundo, sem lhe rezar pela alma, sem lhe
evocar pai ou mãe. E esqueça-se! Esqueça-se tudo! De uma vez por todas.
Eu, por mim, já esqueci.
Mas – e aviso já – se me aparece pelas trombas,
mais alguma vez, uma das frasezinhas manhosas - «A riqueza paisagística… etc.», «…a
autenticidade desta gente… e tal», «rebéubéu... para o meu pincel», «não
sei quê… para me radicar futuramente» - e como não posso puxar da pistola
(que não sou Goebbels - cruzes, credo! - nem citar frase trafulha será acto de Cultura), como não poderei cuspir
(pois assim me ensinou minha Mãe, e tal patranha não consubstancia propriamente um qualquer
mais odiento ministro), restar-me-á gritar a indignação (como a outra, farta das manigâncias
do António Silva para coroar a Beatriz Costa raínha das costureiras lá do
bairro [5]) e exclamar meio abespinhado:
- "Ó Ernestina, vamos embora… qu’isto foi
tudo uma grande aldravice!"
«E toca o hino!»
21 Jul. 2014. LBG.
[1] Centro Cultural de Figueiró dos
Vinhos – instituição, inicialmente com algum trabalho de mérito, que foi a proprietária
do «Casulo» de Malhoa desde a sua aquisição pela Câmara Municipal em meados da
década de 1980 até há relativamente poucos anos, quando o edifício, algo
degradado, foi de novo adquirido e reabilitado pelo Município.
[2] Supostamente um dos outros três semelhantes
a este que aqui se mostra. Como é evidente, deverão ter existido quatro – cada
um representando uma das faces do novo edifício. Este sobreviveu, sabe-se como
e conserva-se em razoável estado; dos outros desconhece-se paradeiro. Fonte credível
assegura-nos que até há relativamente pouco tempo um deles estaria
dependurado na antiga cozinha do «Casulo»…
Luiz Ernesto Reynaud, arqtº.
Alçado lateral
Projecto de ampliação do «Casulo»,
1898.
Desenho aguarelado, esc. 1:200
[3] Homenagem
a José Malhôa (1855-1933): Centro Cultural de Figueiró dos Vinhos: 1995. –
um folheto de poucas páginas, também meio desaparecido, felizmente ausente da
colecção online da Biblioteca
Municipal Simões de Almeida (tio), e que não deixa saudades.
Para além de reproduzir a “maravilha
histórica” que hoje se mostra, ali se transcreve, logo na pág. seguinte, um artiguelho do “Almanaque Bertrand” – 1944, onde a
única coisa certa deve ser a palavra «Malhôa», tal o chorrilho de inverdades e
confusão de acontecimentos descritos em catadupa. Manter a “coisa” ignorada é, assim,
uma medida de higiene.
[4] Não sei, nem interessa agora saber, a autoria da fraudezinha de trazer por casa, mas a letrinha tem um não sei quê…
[5] Cena do filme A Canção de Lisboa, 1933, do Arqtº. J. Cottinelli Telmo (1897-1948), que vale sempre a pena ver de novo – aqui, logo aos 2:17.
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