quando
Fialho recusa o turíbulo
Como prometido, aqui fica na íntegra a parte
do artigo referente a Malhoa, da autoria de Fialho d’Almeida (1857-1911),
publicado inicialmente em A Patria,
Abril de 1899, e depois em À Esquina
(jornal de um vagabundo), com as suas impressões sobre a 9ª Exposição do
Grémio Artístico desse ano.
Este é o artigo que fica célebre por causa
das «Tristes Malhoas». Antes não ficasse. Como sempre, o fait-divers sobrepõe-se à substância, e esta outra parte é bem mais
interessante. Todavia, para saciar a curiosidade, aqui fica o último parágrafo
do artigo, o tal que ficou para a história. Mas que não tem grande história…
A parte sobre Malhoa sim. É um belo naco de
prosa.
Claro que, no final, Fialho “blasfema”… e esta,
somada a uma outra “blasfémia” - a de clamar contra os «infanticídios» a
propósito das decorações no palácio Foz – tem-lhe valido a “excomunhão plena”
até aos dias de hoje. O que é uma pena! Atente-se na prosa, na forma e no
conteúdo, e deliciemo-nos. Poucos mais haverá que nos digam tanto.
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Columbano. Retrato de Fialho d'Almeida, 1891. |
Fica também o retrato do Escritor. O pintado
por Columbano, pois então. Oito anos antes destas linhas.
E Os Gatos,
do Simões Sob.º, 1914, em bronze, que lhe encimam o mausoléu de mármore branco
no cemitério da Cuba. O gesso dos felinos que sempre o acompanharam - «… miando
pouco, arranhando sempre, e não temendo nunca.» - encontra-se no Museu de José Malhoa, oferta do
próprio autor.
Chega de incenso, vamos à prosa.
«José Malhôa é um laborioso pintor, que partido de modestos
recursos, e sem o ronflar de pomposos elogios, vem serenamente subindo a
montanha verde onde a sua figura d’artista espargirá clarões d’uma gloria
honradamente ganha a preço de labutas incessantes. Sem nunca ter ido a
baptismos d’arte lá de fôra, nem parecer ter em maior conta o que boquejem
d’elle por ahi, acostumou-se desde prompto a não desperdiçar em convivios de
cenaculos litterarios, tempo e energias que adrede canalisadas, dão dinheiro, e
virilisam o ser, por orgulhosas ensimesmações, té á consciência d’uma
superioridade qualquer, intellectual, moral ou affectiva, conforme as
dominantes do cérebro, da consciencia ou do coração.
Ha perto de vinte annos que
assisto ás exhibições de quadros d’este artista, e vejo o esforço discreto,
probo, corajoso, para suster o vôo sempre mais alto, ou pelo menos não resvalar
d’alturas já vencidas, o que n’estes nossos pintores contemporaneos é pecha
certa, tanto que se apanhem despachados ou célebres – venho a dizer, com doze
discipulos pagos, e o logar de cabeça de pau n’alguma escola industrial.
Contando apenas comsigo, mediu rigorosamente o alcance dos seus recursos e seus
meios, e todo o seu aprumo de artista consiste em ter sempre á altura dos
assumptos, a aptidão fulgural dos seus pinceis, isto para jámais soffrer
cheques d’esthetica, ou fazer rir os que pretendera impressionar.
Salvo alguma vêz em que, por
suggestão de maus historiadores, a ambição natural o levou a exprimir problemas
altos de mais prá sua alçada, como n’esse quadro do Julgamento de Pombal, que é ainda assim um razoavel exercicio de
pintura decorativa, Malhôa tem tido o senso de ficar modesto nos seus sonhos, e
de, por isso mesmo, os ter vindo gradualmente a realizar por entre os applausos
até dos seus antigos detractores.
A sua exposição d’este anno é
para assim dizer o melhor resumo das suas aptidões adquiridas. Ha um talento
que em vêz de força neurica, é apenas trabalho accumulado, e creaturas portanto
que chegam, pela pachorra e pelo methodo, a pinaculos que outras muito antes
attingiram pelo vôo. O triumpho é a meu vêr mais alto, nos primeiros, que são
os desajudados de Deus, e que, sem asas, ateimaram em escalar o ceu, como
Satan. Dos tres quadros que Malhôa est’anno amostra, o peor (retrato de D.
Eugenia Relvas e seus filhos), é inda assim um boccado para que se póde olhar
com sympathia, reconhecendo as difficuldades de agrupar n’aquella pose, as tres
cabeças, e de dar á scenasinha familiar, sem mimeiras nem denguices, a ternura
e idealização juvenil que ella requer. As duas velhas das Papas são um estudo da sordidez plebea, piolhosa, ramelosa, em que
liquida a velhice ankilosada de trabalho, porfiando nos mistéres lazarentos da
lucta pelo pão. Malhôa tem deferencias chistãs por estas cafurnas da miseria, e
a lista dos seus quadros de plebe, é já numerosa, e faz mesmo uma dramaturgia
humoral na pequerrucha historia da pintura portugueza, que seria curioso reunir
um dia ou outro. As velhas das Papas
teem um desafogo de factura e um cozido de côr, onde se vêem vinte annos de
pintura, e a tranquilla hombridade d’um trabalhador sadio que procura
exceder-se, e não vegeta, como alguns mysantropos maníacos, na adoração das
suas proprias borracheiras. No Forno
é uma nota diferente, irradiante, hillare, da adolescencia talvez d’essas
mesmas mulheritas que estão já decrepitas nas Papas, e que neste quadrito
primaveram ainda, como rosas silvestres, na veneziana alegria do amarello e do
escarlate. É uma das coisas lindas que Malhôa tem na sua obra: tres raparigas
do norte, occupadas no labor de coser brôa, sob o alpendre da casa onde os
pintos vagueiam, e verduras de parreiral cortam o ceu… O desenho é muito
gracil, correcto, e a rapariga da pá, meio curvada, n’uma postura cheia de
perigos para o desenhista, sahe triumphantemente da experiencia, e poisa a primor,
sem o menor signal de rigidez. Toda a domesticidade da scena vem para nós a
rir, como evocando; a graça das mulheres brota com apetites de pêcego e fructa
nova, á luz hillare que se lhe diffunde das saias encarnadas. Quão longe
estamos, n’esta esfusiante e forte mocidade, da monotonia cadaverica e daltonica
de Columbano, bestificado pela thuriferação incontinente[1] dos parvos, e recorrendo a artificios do
antigo para nos dar illusões de original!»[2]
José Simões d'Almeida Sob.º. Os Gatos, 1914. Bronze, sobre a cúpula do mausoléu de Fialho d'Almeida, na Cuba. |
4 Jan. 2013. LBG
[1] O quantificativo, ainda presente na 1ª
edição do livro em 1903, já não consta da edição póstuma, de 1923…
[2] José Valentim Fialho d’Almeida, in A Patria, 21 Abril 1899. Artigo republicado in Á Esquina (Jornal d’um vagabundo). Lisboa: Livraria Clássica
Editora, 5ª edição, 1923. p.178 a 182.
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