domingo, 21 de julho de 2013

“Ó Ernestina, vamos embora…

qu’isto foi tudo uma grande aldravice!”

           Eu sabia que tinha. Não sabia era aonde. Mas, um destes dias, lá me apareceu. Por isso aqui se partilha. Não só de coisas boas, também da ranhosice se escrevem estas estórias.
Hoje servimos um prato frio, filho de pai (ou mãe) incógnito, e falso como Judas! Ranhoso e rançoso. Manhoso. De quinta categoria. Do qual não valeria muito falar, não fora começar a ser useiro e vezeiro citá-lo, em todo ou em parte, como se fosse de primeira apanha.
Não é. E, antes que a moléstia alastre, o melhor é cortar cerce, matar de vez, acabar com a peste.

Trata-se de um famigerado postal, alegadamente de JMalhoa, supostamente dirigido à irmã – resta saber a qual delas? – surdido não se sabe bem donde nem como, e que, convenientemente, tal como surgiu, também desapareceu.
Desaparecido – ainda bem e já lá iremos – continua, contudo, a dar-nos cabo da paciência. Porque, volta e meia, por ignorância ou desleixo, lá temos uma frasezinha da fraudulenta missiva com honras de citação nalgum trabalho de mérito aparente. O que cheira logo a esturro e estraga tudo!

Ao que parece, o postalito fatela era tesourinho - «deprimente», pois claro! - do antigo CCFV [1]. Tal como outras coisas que nunca vi, mas ouvi falar - e refiro um dos alçados originais do projecto da ampliação do «Casulo», 1898, do Arq. Luiz Ernesto Reynaud [2]  – ter-se-á, entretanto, sumido!
Resta, do dito postal, a reprodução fac-similada publicada em 1995 [3] que aqui se mostra. E, graças às novas tecnologias, em melhor tamanho, para tirar todas as dúvidas.


Já agora, também se transcreve na íntegra. Para não haver desculpa e não mais alguma destas frases torpes e apócrifas voltar a ser citada como se da pena malhoesca proviesse.

«Figueiró dos Vinhos 
21 Agosto 1898
Caríssima irmã, desculpa a demora das minhas noticias mas, o clima e a beleza desta magnifica região têm-me prendido, como sempre.
A riqueza paisagística, a luz, as cores e a autenticidade desta gente constituem a fonte de inspiração ideal para o meu pincel. Sinto que vou passar aqui a fase mais importante da minha vida, por isso, decidi construir um Atelier e uma casa para me radicar futuramente.
Recebe um grande abraço
o teu irmão
José Malhoa.»

Ora, tudo isto é triste, tudo isto é falso!
Basta olhar e ver - não engana ninguém, sequer algum parvo.

A caligrafia não é de Malhoa - e não é preciso um grande grafologista para o afirmar. A conversa e os termos, simpaticamente convenientes para peculiares modos de fazer, estão longe do léxico e cânones malhoescos. Quanto à ortografia, o(a) autor(a) [4] da macacada nem se preocupou em arremedar algo mais de acordo com a época da putativa datação. E a pontuação é de anedota, não fora triste.
É tudo fraude, da mais reles, irreproduzível e irrepetível…
Quanto à assinatura, um pouquinho mais cuidada, até pode ser que seja - não direi terminantemente que não… Em tal mas pouco provável caso, seria interessante ver o outro lado do postal – esta a única razão para lamentar o sumiço do original – pois apostaria que, no verso (ou de caras), o mais provável seria encontrar o nosso amigo Malhoa bem maduro, numa qualquer foto dos anos 20…
No meio de tanta baixeza, o suporte, o impresso da «Union Postale Universelle» deve ter sido a única coisa verdadeira. E nada mais há a dizer.

Aniquilado o estropício, enterre-se bem fundo, sem lhe rezar pela alma, sem lhe evocar pai ou mãe. E esqueça-se! Esqueça-se tudo! De uma vez por todas.
Eu, por mim, já esqueci.

Mas – e aviso já – se me aparece pelas trombas, mais alguma vez, uma das frasezinhas manhosas - «A riqueza paisagística… etc.», «…a autenticidade desta gente… e tal», «rebéubéu... para o meu pincel», «não sei quê… para me radicar futuramente» - e como não posso puxar da pistola (que não sou Goebbels - cruzes, credo! - nem citar frase trafulha será acto de Cultura), como não poderei cuspir (pois assim me ensinou minha Mãe, e tal patranha não consubstancia propriamente um qualquer mais odiento ministro), restar-me-á gritar a indignação (como a outra, farta das manigâncias do António Silva para coroar a Beatriz Costa raínha das costureiras lá do bairro [5]) e exclamar meio abespinhado: 
- "Ó Ernestina, vamos embora… qu’isto foi tudo uma grande aldravice!" 

«E toca o hino!»   



 21 Jul. 2014. LBG.




[1] Centro Cultural de Figueiró dos Vinhos – instituição, inicialmente com algum trabalho de mérito, que foi a proprietária do «Casulo» de Malhoa desde a sua aquisição pela Câmara Municipal em meados da década de 1980 até há relativamente poucos anos, quando o edifício, algo degradado, foi de novo adquirido e reabilitado pelo Município.

[2] Supostamente um dos outros três semelhantes a este que aqui se mostra. Como é evidente, deverão ter existido quatro – cada um representando uma das faces do novo edifício. Este sobreviveu, sabe-se como e conserva-se em razoável estado; dos outros desconhece-se paradeiro. Fonte credível assegura-nos que até há relativamente pouco tempo um deles estaria dependurado na antiga cozinha do «Casulo»…

Luiz Ernesto Reynaud, arqtº. 
Alçado lateral
Projecto de ampliação do «Casulo», 1898.
Desenho aguarelado, esc. 1:200



[3] Homenagem a José Malhôa (1855-1933): Centro Cultural de Figueiró dos Vinhos: 1995. – um folheto de poucas páginas, também meio desaparecido, felizmente ausente da colecção online da Biblioteca Municipal Simões de Almeida (tio), e que não deixa saudades.
Para além de reproduzir a “maravilha histórica” que hoje se mostra, ali se transcreve, logo na pág. seguinte, um artiguelho do “Almanaque Bertrand” – 1944, onde a única coisa certa deve ser a palavra «Malhôa», tal o chorrilho de inverdades e confusão de acontecimentos descritos em catadupa. Manter a “coisa” ignorada é, assim, uma medida de higiene.

[4] Não sei, nem interessa agora saber, a autoria da fraudezinha de trazer por casa, mas a letrinha tem um não sei quê…

[5] Cena do filme A Canção de Lisboa, 1933, do Arqtº. J. Cottinelli Telmo (1897-1948), que vale sempre a pena ver de novo – aqui, logo aos 2:17.



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