terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Malhoa e os “Salons” de Paris (II)

1897 – Os Oleiros e para sempre Leal



            Como anteriormente vimos, no ano de 1897, Malhoa inicia a sua odisseia, não a «rústica», mas a cosmopolita e parisiense, entrando resolutamente no maior dos certames internacionais – o Salon.
             Nesse ano, ainda desconhecido dos franceses, verá o seu nome mal grafado e, no catálogo, é com dificuldade que o iremos encontrar, entre uns Mathieu e um Matisse, pois como «Mathoa» passou então à história.


            Confirmam-se no entanto as obras que levou a Paris e os respectivos números de catálogo:

1149Les potiers / Os oleiros, c.1897
1150Portrait de M.me L… / Retrato de madame L (Dona Tereza Leal), datado de 1896

Foi este o quadro:

JMalhoa. Les potiers / Os oleiros, c.1897. ost, 130x165, desaparecido.

            E este o retrato:

JMalhoa. Portrait de M.me L… / Retrato de madame L (D. Tereza Leal), 1896
ost, 56x46, MNAC, em depósito no MJM.

Com toda a deferência, comecemos pela Senhora Dona Tereza. Trata-se de uma tela quase ignorada, pelo menos quanto a haver sido o primeiro Retrato que Malhoa considerou para o representar no Salon. Ele próprio, pelo seu punho, deixa-nos, dois anos depois, estas notas, onde claramente identifica a obra e regista todo o apreço que lhe devotava:

«Pintei n’este ano em Figueiró, o quadro “a córar a roupa” que vai figurar na exposição de Paris, e “Uma desgraça” (a morte do porco). | Pintei igualmente nos mezes de Novº e Dezembro o retrato da Condessa de Mossamedes, que muito tem agradado, e que eu conscienciosamente julgo sêr o unico que pode igualar em merecimento o retrato de Madª Leal, que expus com tanto exito no “Salon” de 1897 junto com “Os Oleiros” e que tanto enthusiasmou foi celebrado pela imprensa Parisiense. Isto devido única e exclusivamente a modello têr a devida compreensão e pouzar-me bem. | José Malhôa | 31 Dezembro 1899.» [1]

         Nos dias de hoje, podemos admirar todas as qualidades esquecidas do Retrato de D. Teresa Leal [2], 1896, no Museu de José Malhoa, nas Caldas da Raínha.
            E sintomático é que a única foto a cores conhecida da desgraçada da Dona Tereza, seja esta bela coisa [3]... disponível na matriznet.






         No entretanto, estoutra imagem repescada de um velho número da revista Flama de 1973, apesar de parcial e com defeitos de impressão, dar-nos-á uma ideia da qualidade da pintura... Fica como acrescento. 



                      Passemos agora a'Os Oleiros. Aqueles e não outros. E apesar das confusões.
              Damos a palavra ao velho Bartholomeu Sesinando. Vejamos o que ele escreveu a propósito da 7ª Exposição do Grémio Artistico desse ano de 1897 [4]:

   «(...) O nosso pequeno Salon, mais composto de morceaux d’atelier que de grandes quadros, sempre vae servindo para excitar a bôa emulação dos confrades pintores, mas é, entre nós, bem limitado o numero d’aquelles a quem, mesmo replecto d’obras primas, elle seria recreação agradável. (…)
         (…) Este anno o nosso pequeno certamen artistico, celebrando-se mais tarde, coincide com o grande certamen de Paris, e ao mesmo tempo que nos é permitido exultar os esforços coroados dos mais modestos dos nossos artistas, poderemos tambem apllaudir aquelles que, lançando vôos largos, vão ao concurso internacional da grande cidade buscar a consagração do seu talento.
         Tem plena confiança em si, e não se arreceiam da vizinhança dos grande nomes que attrahem todas as attenções, os que, apenas conhecidos n’um limitado centro, lá esperam obter um pouco de succès. (…)
         (…) Malhôa, entrando resolutamente no Salon este anno, não receiou vizinhança que o prejudicasse e os seus Potiers chamaram a attenção sobre o seu nome, triumpho tanto mais lisongeiro e honroso para nós quanto elle é um verdadeiro e genuino pintor portuguez. Não cursou as escolas, nem frequentou os ateliers extrangeiros, foi sempre o nosso bello sol que dourou a sua paleta, os nossos typos que elle estudou, e ao seu esforço perseverante, á sua vontade energica deve o que tem conseguido.
         Offerece-nos a exposição do Gremio Artistico, n’uma téla pequena – Os oleiros – a reducção do quadro que enviou ao Salon dos Campos Elysios, em que, até hoje nunca reclamara entrada, e onde o acolhimento feito pela critica a este extrangeiro que se apresenta sem mais recommendação que o seu proprio valor, é bastante agradavel para o artista e para o nosso orgulho nacional.
         Rocheblanc, na Independence Belge de 24 d’abril cita o quadro de Malhôa com as seguintes lisongeiras palavras:
         Non moins verveux, mais beaucoup plus fondu de pâte et harmonieux d’accent, est le morceau des – Potiers – de Mr. Malhôa, de Lisbonne. L’autorité, la puissance, respirent en cette page, qui semble écrite dans un coup d’improvisation, tant elle est décidée, et qui n’en a pas moins toute la saveur e la force douce d’un Velasquez.
       A conhecida revista franceza L’Illustration, que annualmente  publica um numero especial, consagrado ao Salon, em que reproduz pela gravura alguns quadros, escolhidos entre os mais interessantes dos milhares que n’elle se expõem, colloca n’essa escolha o quadro de Malhôa, que Alfredo de Lostalot fazendo a critica geral da exposição apresenta como um savoureux morceau de peinture. (…)»

