…«Num outro quadro, exposto em 1931, repetiu o
cenário da sua decantada Varanda dos rouxinóis, que, como vimos, se encontra no
Brasil, sob o mesmo tecto que alberga o Emigrante, o da elegante residência do
Snr. José Augusto Prestes. À costureira dos rouxinóis, cosendo entre aprendizas
e glicínias, e afago suave da vista que nele poisa, sucedeu a Varanda florida,
pintada no mesmo sítio. Está no Casal de S. José, do Snr. Dr. Eurico Lisboa, na
Parede. Uma rapariga ao cimo duns degraus, sentada de costas, a ver passar uma
procissão no fundo da rua assoalhada. Outras figuras de mulher, um gato, muros alvejantes, uma lata
velha florida, mais flores, muita luz.»…
Manuel de Sousa Pinto, Últimos anos de Malhoa – Conferência
feita no Salão de Festas da Associação de Socorros Mútuos Rainha D. Leonor, das
Caldas da Rainha, na noite de 28 de Abril de 1934. Caldas da Rainha,
Tipografia Caldense, 1934. p.17
Em
1934, cerca de seis meses depois da morte de Malhoa, no dia do seu aniversário
natalício, em que este, se ainda vivesse, completaria 79 anos, Manuel de Sousa
Pinto proferiu, perante assistência atenta, veneranda e obrigada, como timbre
da altura, num Salão das Caldas, sob a batuta de António Montez, incansável
dinamizador do Museu, uma palestra sobre os Últimos
anos de Malhoa, logo publicada em livro - tão logo, que quatro dias depois
já assinava o exemplar destinado a D. Mª. José, a irmã sobreviva de Malhoa.
Às
tantas, Sousa Pinto descreve-nos a Varanda
Florida, 1930. Fala das figuras femininas, da rua, do sol, dos muros
caiados, das flores que dão nome à coisa, da luz que inunda o quadro e de um
gato.
Hoje, passadas oito décadas, ao olharmos para o quadro
[1], vemos lá
tudo isso… menos o gato!?
Sousa Pinto tresleu? Abusou do Gaeiras antes de ir
para a conferência? Precisava de consultar Anastácio Gonçalves? - Não parece -
se até viu uma procissão junto à Cruz de Ferro, no começo da ladeira que desce
para a Vila!
Se olharmos, agora, para o Estudo deste mesmo quadro [2], verificamos que a atitude das
raparigas é já a de dar atenção curiosa ao que se aproxima ao fundo do largo,
mas o que seja ainda se não vê, e a Cruz de Ferro ficou esquecida.
Apercebemo-nos também de uma maior preocupação com o estudo das arquitecturas envolventes, nas casas do lado do Luiz da Laurentina – mestre pedreiro e músico da Filarmónica – ou na da Comadre Aurélia, do lado oposto, com o registo das antigas escadas exteriores. Damos facilmente conta da ausência da terceira cachopa, dos lenços garridos nas cabeças ou das flores que hão-de crescer na panela de ferro, pormenores que animarão, pontuando de cor, a versão final. Mas, bichano, nem vê-lo! Ou será que, antes, está ali, meio escondido, ao colo da moça de chapéu de palha?!
Apercebemo-nos também de uma maior preocupação com o estudo das arquitecturas envolventes, nas casas do lado do Luiz da Laurentina – mestre pedreiro e músico da Filarmónica – ou na da Comadre Aurélia, do lado oposto, com o registo das antigas escadas exteriores. Damos facilmente conta da ausência da terceira cachopa, dos lenços garridos nas cabeças ou das flores que hão-de crescer na panela de ferro, pormenores que animarão, pontuando de cor, a versão final. Mas, bichano, nem vê-lo! Ou será que, antes, está ali, meio escondido, ao colo da moça de chapéu de palha?!
Voltando ao quadro definitivo, o que primeiro nos
surpreende é a luz. «Muita luz», nas palavras de Sousa Pinto.
A Malhoa não bastou a melhoria da meteorologia,
registada num céu mais limpo e luminoso. Com mestria, abre o campo de visão do observador.
