Fundeiros, Cimeiros
ou do Meio, os Escalos
(do 365 ao desenfastio)
Um 365, à mesa nove! – não há empregado de mesa que se
preze que o não tivesse gritado ao balcão do restaurante ou outra casa de
pasto.
Quer dizer, havia. Hoje em dia os mais novos já não saberão… Mas sabem-no o sr. António, o
Zé, o Tino, o sr. Américo. E isso, a mim, chega.
Muito antes
da proliferação dos doces da casa com mais ou menos natas, das babas-de-camelo
e suas variantes, dos quindim e brigadeiro agora à conta da
imigração brasileira, antes mesmo da praga do molotof que virou quase
monopólio, antes de tudo isto, a sobremesa era invariavelmente e salvo
situações excepcionais: ou fruta ou pudim.
A fruta era
a da época, bem entendido, que não havia cá coisas importadas ou esquisitas. O
pudim era o simples mas fiel pudim flan. Tirado na própria altura da
forminha de alumínio [havia quem preferisse comê-lo na forma], a escorrer
caramelo e a tremelicar sobre o pires na sua breve e derradeira viagem até à
mesa. Feito na casa, com mais ou menos ovos, leite e outros cuidados. Veio mais
tarde a facilidade do pacote para dar cabo de tudo – embora, se o pacote
fosse o do chinês, o «mandarin», a coisa continuasse a ser uma
alternativa decente.
E assim, por
ser a única coisa que se mantinha inalterada na carta de menu o ano
inteiro [a fruta variava conforme a estação], sete dias por semana [não havia
dia de fecho], trinta por mês, trezentos sessenta e cinco ao ano, assim ganhou
o epíteto.
Evidentemente
acabava por ser um enjoo.
No entanto,
ainda agora, volta e meia [mas só volta e meia] depois dumas favas à
portuguesa ou de um pernil assado pelo Tino [já apertam as saudades!]
se a gorduraça toda se não desfez com o tinto, e quero coisa pouca para a
tirar do palato, nada melhor que fazer sinal ao António, proscrito atrás do
balcão – Ó sôr António, um 365 e duas colheres! - E lá vem ele, todo
satisfeito, bigode tremendo ao ritmo do pudim – Hã, hã, e vai lá logo? quarenta
mil… hoje são quarenta mil.
Passaram há dias os 165 anos do
nascimento de Malhoa. Pois eu só os vi servirem 365 !?
Pela tricentésima sexagésima quinta vez, vi os mesmos quadros do costume [e, quando não são quadros
do celebrado, insistem num que nem lembra ao diabo e devia ser proibido – mas
ele há gostos para tudo…], as mesmas fotos do costume, os mesmos vídeos do
costume, as mesmas conversas do costume.
E enjoa um
pedacinho. Mete fastio.
Conforme a
capela, a claque [diz-se «grupo organizado de adeptos», eu
sei], conforme a tasca, invariavelmente, a pagela é a do santinho
costumeiro, o cromo é o do Eusébio [com as cores do União de Tomar], o pudim,
o servido nos anos anteriores. Repetindo a receita e, até, os mesmos enganos
[se emendam uma linha, no parágrafo seguinte lá continua a mesma criatura com o nome trocado
– sinal que nem se lê o que se escreve, sequer que o escrito é lido por alguém,
atento pelo menos – é assim como deixar ir também aquela gema duvidosa prá tijela…
o resultado já se sabe].
Meu rico sr.
António! [mesmo que, à noite, só lá estejam vinte ou quinze mil gatos
pingados, o seu prognóstico é bem mais acertado...]
Urge desenjoar.
E, para desenfastiar
[à falta daquelas lulas] o melhor é coisa nova.
Não julguem
que trago bavaroise ou receita francesa, sequer umas fatias de Tomar
meio deslassadas [as bem feitas, são bem boas!], tampouco uma bela e rosada lagosta
da beira-mar com muita mayonnaise mas talhada. Chega o que chegou.
- Ó sôr
António, c'os cafés, traga daquela amarela… a ver se isto vai lá…
– É já, é
p’ra já. E p’rá doutora, o costume, hã?
Experimentemos,
então, receita simples, das antigas, quase caída ao esquecimento.