         Um rico texto. E que nos conta a história toda: que nesse ano o Salão alfacinha coincidiu práticamente com o Salon parisiense; que em Lisboa se pode ver a «reducção» de Os oleiros, enquanto ao mesmo tempo, nas margens do Sena, a sua outra versão - a grande e definitiva - era muito bem acolhida; e até nos dá, de bandeja, aqueles pedacinhos bem significativos das principais críticas internacionais. Um verdadeiro 3 em 1, melhor que certos shampooings [5].

JMalhoa. Os oleiros, 1896. ost, 59x78, COSEC - comp. seguros.

JMalhoa. Les potiers / Os oleiros, c.1897. ost, 130x165, desaparecido.

            Vejamos agora o que nos diz Malhoa, ele mesmo, sobre as suas duas versões de Os oleiros.
Em 5 de Maio desse ano de 1897, Malhoa regista, junto às de mais dois quadros da 7ª Exposição do GA, a «Venda do quadro “Os oleiros” ao Conde de Proença a Velha - 300$000» [6], pelo preço constante no catálogo. Como é evidente, refere-se à versão pequena, ao quadro que chegou até nós, o conhecido, o com 59x78, o datado de 1896, o «da COSEC», a «reduccção», o “estudo”, ou como lhe queiram chamar, o que esteve unicamente presente na 7ª do Grémio e pronto!
Que o outro, o que foi a Paris ao Salon de 1897, o grande, com 130x165, o que irá estar presente na 8ª Exposição do Grémio [7] no ano seguinte, o que voltará ainda a Paris para a Exposição Universal de 1900 – onde receberá uma Medalha de Oiro – e que naufragou na viagem de regresso, o que aqui nos interessa, é outra coisa. Sobre esse, só mais tarde, no verão de 1898, já depois da 8ª do Grémio, Malhoa registará a «Venda dos “Oleiros” e “Padeiras” ao Bravo – 500$000» [8] (fez desconto, que no catálogo desse ano estavam por 500$000 e 250$000, respectivamente). E, ainda mais tarde, em 8 de Abril de 1901, quando recebe o valor do seguro pelo naufrágio do Saint-André, confirma-o «…”Os Oleiros” pertencentes ao Bravo, valor um conto de reis…»

Há inúmeras referências, artigos e textos que, por engano ou desconhecimento, contrariam estes factos – em 1983, em 2003 e por aí fora… e outras, mais recentes, que tentam emendar a mão e ainda se atrapalham [9].
Mas os factos são os factos e não há mais nada a dizer.

Resumindo, Os oleiros, 1896, a versão que chegou até nós, 59x78, esteve unicamente presente na 7ª Exposição do Grémio, 1897.
Les potiers / Os oleiros, de data desconhecida e, segundo o catálogo do Grémio, com 130x165, teve participações no Salon de 1897, na 8ª Exposição do Grémio, 1898, e na Exposição Universal de 1900 - Medalha de Oiro. Perdeu-se com o Saint-André e dele resta sómente a imagem fotográfica.
Tão simples quanto isto!



JMalhoa. Apontamento para Os oleiros,1894. folha de álbum, lsp, 15x23, MJM.


E, já agora, mais duas opiniões da imprensa estrangeira, publicadas na altura, e que Malhoa citará, orgulhosamente, bastante mais tarde em correspondência privada  [10].
 «Ainda sobre os “Oleiros” | Revue Française | On cherche la signature de M. Lhermitte [11], et on trouve celle de M. Malhôa, un Portugais, en bas d’une scène prise dans une poterie
 «Sobre o retrato de Madame L… | deux très puissantes œuvres de M. Malhôa, que je ne connais pas, mais d’ont la figure de femme âgée m’a paru la tête d’étude la plus valente du "Salon", et les "Potiers", une composition vigoureuse.»