Mais que o ligeiro recuo do enquadramento, altera a “objectiva” com que fixa a
cena – serve-se aí de uma 35mm, ou mesmo de uma 28mm, diríamos hoje. Os planos
caiados próximos aumentam, reflectindo ainda mais luz. As fachadas sobre o
largo de S. Sebastião, menos definidas, só os panos, acompanham o desvario
lumínico – de tal sorte que um pouco de almagre junta à calda de caiação de uma
das casas. É uma primeira nota de cor, que se espalha ainda mais forte no
grande tecido que a rapariga parou de costurar, e que agora vemos já na sua
plenitude. Com tanta luz, a cor pode saltitar livremente. Os vermelhos, nos
seus diversos matizes, do pano aos lenços, do pote das sardinheiras e dos
cravos à ferrugem da lata velha, vão pulando por ali. Os azuis, do cesto passam
à camisa da cachopa, ao lenço, à rama do craveiro e esparramam-se no céu. “Uma
pouca” de amarelo, e os verdes, mais contidos, acompanham a sinfonia de cor.
Para descanso dos olhos, só o soalho da varanda e a sombra fresca que se
adivinha.
Mas, e o
gato? Nem esta sombra aproveita?
Aproveitar, aproveitava! Mas correram com o
desgraçado!
Sousa Pinto não nos enganou. Ele bem deve ter visto o
gato, ronronando, de olhos semi-cerrados, indiferente ao “barulho” da luz, no
único sítio onde podia estar sossegado e à fresca… Viu, mas já não vemos.
O dito bichano, até é nosso conhecido. (Mais certo um
seu antepassado, pois a cena seguinte passa-se quinze anos antes). Recuemos no
tempo. Nesta mesma varanda, então dos Rouxinóis. Não pelos pássaros nas gaiolas
– que deviam ser uns míseros pintassilgos… e rouxinol não é bicho de gaiola,
esclareçamos – mas pelas costureiras, elas mesmas, que de tão boas cantadeiras
mereciam de Malhoa o elogio de soarem como o dito rouxinol.
Se dermos uma olhadela rápida e sem grandes
considerações (que não vêm agora ao caso, unicamente felídeo) pelas Varandas
dos Rouxinóis - quer sobre a versão maior [3] que tudo indica seja a que Malhoa
enviou a S. Francisco da Califórnia [4], quer sobre a versão mais conhecida
e maneirinha [5] - lá está o
nosso amigo gato (melhor, um seu progenitor)! Não à sombra, mas ao sol - que no
tempo das glicínias um calorzinho é coisa bem-vinda.
E o gato vai aparecendo mais vezes. Tem honras de
estudos a solo. Este [6], de orelhas
arrebitadas a ouvir o chilreio das costureiras, em 1915. Um outro,
escarrapachado à sombra, já não sei bem onde… (fugiu, por ser o tal).
Voltando à Varanda
Florida.
O catálogo da 28ª Exposição da SNBA, 1931, onde o
quadro foi mostrado pela primeira vez, esclarece pouco. Malhoa apresenta quatro
óleos (a que junta dois pasteis na secção respectiva) são eles: Varanda florida, Sessão ao ar livre, A caça,
Retrato do Ex. Sr. Dr. Vicente Monteiro.
E, quanto a ilustrações, preferiu as costas da discípula M. L. Mello e Castro
pintando, às da costureira costurando. Por outro lado, ficamos a saber que os
quatro óleos já teriam destino – nenhum consta do preçário. Sinal que, ainda no
atelier, mal o verniz secava logo aparecia dono.
Assim, natural é que Eurico Lisboa fosse já o feliz
proprietário da florida Varanda.
Mas, com gato ou sem gato? – Com gato, pois então!
Não esclarece o catálogo, mas tira a dúvida esta foto,
do arquivo pessoal de Malhoa, preterida então pelas costas da Mello e Castro.
Quadro
pronto, assinado e tudo! E com gato! Dono e senhor do pedaço, refastelado à
sombra, sem cesto de costura que o incomode. Todo contentinho.
Eis
pois a Varanda florida que Sousa
Pinto viu, tal como pintada por Malhoa, na SNBA em 1931, ou ainda e talvez em
casa de Eurico Lisboa na Parede, e que nos descreve três anos depois.
Esclarecido
este primeiro mistério, outros surgem, agora de mais difícil resposta: Quem
enxotou o gato? Quando ali poisaram o cesto da costura? Porquê incomodar o
bichinho?
Contudo,
antes, pode surgir uma grande dúvida: É o mesmo quadro? Estamos perante duas
versões da mesma obra, como outras a que Malhoa nos habituou? Será a Varanda conhecida uma cópia? Ou a
fotografia uma montagem? – Nada disso!