Subamos à
região do Cabril, um pouco ao lado de Figueiró. Ali, à beira do Zêzere, por
Vale de Góis, come-se bom peixe do rio. Agora, com a barragem, é rei o achigã,
espécie importada das américas, se de bom tamanho, grelhado e com aquele molho
verde é do melhor! E o velho empregado simpático.
Ao tempo de
Malhoa, a coisa era mais simplória, sem a barragem, apenas peixinho frito: uns
barbos, umas bogas, uns bordalos ou uns escalos quando maiorzitos. Pois é isto
mesmo!
Tomemos a
velhinha, agora na moda, EN2 e rumemos para norte. Passada a vila do Pedrógão
Grande, uns quatro quilómetros depois, ainda antes da Venda da Gaita, vire-se à
esquerda. Já vamos encontrar os Escalos, primeiro os Escalos Fundeiros, logo
depois os Escalos do Meio, mais acima os Escalos Cimeiros…
E eis a «Aldeia dos Escallos»,
pintada por Malhoa, algures por aqui, no ano da graça de 1885.
Coisa
rara, pouco vista!
Para muitos, tal como eu, por certo pela primeira vez.
E, isto sim,
é serviço público! Novidade para todos. Remédio para a vista. E sempre
desenfastia…
Trata-se de
um quadro apresentado na 5ª exposição de Arte Moderna (a do Grupo do
Leão, de 1885) e do qual apenas era conhecida a gravura publicada n’O
Occidente, nº256, de 11 Fev.1886, p.32. Pelo menos a crer na prolífera e
variada literatura malhoesca [e que eu saiba].
No mesmo
jornal, à p.27, fez Monteiro Ramalho a devida apreciação a esta e às restantes
obras que Malhoa então mostrou. «É uma obra de primeira ordem» escreveu
sobre esta, desenvolvendo: «realisa admiravelmente o lugarejo beirão, mal caiado, desmantelado, tendo perto a corrente fraca d'um pobre ribeiro limoso, e por traz as enormes ramarias copadas d'um borque de carvalhos».
E, como se
percebe pela legenda da gravura, o quadro foi comprado pela rainha. Pela
Senhora Dona Maria Pia de Saboia, evidentemente [1].
Agora, se o lugar registado por Malhoa
era nos Escalos Fundeiros, nos do Meio ou nos Cimeiros, sinceramente, não sei. Passado
quase século e meio muito mudou. E, embora o número de habitantes possa não ser
hoje muito maior que então, as construções são de certeza mais e bem diferentes
daquilo que eram. Mas foi por aqui, é certo.
Esta
fotografia pode sugerir qualquer coisa. Mas é muito subjectiva, tirada ao sentimento.
Tem já uns quatro anos. Foi, a crer no registo digital, captada a 30.3.2016. Já
à saída dos Escalos Fundeiros, após várias voltas ao lugar, onde nada
despertara atenção quanto à imagem que levava na cabeça [que se resumia então à
gravura d’O Occidente]. Sem mais ilusões e no caminho de regresso, foi
parar o carro e disparar - convicto que a tomada de vista não seria aquela,
apenas para registar a paisagem, a atmosfera e o enquadramento geral do povoado.
Sugere, no entanto.
[A referir
ainda que a paisagem registada na fotografia deverá ser hoje bem diferente. Ano
e pouco depois, terá sido por ali a origem do grande incêndio que devastou toda
a região… Segundo peritos oficiais, foi ali encontrado o tronco de árvore calcinado,
alegadamente atingido por um raio, a origem à tragédia. Um velho carvalho
seco, disseram. Vai-se a ver, ainda foi um daqueles além, pintados pelo Malhoa…]
Então, mas e o quadro? donde desencantaste
a imagem? – estará a perguntar a curiosidade do leitor.
Pois eu
digo. Desta vez posso dizer, que o quadro é meu, e é seu, a bem dizer é de nós
todos. Mas está nas mãos do Centeno [esse mesmo, o conhecido «Ronaldo do
Eurogrupo», o que nos trata dos impostos]. Faz parte de uma coisa que se
chama «Fundo de Pintura do Ministério das Finanças».
E para o
descobrir, não julgue, caro leitor, que lhe basta reler - sempre com prazer - as obras do professor França, ou folhear de trás para a frente todos os
livrinhos e álbuns editados pelo Montez, consultar cuidadosa e meticulosamente um qualquer Catálogo
raisonné, e por aí fora… Acredite, não vai encontrar! Tem mesmo de se
debruçar a sério na interessante bibliografia dos relatórios e contas, dos
anuários e assim, do Ministério da Finanças.