Evidentemente, Malhoa começava bem a odisseia parisiense!
      Entretanto «a cabeça de estudo mais valorosa do "Salon"», no entender do crítico francês, e tão considerada pelo próprio autor, anda por aí mais ou menos ignorada...




25 Dez. 2012 (revisto em 12 Mar. 2013, ainda em 19 Out. 2024). 
LBG



[1] Em nota de final de ano, em Dez. 1899, no seu livro de assentos «Receita | Despeza». Os sublinhados são do próprio JMalhoa.
Repare-se, apesar de alguma confusão de linguagem no final, como o Autor se refere ao «retrato de Madª Leal» - este, claramente! E, ainda, as considerações que faz sobre o «retrato da Condessa de Mossamedes», o tal que, meses depois desta nota, irá enviar ao Salon da SAF de 1900. E que, com o futuro retrato da outra Dona Tereza (a Pereira da Costa), completa o notável terceto de Retratos de velhas Senhoras, distintas e graves, mostrados em Paris…

[2] E, convenhamos, interessará bem mais (re)conhecer tais qualidades e esta interessante tela como a presente em Paris em 1897, que discutir se o nome do meio da dita Senhora era Teixeira, Sousa ou o que fosse…

[3] Sobre a qual não há que culpar a fotografa, que não é para isso que lhe pagam…

[4] Ribeiro Arthur, B. Sesinando - in Arte e Artistas Contemporaneos, 2ª serie. Livraria Ferin, Lisboa, 1898, p.244 a 249 – A setima exposição do Gremio Artistico. (publicado originalmente in Branco e Negro, nº59, 17 Maio 1897)

[5] Claro que, assim, ficamos impedidos de brilhar. Não podemos citar Rocheblanc ou A. de Lostalot como se os tivéssemos ido ler ao original. Que o bom do Sesinando já fez o trabalhinho todo pela gente, vai para cento e quinze anos. Mas, antes assim e com a história bem contada, que fingir sabedoria e aviar trapalhação…

[6] Nota na coluna da Receita, no livro manuscrito «Receita | Despeza».

[7] Há, contudo, uma nota, publicada logo nesse ano, que, mal lida, pode levar ao engano: «José Malhôa tem na exposição um bom numero de quadros em que se contam alguns retratos felizes e os Oleiros que, apesar de já ser conhecido da ultima exposição, figura com vantagem entre os outros quadros que expõe este anno.» in Occidente, nº702, 30 Jun 1898, p.146.
O anónimo articulista de o Occidente deveria querer dizer que o tema se repetia - isso, ou nem olhou para o quadro, que agora era quatro vezes maior…

[8] Nota na coluna da Receita, no livro manuscrito «Receita | Despeza».

[9] Confesso que a coisa já chateia, mas não posso deixar de chamar a atenção para as duas fichazinhas recentemente publicadas - CRJM/0340 e CRJM/0342 – a primeira versando Os Oleiros, 1896, a segunda referente à versão maior do mesmo título, a de c.1897, não ilustrada. Lendo com atenção, ficamos a saber que o autor deu em desafiar as Leis Divinas e as Leis da Física. No primeiro caso, confere à tela de 1896 o dom da ubiquidade – como sabemos, reservado ao Espírito Santo e às restantes Pessoas da Trindade – colocando aquele quadro, no mesmo tempo, em lugares tão distantes como o Grémio alfacinha e o Salon de Paris. Por outro lado, contrariando aqueloutro princípio que nos diz da impossibilidade de dois corpos ocuparem ao mesmo tempo o mesmo espaço, dá como certa a presença de ambas as telas no mesmo lugar do mesmo Salon francês. Mistérios… 
E o desvario espaço-temporal vai mais longe, dando bilhete de ida e volta para o Rio, em 1906, à tela pequena - onde, que se saiba e consultando variadissimas fontes, nunca então esteve. Aliás, tal seria estranhíssimo se considerarmos que, comprado a 5 de Maio de 1897 pelo Conde de Proença a Velha, na Grande Exposição de Homenagem de 1928 o encontramos ainda na posse da Condessa... Mas "foi no entretanto ao Rio"... que iria lá fazer? tomar um chopinho na Barra da Tijuca?

[10] Ver carta a Augusto Gama, datada de 13 Dez.1911, existente no espólio do Museu de José Malhoa.

[11] Trata-se de Léon Augustin Lhermitte (1844-1925), pintor naturalista francês.





Sem comentários:

Enviar um comentário

O seu comentário, contributo ou discordância é sempre benvindo. Será publicado logo que possível, depois de moderado pelo administrador. Como compreenderá, não publicaremos parvoíces... Muito obrigado.