O
quadro é o mesmo, só que sem gato! Basta uma observação atenta aos pormenores,
da assinatura ao desenho das tábuas do soalho, da sombra projectada a qualquer
outro recorte, para se perceber que nenhum “artista” os poderia reproduzir, nem
o próprio! E quanto à foto, é legítima, do arquivo pessoal de Malhoa, bem
guardada há várias décadas, e confirmada pelas palavras de Sousa Pinto. Ele,
que viu o gato!
(E
se repararmos bem, por detrás do cesto, ainda lá vemos o "fantasma"
do gato a assombrar-nos a vista... )
Enxotaram,
pois, o gato ao prantar no seu lugar o cesto da costura. Não haverá a menor
dúvida! Mas quem? Ainda Malhoa ou alguém depois dele? Porque razão?
(E,
a partir daqui, aviso já, entramos no reino da fantasia, da conjectura. Nenhum
documento conhecido sustenta as teorias que se seguem. Mas, na escrita sobre
Malhoa, tal já não é novidade… Allons!)
As
razões poderão ser muitas. Algum acidente que tenha acontecido à tela, alguma
embirrância ou alergia ao bichano… que, reconheçamos, não parece lá muito
famoso em termos de desenho. E, concordemos também, o cesto com os trapos azuis
introduz uma nova e bem mais interessante marcação no baile das cores que vimos
atrás. Fazia falta e vem a calhar! Função que o gato pardacento não cumpria.
Foi esta a razão?
Resta
ainda saber se o autor da proeza foi o próprio Malhoa - se, já depois da sua
morte, Sousa Pinto ainda nos fala do gato?
Tal
não quer dizer nada! Natural é que Sousa Pinto tenha visto e registado
mentalmente o quadro aquando da sua apresentação ou já na casa da Parede, logo
nos primeiros tempos, ou ter-se socorrido de uma foto igual a esta para
preparar a conferência. E, no entretanto, a tela fora alterada sem ele saber. E
era o que faltava que Malhoa ou Lisboa tivessem que dar satisfações ao Sr.
Sousa Pinto!
Olhando
para o quadro (o que convém quando sobre algum se escreve), a pintura do cesto
não destoa do resto e nada indica que não seja da mão de Malhoa. Podemos ficar,
para já, descansados.
Acresce, por fim, que uma das últimas fotografias de
Malhoa, tirada sob uma parreira em Figueiró, poucos dias antes da sua morte,
pode vir a dar alguma ajuda. A foto é conhecida, «cliché Artur Santos», várias
vezes reproduzida em quase todos os livros que se têm publicado sobre Malhoa.
Só que truncada! E, ao que parece, pelo próprio autor que da chapa fez dois
enquadramentos. O integral – este que agora vemos [7] - mostra Malhoa acompanhado pelo
casal Lisboa. No reenquadramento conhecido, a Eurico Lisboa aconteceu o mesmo
que ao gato – foi corrido!
Quer tal foto dizer que foi nessa altura que os Lisboa
receberam de volta a Varanda florida,
mais garrida e já sem gato? Não! Não quer. Nem diz. Mas podia…
(…E a ver vamos se daqui a mais uns aninhos, sem
darmos por ela, não virá a dizer?!... Basta alguma “distracção” de nova pena
erudita…)
Mai.2011. Publicado originalmente em Jan.2012.
LBG.
[1]
JMalhoa, Varanda Florida, 1930, óleo s/tela, 47x56, c.p. http://www.flickr.com/photos/bmfigueirodosvinhos/3653232825/in/set-72157620370345088/
[2] JMalhoa, Estudo para Varanda Florida,
1930, óleo s/tela, 30x32, c.p. http://www.flickr.com/photos/bmfigueirodosvinhos/3653232817/in/set-72157620370345088/
[3] JMalhoa, Varanda dos Rouxinóis, 1914
óleo s/tela, 126x147, c.p.
[4] A tabela, que só pode ser a da“Exposição Panamá-Pacífico”, 1915. Pelas suas dimensões generosas (6x21), tal parece confirmar que assim seja.[5] JMalhoa, Varanda dos Rouxinóis, 1915 óleo s/tela, 45x42, c.p.
[6] in Catálogo do Cinquentenário da
Morte de José Malhoa, MC-IPPC, 1983. p.93,
nºc.96
[7] José Malhoa e o casal Eurico Lisboa,
no quintal do Casulo, Set./Out. de 1933. Cliché Artur Santos.
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