Aí, sim, a
ilustrar uma dessas apaixonantes publicações, pode encontrá-lo. E com as
indicações todas: «Aldeia dos Escallos», José Malhoa, 1885, óleo sobre tela,
149x105 cm [aqui é que começo a ter as minhas dúvidas: para lá das medidas postas ao inverso do usual, fico com a sensação de estarem exageradas, pois o quadro
não deverá ser tão grande (eu depois explico…), posso estar enganado, mas
talvez o hajam medido pela moldura…].
Quanto à
imagem.
Elas são
duas. Uma amputada, a outra exageradamente alargada. Já se sabe: designer
que se preze [e não tenha levado nas orelhas a tempo] pouco liga à integridade
dos quadros – aquilo não passa de mais um boneco – precisa é que a
página fique equilibrada (seja lá o que isso for). Daí, zás, fit to page
e está a andar… nem que um quadrado passe a ser um rectângulo tão comprido como
o combóio da Azambuja. Ou, então, corta aí esse pedaço que não faz falta
nenhuma e só está a chatear…
À imagem que
mostrei acima, tive de lhe fazer umas manigâncias, juntar fermento, deixar
levedar a ver se crescia, para a conseguir pôr mais decentezinha. Tudo a olho, sem
certezas, como se percebe.
Mas é triste. Bastante triste, não se
saber destas obras [por certo de muitas mais] que enxameiam gabinetes e salões
[e muito bem, diga-se, que por lá estarão muito bem] sem que haja um
inventário, sem que se saiba onde param, ou o que na verdade são. Não se percebe.
Não se percebe o que fazem a DGPC, o Instituto dos Museus [ou lá como se chama
agora], nem para que serve afinal a Matriznet [também de quarentena
por estes dias, ao que parece]. Idiossincrasias do sistema, dir-me-ão.
É por isto,
quando precisam algo de novo para além dos 365 do costume, é mais
simples virem solícitos aos colecionadores, aos particulares – Precisava da
sua ajuda: aquele quadro de fulano, assim e assado, sabe de quem é? acha que mo
consegue? arranja-me o contacto?
Pois, é bem mais
fácil. E, por norma, há sempre toda a boa vontade. Mas já nos aproximamos do modo Brísida Vaz, o da casa de meninas.
Talvez seja altura de pôr as coisas como deveriam ser. E sabermos, afinal, qual é o nosso património comum.
3 Mai.2020. LBG.
_______________________________
[1]. Sem querer dar lições de História [em
tempos de confinamento, deixo isso à nova “telescola”] é bom que se entenda o seguinte:
1. Entre
meados de Dez.1885 e meados de Jan.1886, a altura em que a 5ª exposição do
Grupo do Leão esteve patente e, consequentemente, a rainha teve ocasião de
comprar o quadro, como efectivamente, e a crer no dito pelo jornal de 11
Fev.1886, o terá comprado, em todo esse período e por mais três anos, em
Portugal só houve uma rainha: a Senhora Dona Maria Pia, a mulher do rei D. Luiz
I.
2. Por essa
altura, a Menina Dona Amélia d’Orleães (1865-1951) ainda não havia posto pé em
Portugal, estava solteira, sequer era duquesa de Bragança, tampouco rainha de
Portugal. Terá chegado à Pampilhosa a 18 Maio de 1886; casou com D. Carlos, o
duque de Bragança, a 22 Maio 1886, tornando-se assim duquesa; e só seria rainha
quando o marido foi aclamado rei, em 28 Dez.1889, após da morte de D. Luiz.
3. Deste
modo, é de todo impossível que o quadro, alguma vez em seu «historial», possa
ser considerado como propriedade da «Rainha D. Amélia (1885)».
Estimado Amigo Luís, apesar dos tempos, o sítio é seguramente os Escalos Fundeiros. Ido de Pedrógão, Malhoa não terá esperado para atravessar a Ribeira dos Frades e, logo da encosta defronte da aldeia, lhe tirou o retrato... Pelos vistos a nossa região é mesmo merecedora de ser visitada...
ResponderEliminarGosto que tenha gostado.
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